DEDICAÇÃO PELA
ENCARREGADA DA MINHA EDUCAÇÃO
Lembro-me de ir acompanhar a minha patroa a Laundos cumprir uma
promessa a Nossa Senhora da Saúde. Connosco foi uma filha dela e a
minha irmã. Esta ajudava-a pegando-lhe na mão, porque ia de joelhos,
e eu ia à frente dela e arrumava-lhe todas as pedrinhas que
encontrava no caminho. A filha, que era mais velha do que nós, foi
para a brincadeira.

Uma das
primeiras fotografias da Beata Alexandrina
Era
muito dedicada à mulherzinha e, quando me davam qualquer coisa, como
frutas, doces, etc., repartia com ela, que ficava toda satisfeita.
Eu procedia assim porque o meu coração assim o queria, apesar de ser
muito má.
Uma
ocasião, a minha irmã pediu-lhe licença para ir estudar à casa de
uma colega que morava perto de nós, e eu também queria ir. Como ela
não me deixasse, chorei e por fim chamei-lhe «poveira»; estava
zangada. Não me castigou, mas disse-me que não podia confessar-me
sem lhe pedir perdão. Minha irmã disse-me o mesmo. Isto fez-me muita
repugnância e, como quisesse confessar-me e comungar, venci o
orgulho. Pus-me de joelhos e, de mãos erguidas, pedi-lhe perdão. Ela
comoveu-se até às lágrimas e perdoou-me. Senti uma grande alegria
por já poder no dia seguinte confessar-me e receber Jesus.
PERSEGUIÇÃO DOS
GUARDAS-REPUBLICANOS
Depois
de umas férias, ia para a Póvoa, eu e a minha irmã; tínhamos quem
nos acompanhasse, mas só depois de atravessarmos a freguesia. Íamos
pelo caminho-de-ferro e avistámos ao longe dois
guardas-republicanos. Tivemos medo deles e refugiámo-nos na volta de
um caminho. Como minha irmã levasse um cestinho com linho, eles
imaginaram que ela levava fósforos (espera-galegos) – proibidos
naquele tempo – e perseguiram-nos. Nós fugimos e gritámos muito. Aos
nossos gritos acudiram várias pessoas. Já estavam para fazer fogo
quando compreenderam que não éramos portadoras de tal contrabando.
Felizmente desta vez escapámos à morte.
Ainda
na Póvoa de Varzim, lembro-me que tinha muito respeito pelos
sacerdotes. Quando estava sentada à porta da rua, só ou com a minha
irmã e primas, levantava-me sempre à sua passagem, e eles
correspondiam tirando o chapéu, se era de longe, ou dando-me a
bênção se passavam junto de mim. Observei algumas vezes que várias
pessoas reparavam nisto e eu gostava e até chegava a sentar-me
propositadamente para ter ocasião de me levantar no momento em que
passavam por mim, só para ter o gosto de mostrar a minha dedicação e
respeito pelos ministros do Senhor.
REGRESSO À TERRA NATAL
Passados dezoito meses, como minha irmã fizesse exame, viemos
embora. Minha mãe queria que eu continuasse, mas sozinha não quis
ficar; fiquei a saber pouco. Voltámos ao lugar onde nascemos e aí
estivemos quatro meses; depois fomos morar para perto da igreja,
numa casa da minha mãe.
Uma vez
minha mãe deu-me uns soquinhos. Eu fiquei tão contente com eles,
porque eram lindos!... Para ver a figura que fazia com eles,
preparei-me como se fosse à Missa, calcei-os e depois ajoelhei-me,
pondo-os à minha frente, fingindo que estava na igreja. Como era
vaidosa!
Era
muito amiga da minha irmã, mas, quando me zangava com ela,
atirava-lhe com o que tivesse à mão. Lembro-me de fazer isso pelo
menos duas vezes. Quero que o meu génio não fique encoberto. Também
gostava de lhe fazer partidinhas e, quando me levantava primeiro do
que ela, punha-lhe à porta do quarto paus a impedir-lhe a passagem
para ela cair, quando por ali passasse. Era mesmo como quem lhe
chamava preguiçosa. Fazia várias partidas deste género. Também as
tinha de mau gosto, pois uma vez levantei a tampa de uma caixa e
deixei-a cair com força, começando a gritar, fingindo assim que me
magoei. Minha irmã acudiu logo e afligia-a bastante. Ficava muito
pesarosa por a ter ofendido. Não guardava ódio nenhum, antes queria
acariciar as pessoas que ofendia. Apesar de tudo isto e de subir às
árvores – pois trepava muito bem – nunca fiz mal às avezinhas. Não
era capaz de tirar os ninhos, nem de brincar com os passarinhos.
Sofria muito quando via ninhos desfeitos ou quando ouvia o piar
triste e dolorido dos pais pelos filhinhos. Cheguei a chorar com
pena das avezinhas que ficavam sem os sus filhinhos ou destes que
perdiam os seus pais.
Nas
reuniões de família, não sei o que dizia, mas dispunha bem as
pessoas que me rodeavam, que se riam a bom rir. Minha mãe dizia: «Os
fidalgos têm um bobo para os fazer rir e eu não sou fidalga, mas
também tenho quem me esteja a fazer festa».
