APÊNDICE
«Desde
os meus seis ou sete anos não gostava de estar ociosa, e então
ocupava-me em pôr tudo em ordem em casa. Gostava muito de ir ao rio
lavar roupa. Quando mais não tinha que lavar, tirava o meu
aventalinho e ia lavá-lo. Entretinha-me a arrumar a lenha, pondo as
achas encasteladas e muito direitinhas.
Às
vezes, era no jardim que trabalhava, ocupando-me a cuidar das
plantas que haviam de dar flores que ofereceríamos para adornar os
altares da igreja.
Gostava
de tudo perfeito e asseado, mesmo quando doente.
Tinha
nojo do que estava sujo e fazia limpezas, as mais custosas, porque
alegrava-me de ver tudo limpinho.
Pouco
depois de virmos da Póvoa de Varzim – onde aprendi o pouco que sei –
viemos morar para o Calvário. A casa onde vivíamos não era assim
como é hoje. Tinha a cozinha na parte de baixo. Na primeira noite
que passámos aqui, minha mãe mandou-me despejar fora da porta da
cozinha uma gamela de água. Eu tive medo e por essa razão disse à
minha mãe que não ia. Ela deu-me uma bofetada. Por má vontade nunca
disse à minha mãe: eu não vou. Deus me livre! Ela procurava-nos a
cara e não sei onde devíamos ir encontrá-la!...
Minha
irmã, com os seus 12 anos, principiou a aprender a costurar. Uma das
primeiras peças de vestuário que fez foi uma camisa para mim. A
camisa era muito larga e com um talho como se fosse para um rapaz.
Eu, apesar de ter os meus nove anos, escarneci da obra e da
costureira. Peguei nela, vestia por cima da roupa que trazia e vim
assim até à nossa casa. Minha irmã, às gargalhadas, ia dizendo: «Ó
Alexandrina, tira a camisa, que é uma vergonha!...» Eu não me
importei; vim assim e também me ria à vontade.
Em
Santa Eulália de Rio Covo (tinha eu os meus 11 ou 12 anos) viviam
meus tios que adoeceram com uma febre intitulada a espanhola. Minha
avó foi tratar deles, mas adoeceu também. Para olhar por eles foi
minha mãe que também ficou doente. Por fim, fomos nós, apesar de ser
novinhas. O meu tio morreu à noite e ficámos lá até à Missa do
sétimo dia.
Foi
preciso ir ao arroz, mas tinha que passar pelo quarto donde meu tio
morrera. Ao chegar à porta do quarto, senti-me tomada de medo. Não
entrei. A minha avó veio dar-mo. À noite, era preciso ir fechar a
janela. Chegando à parte da sala, disse comigo: Eu hei-de perder o
medo. E passei devagar, mesmo com esta intenção. Abri a porta,
passei por onde tinha visto o cadáver e fui ao quarto onde ele
morreu. Desde então, nunca tive medo. Venci-me a mim mesma, à minha
custa.
Quando
tinha doze ou treze anos, tinha muita força. Um homem começou a
fazer-se mito forte com outras raparigas. Ele estava sentado. Eu
dirigi-me a ele e voltei-o. Ele pôs-se a gritar: «Deixa-me!
Deixa-me!» Mas deixei-o só quando quis. O meu fim era só: como ele
era homem, que mostrasse a sua força.
Aos
treze anos dei uma bofetada a um homem casado que me tinha dirigido
uns palavrões… Virei as costas a um rapaz rico que me esperava num
lugar solitário, por onde eu tinha de passar, para me falar em
namoro.
Com
catorze anos, tinha muito gosto em assistir aos moribundos.
Lembro-me de um homenzinho que estava a morrer e de uma pequena
minha amiga. Fui à casa do homenzinho e encontrei-o no meio duns
manteirinhos velhos. Vim a casa e pedi à minha mãe que lhe
emprestasse roupa de cama. Minha mãe fez-me a vontade e eu, muito
contente, fui levar a roupa e fiquei a fazer companhia às filhas. O
homem durou uns doze dias. Apareceu em casa do doente um homem a
pedir lenha à filha dele, mas ela não a tinha. Começou a disparatar.
Eu disse: «Ela não tem tido tempo de a ir arranjar; que há-de
fazer?» O homem respondeu: «Se não fosse pela generosidade da tua
mãe, levavas duas bofetadas!» Não mas deu, porque eu calei-me.
