Após quarenta
dias, o retorno a casa
O Dr.
Araújo, sem me dizer o que ia fazer, tomou a borracha que tinha
sobre o estômago e um garrafão de água que as vigias tinham para
molharem o pano da cabeça e infundiu lá o que ele quis para eu, que
ignorava o facto, se chupasse do pano ou da borracha, como o outro
médico afirmava, houvesse em mim algum transtorno que eles lá
sabiam, exigindo das vigias que eu não pedisse que me fosse mudado o
gelo. Assim o fiz, apesar de, por vezes, ela tentar mudá-lo. Eu
respondia: «Põe-se fora de mim para arrefecer. Manda o Sr. Doutor e
é assim que eu cumpro.» Voltou-se então ao rigor de antes ou pior,
proibindo de qualquer forma até que se me falasse de Jesus, julgando
que com isso podia tirar o que anda dentro de nós. «Não consinto –
dizia ele – que chame a sua irmã a não ser uma vez por noite.» A
vigia, muitas vezes, como que a tentar-me, durante a noite, com
carinho impostor (não quer dizer que ela seja impostora, mas era a
impressão que me deixava): «Santinha, minha santinha – dizia-me –
sempre nessa posição! Eu chamo, eu chamo a sua irmã.»

Deolinda, irmã da Beata
Alexandrina, e Sãozinha, a professora
—
«Muito obrigada, minha senhora, não quero. Manda o Senhor Doutor: é
só uma vez que ela vem.»
E
quando, de facto, a minha irmã vinha por sua vez dar-me o jeito na
cama, segundo o médico permitira, a vigia acendia a luz, abria a
porta e punha-se a par com a minha irmã. Logo que a irmã se
retirava, fingindo compaixão e cuidados pelo frio que eu podia
apanhar, descobria-me mais, para ver se alguma coisa me tivesse
deixado debaixo da roupa.
Eu
compreendia muito bem e abria os braços sobre as almofadas para ela
ver melhor, fingindo não compreender. «Só por Vós, Jesus!»
Não
faltaram as seduções para ver se eu tomava alguma coisa das suas
comidas. Quando me mostravam os petiscos sem dizer nada, eu
contentava-me com sorrir-lhes… E quando ofereciam a comida com
palavras, eu agradecia: «Muito obrigada!», mas sempre a sorrir,
mostrando não compreender a sua maldade.
Quantas
vezes me foi tirada a roupa toda para ser examinada!
Quando
me via só, e principalmente de noite, parecia-me que o tempo tinha
duração da eternidade. Sentia que o meu coração fosse como uma
árvore que enraizasse com as suas veias pelo soalho e pelas paredes
e que a fúria de tanta tempestade as arrancava, ficava-me tudo por
terra… e que todos e tudo me calcassem. A fúria da tempestade era
tão grande que, por fim, sentia que quisesse arrancar essas veias e
tudo caísse por terra. Dizendo isto, sinto de não dizer nada do que
eu passei nesses dias… Tudo se me apresenta pavorosamente à minha
memória. Que tormento! … Só o amor de Jesus pode vencer e a loucura
das almas!
Sentindo aproximar-se o médico: «Lá vem o carrasco visitar a pobre
encarcerada pelo amor de Jesus e das lamas. Não ofendi ninguém a não
ser a Vós, meu Jesus, mas os homens querem que desta maneira e sem o
pensarem eu pague assim as minhas ingratidões.»
Vendo a
minha irmã desalentada que aparecia de vez em quando à bandeira da
porta a perguntar se eu estava pior… procurava encorajá-la. Coitada!
Ela ouvira a conversa do médico que o meu envenenamento era certo,
por eu não evacuar. Coitados deles!... Jesus sabe fazer as coisas
melhor do que os homens!
Na
véspera da partida, fora o dia das visitas. Passaram ao pé de mim
todas as criancinhas do Refúgio, a quem dei rebuçados e com quem
rezei por todos o da casa.
A minha
irmã sentia-se outra e todos o notaram. Fui visitada talvez por mil
e quinhentas pessoas… Os polícias tiveram de intervir para manter a
ordem. Achei muita graça a um dos polícias que, encarregado de
manter a ordem, se limitou a pôr-se ao meu lado e ali ficou todo o
tempo, contentando-se com dizer de vez em quando ao povo: «Passem!
Passem!»
Que
impressão, meu Deus, aquele burburinho do povo! Não valeram as
súplicas da minha irmã para que acabassem com aquilo. Não valeram de
nada os polícias. O mesmo médico teve de ir à janela a dizer que se
devia acabar porque era impossível mais movimento para me não
matarem. Quanta gente julgava que a própria doente tivesse morrido!