AS MINHAS PRIMEIRAS
CONTEMPLAÇÕES
Pelos
nove anos, quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e
quando me encontrava sozinha, punha-me a contemplar a natureza. O
romper da aurora, o nascer do sol, o gorjeio das avezinhas, o
murmúrio das águas entravam em mim numa contemplação profunda que
quase me esquecia de que vivia no mundo. Chegava a deter os passos e
ficava embebida neste pensamento, o poder de Deus! E, quando me
encontrava à beira-mar, oh, como me perdia diante daquele grandeza
infinita! À noite, ao contemplar o céu e as estrelas, parecia
esconder-me mais ainda para admirar as belezas do Criador! Quantas
vezes no meu jardinzinho, onde hoje é o meu quarto, fitava o céu,
escutando o murmúrio das águas e ia contemplando cada vez mais este
abismo das grandezas divinas! Tenho pena de não saber aproveitar
tudo para começar nesta idade as minhas meditações.
OS MEUS ESCRÚPULOS
Lembro-me de dizer duas palavras que tomei por pecados, sendo uma
delas «diabo». Fiquei muito envergonhada e custou-me muito a
confessar-me delas. Não gostava de ouvir conversas maliciosas e,
embora não compreendendo o sentido delas, chegava a dizer que me
retirava se não falassem doutra forma. Também me indignava toda
quando presenciava cenas indecentes entre pessoas adultas. Tinha
medo de perder a minha inocência e receio que Nosso Senhor desse
algum castigo.
Foi aos
nove anos que fiz pela primeira vez a minha confissão geral e foi
com o Sr. Pe. Manuel das Chagas. Fomos, a Deolinda, eu e a minha
prima Olívia, a Gondifelos, onde Sua Reverência se encontrava, e lá
nos confessámos todas três. Levámos merenda e ficámos para arde, à
espera do sermão. Esperámos algumas horas e recorda-me que não
saímos da igreja para brincar. Tomámos nosso lugar junto do altar do
Sagrado Coração de Jesus e eu pus os meus soquinhos dentro das
grades do altar. A pregação dessa tarde foi sobre o inferno. Escutei
com muita atenção todas as palavras de Sua Reverência, mas, a certa
altura, ele convidou-nos a ir ao inferno em espírito. Para mim mesma
disse: «Ao inferno é que eu não vou! Quando todos se dirigirem para
lá, eu vou-me embora!», e tratei de pegar nos soquinhos. Como não vi
ninguém sair, fiquei também, não largando mais os soquinhos.
AMOR AOS POBREZINHOS,
DOENTINHOS E VELHINHOS
Era
muito amiga dos velhinhos, pobrezinhos e enfermos e, quando sabia
que alguém não tinha roupinha para se vestir, pedia-a a minha mãe e
ia levar-lha, ficando por vezes a fazer-lhe companhia. Assisti à
morte de alguns, rezando o que sabia e, por fim, ajudava a vestir os
defuntos, o que me custava imenso; fazia-o por caridade: não tinha
coração para deixar sozinha a família dos mortos e, por serem
pobrezinhos, fazia-o com muito gosto.
Dava
esmola aos pobres e sentia grande alegria em fazer obras de
caridade. Algumas vezes chorava com pena deles e por lhes não poder
valer em todas as suas necessidades. A minha maior satisfação era
dar-lhes daquilo que tinha para comer, privando-me assim do meu
alimento. Quantas vezes fiz isto!... Apesar de muito criança ainda,
dei muitas vezes conselhos a pessoas de bastante idade, evitando até
que praticassem crimes horrendos, e de tudo guardava absoluto
silêncio. Vinham ter comigo e faziam-me conversas que não eram
próprias da minha idade, e eu confortava-as e dizia-lhes o que
entendia. Presenciei e soube de viários casos que por caridade não
contei.
Quanto
hoje estou agradecida a Nosso Senhor por ter procedido assim: era a
Sua graça e não a minha virtude!
AMOR À ORAÇÃO
Gostava
muito de ir à igreja e chegava-me para junto da minha catequista[1]
e rezava quanto ela queria. Não deixava dia nenhum de rezar a
estação ao Santíssimo Sacramento, meditada, quer fosse na igreja
quer em casa, até pelos caminhos, fazendo sempre a comunhão
espiritual assim:
«Ó meu
Jesus, vinde ao meu pobre coração! Ah, Eu desejo-Vos, não tardeis!
Vinde enriquecer-me das Vossas graças; aumentai-me o Vosso santo e
divino amor. Uni-me a Vós! Escondei-me no Vosso Sagrado Lado! Não
quero outro bem senão a Vós! Só a Vós amo, só a Vós quero, só por
Vós suspiro! Dou-vos graças, Eterno Pai, por me haverdes deixado a
Jesus no Santíssimo Sacramento. Dou-Vos graças, meu Jesus, e por
último peço-Vos a Vossa santa bênção! Seja louvado em cada momento o
Santíssimo e Diviníssimo Sacramento da Eucaristia!»
Também
dizia várias jaculatórias, como «Bendito e louvado seja…» e «Graças
e louvores se dêem…»
Gostava
muito de fazer meditações ao Santíssimo Sacramento e à Mãezinha e,
quando não podia fazê-las de dia, fazias de noite, às escondidas de
todos, reservando uma vela, que escondida, para esse fim. Vidas de
santos ou meditações muito profundas não me satisfaziam, porque via
que em nada ma assemelhava aos santos e, em vez de me sentir bem,
faziam-me mal.
[1]
Josefina Alves de Sousa, vulgarmente chamada
«Josefina-Escola», por viver no edifício da escola,
juntamente com seu irmão professor.
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