Quando não, era ele capaz de mas dar e eu ficava com elas…
Veio
aqui uma rapariga dizer que estava a morrer uma vizinha. Minha irmã
pegou num livro e num garrafãozinho de água benta e foi à casa da
moribunda. Seguiram-na duas aprendizas de costura. Eu fui também.
Minha irmã começou a ler as orações da boa morte. Estava nervosa e
tremia, pois custava-lhe muito assistir aos moribundos. A minha irmã
acabou de ler quando a mulherzinha morreu e disse: «Até agora fiz o
que pude; agora não tenho coragem para mais.» Vi a filha ao pé da
mãe da morta. A neta fugiu e eu não tive coragem para a deixar só.
Fiquei a ajudar a lavá-la e a vesti-la. Estava cheia de chagas.
Exalava um cheiro horrível. Julguei que caía sem sentidos, porque me
sentia mal. Outra mulher que se encontrava no quarto, percebendo o
meu estado, foi buscar uns raminhos de sardinheiras e deu-mos a
cheirar. Só vim para casa depois de tudo pronto.
Com os
meus dezasseis anos, e já doente, fui à casa de uma vizinha onde
minha irmã estava a trabalhar de costura. Ao deparar com um fato de
rapaz, vesti-o e apareci junto da minha irmã e da dona da casa.
Riram-se a escangalhar. Depois disse-me a dona da casa: «Olha, vai
pela estrada fora, que os meus filhos e o meu marido andam a podar
as videiras por cima da estrada.» Eu pensei que me conheceriam, mas
resolvi e fui. Os senhores não me reconheceram e, muito admirados,
pararam de trabalhar, para ver se conheciam o cavalheiro. Da janela
da casa, minha irmã e a dona da casa encheram-se de rir.
Entre
os meus 17-18 anos, eu e a minha irmã partimos daqui para irmos a
Aldreu, com o fim de fazermos flores artificiais por conta das
zeladoras e a pedido do pároco. Eu já andava doente. Fui para
ajudara a Deolinda e virmos embora mais depressa. Hospedámo-nos na
residência do Pároco. Dois rapazes dos lados de Viana foram lá e
queriam namorar com a Deolinda, mesmo nas vésperas de virmos embora.
Pediram ao pároco para jogarmos as cartas. Pusemo-nos à lareira e o
jogo passou-se em conversa. O pároco, quando nos viu, dirigiu-se aos
rapazes assim: «Ai, ai! Então estou aqui há quatro anos e nunca
vieram cá jogar e hoje vieram?»
Na
noite seguinte, quando havíamos de vir embora, houve grande trovoada
e chuva que fez muita lama. Sendo eu muito doente, a sobrinha do
pároco emprestou-me uns socos e a minha irmã veio descalça. Um
quarto de hora depois de sairmos de casa, desatou a chover
novamente. O sangue espirrava-me dos pés, por causa do calçado não
ser meu e por ter os pés muito mimosos, pois havia muito tempo que
me não descalçava. As dores eram muitas e, por fim, tive de me
descalçar, molhando-nos todas. Quando chegámos à estação, o comboio
tinha partido haviam passado cinco minutos. Minha irmã desatou a
chorar ao ver como eu estava. Eram nove horas da manhã. Só havia
comboio às 11 horas, mas só parava em Barcelos, não nos convinha
esse comboio. Esperámos na estação. Apareceram uns professores de
Aldreu que nos levaram a tomar café. Só continuámos a viagem mais
tarde, até que chegámos a casa da tia em Santa Eulália. Ela
preparou-nos uma boa refeição e não queria que viéssemos embora por
nos ver cansadas e ser tarde. Teimámos e prometemos vir só até
Chorente, onde vivia a tia Felismina. De lá viemos até Balasar, onde
chegámos alta noite. Batemos à porta, mas a mãe não estava em casa.
Uma vizinha disse: «Olhem, a Sra. Matilde está a morrer.» A vossa
mãe estava lá. Fomos ter com ela. No dia seguinte fui a casa da
moribunda. Uma sobrinha dela disse-me: «Precisava tanto de ir a
casa…» Eu respondi: «Vá, que eu fico.» E ela: «Não tens medo? – Eu
não tenho medo nenhum!» Daí a pouco, a Sra. Matilde agonizava. Eu
rezei sempre aquilo que entendia, mas sem medo nenhum. |