Eu, de facto, fiquei humilhada, abismada e cansadíssima com o nojo
de mim mesma pelos beijos recebidos, as lágrimas, etc. que me
deixaram no rosto, a dizer-me uma estima que não mereço e não quero.
A
primeira coisa que eu fiz foi pedir à minha irmã que me lavasse. No
dia da partida, de manhã, o Médico, que não dormira quase nada, pela
responsabilidade, chegou ao Refúgio onde muita gente esperava para
poder visitar-me… e depois de estar um pouco comigo, deixou entrar
algumas pessoas.
Foi
então que nos disse que ficássemos à vontade e que a observação
terminara; deixou a minha irmã comer ao pé de mim e disse-me: «No
mês do Outubro terão lá, em Balasar, a minha visita, não como
médico espião, mas como amigo que as estima.»
Beijei,
reconhecida, a mão do Sr. Dr. de Araújo e agradeci
reconhecida todos os cuidados que tiveram para comigo, e fiz isso
com toda a sinceridade, pois sabia muito bem que, embora tivesse
sido áspero para comigo, mostrou toda a seriedade com que devia ser
tomado o meu caso.
Naquela
tarde do dia 20 de Julho, foram as despedidas das religiosas e das
vigias. Todas as vigias me fizeram oferta das suas prendas. Algumas
delas vieram assistir à minha partida. Estava já dentro da auto-maca
e foi uma despejar sobre mim um frasco de perfume. Trazia consigo um
ramo de cravos, oferta de uma senhora, horas antes de eu me retirar.
No decorrer da viagem, ofereceram-me dois ramos de flores. Recebi-as
por delicadeza, apesar de não prever o resultado que vinha a dar,
que havia de vir pouco depois a ser causa de maiores sofrimentos
para mim. Penso que as pessoas que mas ofereceram era por saberem a
estima e a loucura que eu tinha por elas. Só Jesus sabe quanto eu
amo florinhas, porque amo o Autor delas. Quantas vezes as queridas
florinhas me serviam para meditação – via nelas o poder, a bondade e
o amor de Jesus! Nem o perfume, nem as flores, nem a multidão do
povo que rodeava o nosso carro no decorrer da viagem foram motivo da
mais pequenina vaidade para mim. Quando parámos para eu descansar e
eu via tanto povo a aproximar-se de mim com tantas exclamações, eu
dizia logo ao meu médico assistente, que vinha ao meu lado: «Vamos,
vamos, Sr. Doutor!»
Por
vezes, pensava que me tornava impertinente, mas ele tinha muita
paciência comigo.
Durante
a viagem, vivi mais dentro em mim do que fora. O mar, tudo o que se
me apresentava aos meus olhos, convidavam-me ao silêncio, à vida
íntima com Deus. Não tinha de que ter vaidade: tudo isso eram
motivos para me humilhar e fazer pequenina até desaparecer. O que
seria de mim se fosse julgada pelo mundo! Deitaram tanta malícia
onde não havia nenhuma. Perdoai-lhes, Jesus! Não conhecem as Vossas
coisas!
Comovi-me com as lágrimas das vigias e das pessoas. Foi preciso
telefonar à polícia para conter o povo. E saí daquela bendita casa
alegre por ter cumprido o meu dever e por regressar aos meus e ao
meu querido quartinho, de que tivera tantas saudades. Quando cheguei
ao meu quartinho, parecia mentira entrar nele. Houve lágrimas, mas
desta vez muito diferentes: eram de alegria. Depois de estar na
minha cama, por muito tempo, não pude consentir que me tocassem,
soltava grandes gemidos com dores das mais dolorosas. Foi o efeito
da viagem. Agora digo eu: Por quem me sacrifiquei assim? Seria isto
também por vaidade? Ó mundo, ó pobre mundo! Vaidade, mas pelo quê?
Que somos nós sem Deus? Quem seria capaz de sofrer tanto por uma
grandeza e uma vaidade do mundo?
Quarenta dias passados na Foz: só Jesus sabe o que eu lá passei,
quantos espinhos a ferirem-me, quantas setas cravadas em meu
coração! Quantas humilhações, quantas humilhações!
Razão
tinha o meu médico na minha ida para lá, ao colocar-me na testa um
pano molhado, em dizer-me: «Tem por aqui uns cabelos brancos, mas
quando vier ainda há-de ter muitos mais.» E, de facto, assim
aconteceu: ele já adivinhava tudo o que me esperava. Mas é tão bom
passarmos por tudo por amor de Jesus! |