ASSIM COMEÇA...
Balasar, 20 de Outubro de 1940,
Depois
de uns momentos de oração a implorar auxílios do Céu e a luz do
Divino Espírito Santo para poder
fazer
o que o meu Padre espiritual me determinou, principio a descrever a
minha vida, tal qual como Nosso Senhor ma for recordando, embora com
grande sacrifício.
NASCIMENTO E
BAPTISMO
Eu
chamo-me Alexandrina Maria da Costa, nasci na freguesia de Balasar,
concelho da Póvoa de Varzim, distrito do Porto, a 30 de Março de
1905[1],
numa quarta-feira de trevas, e fui baptizada a 2 de Abril do mesmo
ano, era então Sábado de Aleluia.
Serviram de padrinhos um tio de nome Joaquim da Costa e uma senhora
de Gondifelos, Famalicão, de nome Alexandrina.
PRIMEIROS ANOS
DA MINHA INFÂNCIA
Encontro em mim, desde a mais tenra idade, tantos, tantos defeitos,
tantas, tantas maldades que, como as de hoje, me fazem tremer. Era
meu desejo ver a minha vida, logo desde o princípio, cheia de
encantos e de amor para com Nosso Senhor.
Até aos
três anos de idade não me recordo de nada, a não ser de algum
carinho que dos meus recebia. Com os meus três anos recebi o
primeiro mimo de Nosso Senhor.
Como
era desinquieta e, enquanto minha mãe descansava um pouco, tendo-me
deitado junto dela, eu não quis dormir e, levantando-me, subi à
parte de cima da cama para chegar a uma malga que continha gordura
de aplicar no cabelo – conforme era uso da terra – e, por ter visto
alguém fazê-lo, principiei também a aplicá-la nos meus cabelos.
Minha mãe deu por isso, falou-me e eu assustei-me. Com o susto,
deitei a malga ao chão, caí em cima dela e feri-me muito no rosto.
Foi preciso recorrer imediatamente ao médico que, vendo o meu
estado, recusou-se a tratar-me, julgando-se incapaz. Minha mãe
levou-me a Viatodos, a um farmacêutico de grande fama, que me
tratou, embora com muito custo, porque foi preciso coser a cara por
três vezes e levou bastante tempo a cicatrizar a ferida. O
sofrimento foi doloroso. Ah, se desta idade soubesse já
aproveitar-me dele!... Mas não. Depois de um curativo, fiquei muito
zangada com o farmacêutico; este ofereceu-me alguns biscoitos e
vinho, que depois de amolecidos no vinho queria que os comesse. Eu
tinha fome e, às vezes, até chegava a chorar porque não podia mexer
os queixos. Não aceitei a oferta e ainda maltratei o farmacêutico.
Ora aqui está a minha primeira maldade.
Pelos
quatro anos e meio de idade, punha-me a contemplar o céu (abóbada
celeste) e perguntava aos meus se poderia chegar-lhe se pudesse
colocar umas sobre as outras todas as árvores, casas, linhas dos
carrinhos, cordas, etc., etc. Como me dissessem que nem assim
chegaria, ficava descontente e saudosa, porque não sei o que me
atraía para lá.
Lembro-me de que, nesta idade, tinha em casa uma tia doente, que
morreu de cancro, e chamava-me para ir embalar um filho, primeiro
fruto do seu matrimónio, serviço que fazia com toda a prontidão,
quer de dia quer de noite.
Já
nesta idade amava muito a oração, pois lembra-me que minha tia
pedia-me para rezar com ela a fim de obter a sua cura.
DESENVOLVIMENTO
DA MINHA INSTRUÇÃO RELIGIOSA. FREQUÊNCIA DA CATEQUESE
Comecei
a frequentar a catequese e a dar mostras de um grande defeito, a
teimosice. Um dia fui à doutrina à igreja e o coadjutor do Senhor
Abade, Pe. António Matias, indicou-me o lugar que devia tomar entre
as meninas da minha idade, mas, como ia acompanhada de outras mais
velhas, quis tornar lugar delas. Por mais carinhos que o Reverendo
me fizesse e me mostrasse santinhos, eu não fui capaz de ceder à sua
ordem. Dias depois, Sua Reverência convenceu-me e ficou sendo muito
meu amigo e até me abrigava da chuva debaixo do seu viatório, de
casa à igreja e desta a casa. Lembro-me que era muito teimosa.
