A VIAGEM
A
viagem foi difícil de fazer, pois o meu coração sentia imenso e
parecia por vezes que ia sucumbir. Olhava para a minha irmã e via-a
muito desolada. O médico dizia-me que, com doentes como eu, não
custava fazer viagens, porque me via sempre com um sorriso nos
lábios, mas só Jesus sabia a amargura que ia no meu coração e as
torturas do meu pobre corpo. Com as trepidações da auto-maca, eu
sentia grandes aflições no coração, mas repetia sempre: «Tudo por
Vosso amor, meu Jesus, e que a noite escura que sinto na minha alma,
sirva para dar luz as almas!»
Alexandrina em casa do Sr Sampaio, na Trofa
Ao
chegar às últimas casas de Balasar, vi que o Sr. Sampaio levantou as
cortinas da auto-maca e notei que as lágrimas assomaram aos olhos do
médico, que ia a meu lado e exclamou: «Coitadinhas!» Ao ouvir estas
palavras, perguntei-lhe o que era. Disseram-me que umas crianças, à
beira da estrada, lançavam flores para o nosso carro. Senti-me então
cheia de compaixão para com as criancinhas, enquanto as lágrimas
teimavam deslizar-me nas faces, o que a custo pude conter. Quando
chegámos a Matosinhos, o médico levantou a cortina da janela da
auto-maca para eu ver o mar. Então um silêncio enorme se apoderou do
meu coração e, ao ver o movimento contínuo das ondas e a sua vinda
até à praia, eu pedi a Jesus que o meu amor fosse também assim sem
interrupção e duradoiro.
Chegámos perto do Refúgio, e o Sr. Dr. Gomes de Araújo não quis que
a auto-maca fosse até à porta e para isso disse aos bombeiros que
virassem a maca e me levassem assim pela rua, cobrindo-me o rosto
para que ninguém me visse. Logo nessa ocasião, o meu coração mais
triste ficou, pois adivinhava já o que seriam para mim esses longos
trinta dias que iria passar nessa casa. Enquanto ma transportavam de
rosto encoberto, parecia-me estar num caixão. A minha tristeza
subia, e eu perguntava a mim mesma: «Que crime fiz eu?»
A
subida das escadas do Refúgio foi um martírio, por eu estar de
cabeça para baixo. Só no quarto descobriram-me o rosto, e eu vi-me
então rodeada pelo Sr. Dr. Araújo e algumas das senhoras que iam
servir de vigias, enquanto eu lá estivesse. Colocaram-me na cama que
já estava destinada para mim.
À minha
irmã mandaram-na para outro quarto, contra o que eu tinha pedido,
pois este era um dos maiores sacrifícios que podíamos fazer, tanto
uma como a outra. Como havia eu de passar sem ela, que me dava todas
as voltas precisas e me ajudava com as suas carinhosas palavras a
levar este doloroso calvário?...
Estava
apenas na cama quando a Deolinda se apresentou à porta trazendo uma
mala, em que tínhamos a nossa roupa. O médico, Dr. Araújo, ao ver a
minha irmã, berrou alto: «Essa mala lá fora!...». Foi espinho sobre
espinho. Principiou a dar ordens: «As vigias, as vigias! A doente
pode dizer o que quiser, mas as senhoras não têm licença de a
interrogarem».
Depois
de dar todas estas ordens, retirou-se, ficando o médico assistente e
duas senhoras que estariam ali permanentes para vigiarem todos os
seus movimentos.
À
noitinha já, ao retirar-se para vir embora o Sr. Dr. Dias de
Azevedo, então não consegui reter por mais tempo as lágrimas que me
banhavam os olhos. O meu médico teve ainda esta fineza, este
respeito pela minha dor – mais do que respeito, carinho: «Coragem,
amanhã voltarei cá!»
Chorei
sentidamente, mas logo ofereci essas lágrimas tão amargas ao meu
querido Jesus. Ao verem-me tão desolada, sempre consentiram que essa
noite ficasse junto de mim a minha irmã juntamente com uma das
senhoras enfermeiras para ela aprender as voltas que a minha irmã me
costuma dar, mas ajuntou logo: «Só por esta noite, porque amanhã não
fica».
FACE A FACE COM O
MÉDICO
No dia
seguinte, que era sexta-feira, começou então para mim o verdadeiro
calvário naquela casa. Na ocasião do êxtase, como acontece todas as
sextas-feiras, a minha irmã veio para junto de mim, encontrando-se
também o médico assistente e uma enfermeira.
Nada
escapou aos observadores, nem os pequenos pormenores que foram
depois espalhados e comentados. Tais como estes: o Sr. Sampaio ter
puxado pelo relógio, … a minha irmã ter ajoelhado ao pé de mim para
ouvir as palavras do êxtase, … uma enfermeira ter chorado, etc.… O
Sr. Dr. Azevedo escreveu, como sempre as palavras do êxtase para
entregar aos médicos. A Deolinda, que devia por ordem estar apartada
do quarto, andava amargurada e pedia: «Nem ao menos poderei ver a
minha irmã à porta do quarto? A minha vista alimentá-la-à, talvez?»
E debruçada sobre a minha cama, chorava inconsolável.
Foi
então que eu lhe disse: «Não te aflijas, Nosso Senhor há-de estar
connosco!» A vigia que chorara durante o êxtase, batendo-lhe no
ombro, disse-lhe: «Não chore, o Sr. Dr. Araújo é de muita caridade!»
