ARGUMENTOS DO
MÉDICO...
Ainda
que eu vivesse até ao fim do mundo, nunca mais poderia esquecer a
impressão que me causava o abrir e fechar das portas pelo médico,
porque estava sempre à espera do que ele iria dizer. Sentia uma
impressão
tão
grande que o meu coração estremecia e a minha alma mais triste se
sentia. E quantas vezes dizia e repetia a Jesus: «Que esta noite
sirva para dar luz a ele, às pessoas que me rodeiam e a todas as
almas que se encontram nas trevas».
Nas
conversas e interrogatórios, que várias vezes me fez, empregou o Sr.
Doutor todos os meios possíveis, para me convencer a alimentar-me e
fazer-me sentir que não devia fazer assim, porque Deus não gostava.
Até pelos escrúpulos me quis levar. Mais, a enfermeira tentou muitas
vezes levar-me pelo lado do coração; uma das vezes que falou comigo,
até queria ver se conseguia tirar-me a fé. Serviu-se de quantos
meios tinha ao seu alcance, e, com interrogatórios intermináveis e
torturantes para me levar a desanimar, julgando que tudo isto,
quanto se tem passado em mim, fosse influência humana e não de Deus.
Se em todos os dias que era interrogada pelo médico me parecia ter
diante de mim um lobo com pele de cordeiro, neste dia, pior ainda:
parecia-me ver nele o próprio Satanás, com as suas artes, com seus
sorrisos manhosos, a tentara tirar-me a fé e a persuadir-me que tudo
era ilusão.
«Convença-se, a menina — dizia ele — que Deus não quer que sofra. Se
quer salvar os outros, que os salve Ele, se é verdade que tem poder
para isso! Se é verdade que Deus recompensa aqueles que sofrem, para
si já não tem recompensa para lhe dar, pelo que tem sofrido».
Mas,
meu Deus, eu sei que Vós sois infinito, infinito no poder, infinito
nos Vossos prémios.
Se
fosse como ele diz, por quem sofro eu?
Acompanhava as suas palavras com um olhar maliciosos de demónio.
(Assim me parecia.) Eu, então respondi-lhe:
«São
tão grandes, tão grandes as coisas de Nosso Senhor, e nós somos tão
pequeninos, tão pequeninos, ao menos eu!» Ficou-se; e depois,
indignado, disse: «Tem razão; mas eu sou pessoa maior um bocado!» –
e saiu.
«Quão
longe estava o médico de conhecer esta lei do amor das almas!
Se ele soubesse o valor duma alma, veria então que nada é demais
tudo quanto façamos para as salvar.
Era uma
chuva constante de humilhações e sacrifícios. Oh, se eu soubesse
sofrer bem, quanto tinha que oferecer a Jesus! Estavam sempre a
aparecer coisas novas que humilhavam e sacrificavam. Tinha aos pés
da minha cama um retrato da pequenina Jacinta, que me mandaram para
lá. Eu olhava-a com amor e, então, já sem temer que as vigias
contassem ao médico, dizia assim: «Querida Jacinta, tu, tão
pequenina, soubeste o que isto custa! Ajuda-me, lá do Céu onde
estás.» Só o auxílio do Céu, só as orações de almas boas podiam ser
a minha força, para subir tão doloroso calvário e suportar o peso de
tão pesadíssima cruz!
Era
interrogada pelo Sr. Dr. Gomes de Araújo todas as vezes que ele
vinha junto de mim. Repetia frequentes vezes as mesmas perguntas e
todas as vezes me deixava assustadíssima, dizendo quase sempre:
«Temos muito que conversar.»
Logo
que eu o via sair do quarto, respirava fundo e dizia para mim mesma:
Graças a Deus que já estou livre de ti. Mas logo o pensamento que
ele depressa voltava me deixava um sofrimento bem amargo.
Um dia,
sentado ao meu lado direito, procurou todos os meios para
convencer-me de que tudo isto que se passava eram ilusões minhas e
então principiou com uns rodeios, muito ao longe, sobre a Medicina,
falando num professor seu e num Colégio do Porto onde ele tinha
gasto muitas horas de noite no seu estudo, não tinha dormido, e
tinha escrito muitas páginas e convencido de que tinha acertado com
o seu estudo, foi ao encontro do professor contar-lhe o resultado
das suas lições. O professor dizia-lhe: «Tem a certeza do que diz?»
