GRAVE DOENÇA
Aos
doze anos, tive uma doença muito grave, chegando a receber os
últimos sacramentos. Preparei-me para morrer, e lembro-me que estava
bem disposta para a morte. Um dia em que a febre estava muito alta,
delirei, mas lembro-me que pedi à minha mãe que me desse Jesus; ela
deu-me um crucifixo e eu disse-lhe: «Não é esse que eu quero. Eu
quero o Senhor do sacrário.»
Deolinda, a irmã, Maria Ana, a mãe e Alexandrina
PERÍODO MAIS DOLOROSO
DA MINHA VIDA DE TRABALHO
Dos
doze aos catorze a os vivi com regular saúde. Minha mãe pôs-me a
servir em casa de um vizinho, mas, ao ajustar-me, tirou certas
condições, como: confessar-me todos os meses, passar as tardes dos
domingos em casa, para ir à igreja e estar sob o domínio dela, não
andar de noite, etc. A combinação foi de cinco anos, mas não estive
até ao fim. O patrão era um perfeito carrasco; chamava-me nomes,
obrigava-me a trabalhar mais do que as forças que tinha. Tinha mau
génio e pouca paciência – até os animais o conheciam, porque
batia-lhes e assustava-os, sendo quase impossível chamar o gado,
quando ele ia junto do gado. Envergonhava-me sem causa, fosse diante
de quem fosse, e eu sentia-me humilhada. Apesar de estar no
princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele triste
viver. Um dia fui à azenha levar a fornada, mas era já noitinha
quando lá cheguei e, portanto, muito tarde quando regressei a casa,
pois gastava no caminho uma hora. Depois que cheguei a casa,
ralhou-me muito, insultou -me e até me chamou ladra. O pai dele,
homem velhinho, revoltou-se contra ele, defendeu-me, dizendo que eu
não tinha tido tempo para mais. Todos os dias vinha ficar à casa, e
naquele dia, como estava melindrada – porque a minha consciência não
me acusava a mais pequena falta – queixei-me a minha mãe que, depois
de se informar do caso, não me deixou voltar, apesar de pedir muito
para que continuasse a trabalhar lá. Minha mãe, vendo que ele não
cumpria o contracto, tirou-me de servir.
Uma vez
estive das dez horas da noite às quatro da manhã na Póvoa de Varzim
a tomar conta de quatro juntas de bois, porque o patrão e um seu
amigo ausentaram-se de mim; e eu, cheia de medo, lá passei aquelas
horas tristíssimas da noite. Enquanto vigiava o gado, ia
contemplando as estrelas que brilhavam muito e serviam de minhas
companheiras.
Foi aos
doze anos que me deram o cargo de catequista e cantora; trabalhava
com muito gosto, tanto num cargo como noutro, mas pelo canto posso
dizer que tinha uma paixão louca.
Quando
comungava e me encontrava no meio das minhas companheiras a dar
graças, sentia uma humilhação tão grande que julgava a mais indigna
de receber Jesus-Hóstia!...
UM SONHO
Uma
noite, ia da cozinha para a sala com a candeia acesa e ela
apagou-se. Tratei de a acender, voltando à cozinha, mas ela
apagou-se por várias vezes, tendo de andar abaixo e acima. Não me
recordo que fosse vento que a pudesse apagar. Da última vez em que
tentei acendê-la, caí, entornei o petróleo, que me saltou para a
boca. Julgando que era o mafarrico, disse: «Podes ir embora, que
hoje não arranjas nada». Fui deitar-me muito sossegada, adormeci e
tive um sonho que se gravou na minha alma para nunca mais me
esquecer. Foi assim:
Subi ao
Paraíso por umas escadinhas tão estreitinhas que mal me cabiam as
pontas dos pés. Foi com muita dificuldade e com muito tempo que lá
cheguei, porque não tinha nada onde me amarrar. Pelo caminho, via
algumas almas que ficavam ao lado das escadas, dando-me conforto sem
me falarem. Lá em cima, vi ao centro, num trono, Nosso Senhor, e, ao
lado d’Ele, a Mãezinha. Todo o céu estava cheio de bem-aventurados.
Depois de contemplar tudo isto, tive que vir à terra, o que eu não
queria. Desci com muita dificuldade e encontrei-me na terra, e tudo
tinha desaparecido. Depois, acordei.
UMA TARDE DE RECREIO
Uma
vela tarde, fui passear com as minhas primas para um monte próximo
de casa, onde andavam algumas jumentinhas a pastar. Atirei-me para
cima duma delas; como não sabia montar, fui cair, pouco depois,
entre o mato; mas não me feri nos picos dele. Ri-me a bom rir com as
minhas companheiras.
Quando
recordo estas brincadeiras, tenho pena de as ter feito; antes queria
só ter amado Jesus.
UM SALTO
Até aos
catorze anos, trabalhei nos campos e com tal cuidado que me pagavam
o jornal como a minha mãe. Uma vez, andava a apanhar hera numa
carvalheira para dar ao gado e caí dela abaixo, ficado algum tempo
sem me poder mexer e sem respirar, levantando-me pouco depois para
continuar o meu serviço.