Mas foi o bastante para nunca mais essa vigia poder aproximar-se de
mim, a não ser nos últimos dias, quando já havia provas de verdade,
e mesmo assim, só acompanhada por outras pessoas.
Deve-se
isto, e muitas coisas mais, a uma vigia que foi o meu carrasco
durante os dias da Foz. Deus Nosso Senhor lhe perdoe.
Nessa
noite, comecei a sentir uma crise tremenda de vómitos que, como
sempre, muito mal me fazem e tanto me afligem, mas mais ainda aí,
onde não tinha a não ser uma vez quem me amparasse.
No
sábado, veio novamente o Sr. Dr. Gomes de Araújo ver como eu me
encontrava e saber de tudo o que se tinha passado. A minha
prostração era tão grande que não dei conta de quando bateu à porta,
que estava sempre fechada à chave; só o ouvi quando, ao pé da minha
cama, dizia à enfermeira: «Está pronta! Está pronta!» Foi então que
abri os olhos e disse-lhe: «Ó Senhor Doutor, em casa também tenho
estas coisas.» A resposta dele, muito pronta e imperiosa: «Menina,
não pense que vem aqui para jejuar!» Compreendi onde queria chegar e
senti-me profundamente ferida.
Quando
soube do que se tinha passado na sexta-feira, exigiu os escritos do
êxtase e foi então que disse berrando: «Parece impossível que o Dr.
Azevedo, sendo um rapaz tão inteligente, se deixe levar por estas
coisas. Isto tem que acabar. No entanto, que desapareçam todos os
relógios para ela ignorar as horas...» (Como se Nosso Senhor
precisasse deles!)
Ao ver
o meu estado, queria medicar-me, mas eu não o consenti, nem o
consentiria. Quantas vezes as enfermeiras vieram junto de mim,
convencidas de que eu tinha morrido. Foram cinco dias de contínua
agonia, mais da alma do que do corpo, pois durante estas crises não
consentiram que a minha irmã viesse para junto de mim, eu que em
casa chegava a precisar que duas pessoas me aliviassem. Julgavam
todos que esta crise era devida à falta de alimentação, porque ao
verem-me completamente isolada e sem ninguém que me pudesse levar
qualquer alimento, eu sentiria necessidade de o pedir ou então que
estava a morrer. Como estavam enganados! O meu alimento vinha-me da
Hóstia bendita da minha Comunhão de cada manhã.
Foi
durante esta crise que voltou a visitar-me o médico assistente e,
depois de informado pela minha irmã lá fora da minha prisão, ao pé
da minha cama, foi aconselhado pela vigia de que eu precisava de
tratamento. E eu que ainda não tinha conta de ele entrar, abri os
olhos para ele e ouvi que ele dizia para a mesma: «Esta doente veio
para aqui para ser observado e nada mais. Creio que o Sr. Dr. Araújo
cumprirá com as condições. Não consinto que se lhe dê uma injecção
ou outro medicamento, a não ser que ela o peça. E as senhoras verão
que, passada esta crise, as olheiras desaparecerão, as cores voltam,
o pulso volta ao seu normal. Não digo mesmo ao seu normal, talvez
devido aos ares do mar... O que lhes afianço é uma coisa: morrerão
as senhoras, morrerei eu, mas ela cá no Refúgio não morre.»
Sentado
ao pé de mim, veio dar-me um pouco de alívio de que precisava.
Porque Nosso Senhor assim permitiu e achou bem; passados cinco dias
os vómitos desapareceram por completo e a cor natural do rosto
voltou juntamente com o brilho dos olhos. À nova visita do médico
assistente que ia frequentemente ver-me, a vigia teve esta frase:
«Veja, Senhor Doutor! Olhe essa cara!» Ele, muito delicado sempre,
mas com firmeza: «Foi com os bifes que comeu e com as injecções que
levou.»
Jesus
quis mais uma vez mostrar o seu poder nesta humilde criatura sua.
Contudo, todas as senhoras-vigias cumpriram bem as ordens do médico,
pois não me abandonavam um momento. A porta do meu quarto só se
abria para dar passagem aos médicos ou às enfermeiras.
À nova
transformação que houve em mim, nem o médico nem as enfermeiras se
queriam convencer de que era possível eu continuar a viver sem me
alimentar. Porque se usavam argumentos para me atemorizarem,
passava-se de repente a frases que mostravam carinho e interesse
pela minha pessoa. Eu ouvi dizer nas conferências que tinham uns com
os outros que o meu caso seria de histerismo ou outro qualquer
fenómeno que não sabiam explicar. Um dia em que se aproximou de mim
o Sr. Dr. Dias de Azevedo, eu disse-lhe o que ia na minha alma tão
amargurada: «Para ser tratada como histérica não preciso de estar
aqui.» Mas ele respondeu-me que tivesse coragem e confiança. Eu
assim fiz, para cumprir em tudo a vontade santíssima de Deus. O
Sr. Dr. Gomes de Araújo visitava-me sempre duas ou três vezes ao
dia e sempre a horas desencontradas, para ver se conseguia
descobrir alguma coisa, penso eu, e algumas vezes entrou no meu
quarto já sendo noite, sendo ele a vigia que foi baptizada por
alguém com o nome de «cardeal-diabo». |