E ele afirmava-lhe, uma e outra vez, que sim, por esta e por aquela
forma. A conversa já ia longa e eu fitava-o como se nada
compreendesse, e dizia para mim mesma: «Andas por tão longe, para
vires cair tão perto!» Enquanto ele continuava dizendo: «Eu estava
convencido que tinha feito um belo estudo; o professor deixou-me
dizer tudo e depois disse-me: “Não vê que está enganado, que não
pode ser nada disso, por esta e por aquela razão?” Eu fiquei: Meu
Deus, tantas horas perdidas! Tantas horas de ilusões! Tudo caiu por
terra!» — Eu, que já via há muito tempo aonde ele queria chegar,
sorri-me e disse: «Não cai, Senhor Doutor. Tenho à minha frente um
Director muito santo e muito sábio e estudou o caso por
alguns anos. E, se a obra é de Deus, não há nada que a deite por
terra».
Ele, um
pouco embaraçado, disse-me: «Ai não!...» - fingindo com as suas
palavras que não era isso o que ele queria dizer. Dada a minha
resposta, depressa se retirou, e já era tempo.
Ai, meu
Jesus, só convosco podia desabafar, só para Vós eram as minhas
lágrimas. Cantava com o maior dos entusiasmos. Mas dentro em mim e
até aos meus próprios olhos parecia-me não haver sol nem dia.
Algumas vezes, durante a noite, lembrava-me: o que estará, agora,
minha irmã a fazer? Estará a chorar? E lembrando-me que ela sofria
tanto por minha causa, uma vez não pude conter as lágrimas. Chorei,
chorei. Só receava que Jesus ficasse triste pelas minhas lágrimas.
Mas Ele bem sabia que tudo queria e aceitava por Seu amor, com
desejo imenso de lhe dar todas as almas. E oferecia-Lhe as minhas
lágrimas como actos de amor para os sacrários. Quanta mais amargura,
mais amor, não é, meu Jesus? Aceitai. Foi minha mãe visitar-me aos
16 dias e aos 30. Tinha tanta saudade dela! Estava tão pouquinho
tempo junto de mim e sempre sob os olhares curiosos das espias! Ela
chorava e eu fingia não ter coração: sorria-me e gracejava com ela,
acariciava-a, e com o meu sorriso enganador escondia a amargura que
me ia na alma, e retirava as lágrimas que teimavam deslizar-me nas
faces. Animava-a e desabafava intimamente sozinha com o meu Jesus.
Era a minha cruz, e quem não havia de levá-la por amor d’Aquele que
morreu por mim?
Assim
iam passando os dias nesta luta constante, alternados pela mudança
das senhoras enfermeiras, que iam e vinham conforme a vontade do
médico. Com algumas sofri imenso porque chegaram a ir além dos
direitos que lhes competiam e dos deveres que tinham a cumprir. Ao
aproximarem-se os dias que o médico tinha dito que nos iria pôr mais
à vontade, visto estar convencido da verdade, deixando minha irmã
passar mais algum tempo junto de mim e da vigia que desempenhava a
sua missão, concedendo também, aos 29 dias, uma visita, embora de
fugida, das irmãs franciscanas do Refúgio, pensávamos também mandar
dizer aos meus o dia do regresso, mas, sem o esperarmos, deu-se o
contrário.
Uma das
vigias informou do que se passava, a meu respeito, um médico que não
me conhecia nem conhecia o caso, o que levantou novas dúvidas.
Atreveu-se esse médico a dizer que não podia ser, que as vigias
facilmente se deixavam enganar e que só acreditaria, mandando para
lá enfermeiras da sua confiança.
O
Sr. Dr. Araújo, um pouco indignado por não acreditarem na
observação feita por ele, exigiu que o mesmo mandasse então uma
pessoa da sua confiança. E escolheu uma irmã dele. Quando nós
pensávamos ver suavizada a nossa dor, foi então que se nos pediu
nova prova, mais triste e dolorosa.
O Sr.
Dr. Araújo procurou convencer-nos de que era conveniente
passar lá ainda dez dias, embora ele estivesse convencidíssimo da
verdade, e, contra a vontade de minha irmã, ele insistiu que era
preciso ficar para convencer o outro médico. Eu respondi-lhe: «Quem
está trinta está quarenta». Assim é que ficou resolvido.
O Dr.
Álvaro, na verdade, nem exigia tanto tempo, bastava-lhe só, para se
convencer, que eu ficasse quarenta e oito horas sem comer e sem
evacuar, e não exigia mais.
Foi o
mesmo Dr. Araújo que, delicadamente, para honra do seu nome,
convidou a senhora a ficar mais um dia, depois mais outro.
Mesmo
depois de cumprida a sua missão, essa senhora voltou várias vezes a
visitar-me, convencida enfim da verdade. Este último tempo foi um
verdadeiro calvário e eu oferecia a Nosso Senhor e à Mãezinha este
grande sacrifício. Dura prova, meu Deus! |