Quando
me encontrava na igreja, punha-me a contemplar os santos, e os que
mais encantavam eram as imagens de Nossa Senhora do Rosário e S.
José, porque tinham uns vestidos muito bonitos e eu desejava ter uns
iguais aos deles. Não sei se seria já princípio da manifestação da
minha vaidade. Queria ter uns vestidos assim, porque perecia-me que
ficava mais bonita com eles.
E, se
nesta idade manifestava os meus defeitos, também mostrava o meu amor
para com a Mãe do Céu, e lembra-me com que entusiasmo cantava os
versinhos a Nossa Senhora e até me recordo do primeiro cântico que
entoei na igreja, que foi «Virgem pura, tua ternura, etc.»
Gostava
muito de levar flores às zeladoras que compunham o altar da
Mãezinha.
VIVEZA DE CARÁCTER
Era
viva e tão viva que até me chamavam Maria-Rapaz. Dominava as
companheiras da minha idade e até as mais velhas do que eu. Trepava
às árvores, aos muros e até preferia estes para caminhar em vez das
estradas.
Gostava
muito de trabalhar: arrumava a casa, acarretava a lenha e fazia
outros serviços caseiros. Tinha gosto que o trabalho fosse bem feito
e gostava de andar asseadinha. Também lavava roupa e, quando mais
não tinha, era o meu aventalinho que trazia à cinta. Quando não
sabiam de mim, era quase certo encontrarem-me a lavar num ribeiro
que corria perto de casa.
Um dia,
fui com a minha irmã e uma prima apascentar o gado, entre ele uma
égua. A certa altura, a égua fugia para o lado do campo que estava
cultivado e, como a fosse tornar, ela atirou-me ao chão, dando-me
com a cabeça, e depois colocou-se sobre mim; de vez em quando
raspava-me o peito com uma pata sobre o meu coração, como quem
brinca. Levantava-se, relinchava e voltava a fazer o mesmo. Fez
assim algumas vezes, mas não me magoou.
As
minhas companheiras gritaram e acudiram várias pessoas que ficaram
admiradas de eu sair ilesa da brincadeira do animal.
Quando
me encontrava com umas primas que moravam distantes, cantava com
elas pelos caminhos a Ave-Maria. Também gostava de cantar cantigas
do campo e até me lembro do lugar em que cantei a primeira quadra e
da letra da mesma. Era assim:
Ó
Maria, dá-me lume,
Que eu
bem o vejo luzir.
Bota o
teu amor cá fora,
Que eu
bem o vi p’ra lá ir.
Uma vez
fui visitar a minha madrinha e tive de atravessar o rio Este, que
levava grande corrente, chegando a abalar umas pedras que serviam de
passadiço; e, sem reparar no perigo a que me expus, atravessei a
corrente por essas pedras e a água ia-me levando. Foi milagrosamente
que escapei à morte, bem como minha irmã que me acompanhava. Gostava
muito de a (a madrinha) visitar, porque ela dava-me bastante
dinheiro. Pouco depois, morria ela, e foi o meu primeiro desgosto.
Tinha pena dela, do folar e da roupa dos sete anos que me tinha
prometido. Minha avozinha soube amenizar esse desgosto, dando-me o
folar todos os anos.
Tinha
eu 6 anos quando, de noite, me entretinha, por muito tempo, a ver
cair sobre mim inúmeras pétalas de flores de todas as cores,
parecendo chuva miudinha. Isto repetiu-se várias vezes. Eu via cair
estas pétalas, mas não compreendia; talvez fosse Jesus a convidar-me
à contemplação das suas grandezas.