Uma
ocasião, estando eu, minha irmã e uma pequena mais velha que nós a
trabalhar na costura, avistámos três homens: o que tinha sido meu
patrão, outro casado e um terceiro solteiro. Minha irmã, percebendo
alguma coisa e vendo-os seguir o nosso caminho, mandou-me fechar a
porta da sala.
Instantes depois, sentimos que eles subiam as escadas que davam para
a sala e bateram à porta. Falou-lhes minha irmã. O que tinha sido
meu patrão mandou abrir a porta, mas, como não tivessem lá obra, não
lhes abrimos a porta.
O meu
antigo patrão conhecia bem a casa e subiu por umas escadas pelo
interior da habitação e os outros ficaram à porta onde tinham
batido. Ele, não podendo entrar pelo interior por um alçapão que
estava fechado e resguardado por uma máquina de costura, pegou num
maço e deu fortes pancadas nas tábuas até rebentar o alçapão,
tentando passar por aí.
Minha
irmã, ao ver isto, abriu a porta da sala para fugir, mas essa ficou
presa, e eu, ao ver tudo isto, saltei pela janela que estava aberta
e que deitava para o quintal. Sofri um grande abalo porque a janela
distava do chão quatro metros. Quis levantar-me logo, mas não pude,
porque me deu uma forte dor na barriga. Com o salto caiu-me o anel
que usava, sem dar por ela.
Cheia
de coragem, peguei num pau e entrei pela porta do quintal para o
eirado onde estava a minha irmã a discutir com os dois casados. A
outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu aproximei-me deles e
chamei-lhes «cães» e disse que o deixavam vir a pequena ou então
gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na ir.
Foi
nesta altura que dei pela falta do anel e disse-lhes de novo:
«Seus
cães, por vossa causa perdi o meu anel».
Um
deles, que trazia os dedos cheios de anéis, disse-me:
«Escolhe daqui um.»
Mas eu,
toda zangada, respondi:
«Não
quero.»
Não
lhes demos mais confiança; eles retiraram-se e nós continuámos a
trabalhar.
De tudo
isto não contámos a ninguém, mas minha mãe veio a saber tudo. Pouco
depois, comecei a sofrer mais e toda a gente dizia que foi do salto
que dei. Os médicos também afirmaram que muito concorrera para a
minha doença.
SOFRIMENTOS FÍSICOS E
MORAIS
Aos
catorze anos e quatro meses, deixei o trabalho para sempre, embora
há meses trabalhasse com muito custo. Principiei a consultar
médicos, coisa que me custava imenso. Eles tratavam-me de várias
doenças; a princípio tudo corria bem e todos tinham pena de mim e eu
só sentia o desgosto dos meus males. Isto durou bem pouco tempo. As
minhas maiores amigas, pessoas da família e o próprio pároco
revoltaram-se contra mim. Chegaram a fazer caçoada de mim, do meu
modo de andar, da posição que tinha na igreja…, mas eu não podia
estar doutra forma.
O Sr.
Abade dizia-me que eu não comia porque não queria e se morresse que
ia para o inferno. Quando me ia confessar dizia-me também que o meu
maior pecado era não comer. Estas palavras fizeram-me sofrer muito
sozinha; com Nosso Senhor é que eu desabafava.
Quando
ia de casa para a igreja e desta para casa, olhava os montes em
volta e pensava fugir e refugiar-me onde mais ninguém me visse, mas
Nosso Senhor nunca me deixou fazer isto. Chorei tanto, tanto ao
ver-me na situação em que me encontrava… não me recordo bem do tempo
que durou este sofrimento, mas sei que não chegou a um ano.
Como
piorasse cada vez mais e ao verem o mau estado, foi o próprio Sr.
Abade quem aconselhou minha mãe a levar-me a um médico conhecido
dele. Foi esse que me veio tirar do martírio em que vivia, dizendo
aos que lhe perguntavam que não comia porque não podia. Apesar de
estar longe de compreender todos os meus sofrimentos, era muito meu
amigo.
DORES SEM ALÍVIO, DOZE
ANOS DE PREOCUPAÇÃO CONTÍNUA
Nosso
Senhor aliviou-me de um, mas deu-me outro sofrimento maior ainda[1].
Só dele teve conhecimento Jesus e, alguns anos mais tarde, o meu Pai
espiritual.
Passaram-se seis anos de doença, um pouco a pé, outro pouco na cama.
Durante este período cheguei a estar cinco meses sem me levantar,
continuando no mesmo sofrimento moral por espaço de doze anos sem
nunca, nunca dizer nada a ninguém. Quando me encontrava sozinha e
presa no meu leito, voltava-me para o quadro da entronização do
Sagrado Coração de Jesus, pedia-lhe que me libertasse de tal
sofrimento, que me desse luz para conhecer o que havia de fazer,
enquanto ia chorando muitas lágrimas.
Não
deixei de pedir muito à Mãezinha para que intercedesse por mim nas
mesmas intenções.
[1]
O sofrimento moral a que alude a Alexandrina com tanta
discrição fica plenamente desvendado nesta recomendação
feita pelo P.e Pinho à Deolinda logo que tomou conta da sua
alma: «Nunca deixe sua irmã sozinha quando cá vier visitá-la
o Abade.»
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