IDA PARA A PÓVOA A FIM
DE FREQUENTAR A ESCOLA
Em
Janeiro de 1911, fui com a minha irmã Deolinda para a Póvoa de
Varzim, para frequentarmos a escola. Não quero pensar quanto sofri
com a separação da minha família. Chorei muito e durante muito
tempo. Distraíam-me, acariciavam-me, faziam-me todas as vontades e,
depois de algum tempo, resignei-me.
Continuei a ser muito traquinas: agarrava-me aos americanos e
deixava-me ir um pouco e depois atirava-me ao chão e caía;
atravessava a rua quando eles iam a passar, sendo preciso o condutor
deles acusar-me à patroa. Muitas vezes fugia de casa e ia apanhar
sargaço para a praia, metendo-me no mar, como fazem as pescadeiras;
trazia-o para casa e dava-o à patroa, que o vendia depois aos
lavradores. Com isto afligia a patroa, pois fazia isto às
escondidas, embora rapidamente.
PRIMEIRA VISTA DE
JESUS À MINHA ALMA
Foi na
Póvoa de Varzim que fiz a minha Primeira Comunhão, com sete anos de
idade. Foi o Senhor Pe. Álvaro Matos quem me perguntou a doutrina,
me confessou e me deu pela vez primeira a Sagrada Comunhão. Como
prémio, recebi um lindo lenço e uma estampazinha. Quando comunguei,
estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei a Sagrada Hóstia que
ia receber de tal maneira que me ficou tão gravada na alma,
parecendo-me unir a Jesus para nunca mais me separar d’Ele. Parece
que me prendeu o coração. A alegria que eu sentia era inexplicável.
A todos dava a boa nova. A encarregada da minha educação levava-me a
comungar diariamente.
RECEBI O SANTO CRISMA
Foi em
Vila do Conde onde recebi o Sacramento da Confirmação, ministrado
pelo Ex.mo e Rev.mo Senhor Bispo do Porto.
Lembro-me muito bem desta cerimónia e recebi-a com toda a
consolação. No momento em que fui crismada, não sei o que senti em
mim; pareceu-me ser uma graça sobrenatural que me transformou e me
uniu cada vez mais a Nosso Senhor. Sobre isto, queria exprimir-me
melhor, mas não sei.
AMOR À ORAÇÃO
À
medida que ia crescendo, ia aumentando em mim o desejo da oração.
Tudo queria aprender. Ainda conservo as devoções que aprendi na
minha infância, como: Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria,
Ó Senhora minha, ó minha Mãe, o oferecimento das obras do dia
– Ofereço-Vos, ó meu Deus –, a oração ao Anjo da Guarda,
oração a S. José e várias jaculatórias.
Quando
ia a passeio com a patroa para o campo, acompanhada com outras
meninas, fugia do convívio delas e ia colher flores que desfolhava
para fazer tapetes na igreja de Nossa Senhora das Dores. Era em Maio
e toda me comprazia de ver o altar da Mãezinha adornado de rosas e
cravos e de respirar o perfume dessas flores. Algumas vezes,
oferecia à Mãezinha muitas flores que minha mãe propositadamente me
levava.
O
capelão de Nossa Senhora das Dores organizou várias comissões de
meninas para angariar meios para o culto da mesma capela. Essas
comissões espalhavam-se pelas freguesias vizinhas da Póvoa de
Varzim. Eu fui para a Aguçadoura e aceitávamos tudo o que nos
dessem, como batatas, cebolas, etc. Por mais que pedíssemos, pouco
arranjámos e tivemos a má ideia de saltar a um campo e tirámos
batatas, cerca de dois quilogramas. Fui eu uma das que fiz tal
acção, enquanto outras vigiavam. Entregámos as ofertas, não contando
nada do que se tinha passado.
[1]
O ano de nascimento indicado pela Alexandrina na
autobiografia não corresponde ao da certidão de baptismo,
que indica o ano de 1904, devido a um erro de cédula pessoal
passada pelo escrivão da Póvoa, que fez o assento de
perfilhação da Deolinda e da Alexandrina. Esta medida legal
foi tomada por ocasião duma grave doença da mãe, para
assegurar às duas crianças o direito de herdar o que era
dela.
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