20
de Outubro
Meu
Deus, falham-me as minhas forças, o corpo é cinza, a dor morre
também. Tudo passa, vem a eternidade e eu de mãos vazias.
Quero
chorar: Jesus, sinto que é necessário banhar o mundo de lágrimas e
de sangue. Quero chorar as minhas culpas, quero chorar as do mundo
inteiro. Quero sofrer, desejo sofrer e sofro e sinto que a dor não é
minha; sinto que não sou eu que sofro.
Uma das mais belas
fotografias da Beata Alexandrina
Oh,
miséria, oh, miséria! Que ruínas no meu pó, nas minhas cinzas! Trato
com o meu Jesus friamente, trato com Ele tão de longe. Meu Deus, que
horror, que distância me separa de Vós! Parece-me não haver nada no
mundo que possa conduzir-me ao Vosso amor e unir-me para sempre ao
Vossa divino Coração.
Senhor,
eu não sou eu, não posso estar aqui; esta vida não é minha: Jesus,
tende compaixão, não Vos retireis de mim, não volteis as costas à
mais miserável das Vossas filhas! Jesus, sou miséria, mas é com esta
miséria que eu quero amar-Vos, é mesmo assim que eu quero ser Vossa,
inteiramente Vossa.
Deixai,
Jesus, esta pobre filhinha desprender seus voos, deixai-me,
deixai-me voar para Vós. O Céu, o Céu, Jesus, criaste-me para ele!
Vede as
minhas lutas com Satanás. Esta noite, meu Deus, meu Deus, tentou o
maldito levar-me ao desespero de salvação. Dizia-me que já me não
salvava.
— Deus
já lavrou a sua sentença de condenação para ti. Tu queres gozar e
podes gozar todos os prazeres à vontade porque já não tens salvação.
Dava
gargalhadas, chamava-me os nomes mais feios e dizia-me :
— Queres salvar as outras almas e não salvas a tua. Estás condenada,
estás condenada.
Gargalhadas, mais gargalhadas e gestos maliciosos.
Sou a
Vossa vítima, Jesus, quero sofrer tudo e não pecar. Quero amar-Vos,
quero louvar-Vos. Sou vítima, Jesus, sou vítima das almas. Dou-Vos o
meu sangue, dou-Vos tudo, tudo.
O
demónio estava furioso, atirava-se para mim com fúria de leão. Como
estava preso com cadeias de ferro e não conseguia chegar-me, uivava
de desesperação e mordia nele mesmo e dizia-me:
— O
inferno está fechado, mas o teu corpo é que as
(pode-se ignorar este pronome) paga.
Olha que noite de crimes. Sofres pelos outros e não sofres por ti.
Renuncia a todos os sofrimentos, renuncia a todas as ofertas que
fizeste a Deus; diz-lhe que não queres nada, porque afinal já estás
condenada. Fechaste o inferno para os outros e abriste-o para ti.
Que eternidade desgraçada te espera! Acredita no que te digo.
Antes o
inferno, meu Jesus, brado ao Céu no meu tão tremendo combate. Antes
o inferno que pecar ! Antes uma eternidade desgraçada do que
desgostar-Vos na mínima coisinha. Amo-Vos, amo-Vos, meu Jesus, nas
lutas, nos combates, no calvário e na cruz!
Serenou
a tempestade e adormeci. Pouco depois preparei-me para comungar,
triste, triste e como um mendigo a tiritar de frio. Tinha medo de
receber a Jesus, não era digna de O receber, de O possuir.
Ele
veio, esquecido da minha miséria; uni-me a Ele, aumentaram-me as
ânsias de O amar. Quero corações, quero línguas para O amarem e
louvarem por mim. Ó Jesus, ó Mãezinha, ó Céu, dá-me amor para eu
amar com esse amor.
24
de Outubro
Morri,
morri para o mundo, morri para tudo. Deu o último suspiro aquele
pequenino sopro de vida que já há muito vinha a agonizar,
desaparecendo de todo a força que o arrastava pelo cemitério imenso.
Até os próprios bichos desapareceram, aqueles que vinham sobre as
minhas cinzas e sobre outras que não eram minhas, mas que estavam ao
meu cuidado.
Há dias
que principiou a cair uma chuva de sangue, vinda do alto. Choveu
sangue e ainda continua a chover. A princípio banhou as cinzas;
depois lavou-as de tal forma até que desapareceram, já não existe
nada. O sangue continua a vir do alto; cai sobre o que está limpo,
já não tem mais que lavar.
Ó meu
Deus, como posso eu falar duma coisa que não existe! Eu sou nada,
vou falar da dor, da dor que não é minha, da dor que não me
pertence.
Ó meu
Jesus, sinto a dor e não sou eu que sofro, faltou a vida à dor que
era minha. Vejo-a agora a sofrer de rasto, faz-me lembrar a cobra
quando lhe falta o veneno. Vejo esta dor envolta na lama e no lodo
tombando para um e outro lado. Essa vida que era dela está a viver
mais alta, deixou-a para não mais voltar. Vive lá em cima, muito lá
em cima, olhando a dor cá em baixo e olha-a com compaixão. Esta vida
que vive no alto é uma vida semelhante àquela vida de que falei no
dia da Assunção da Mãezinha, deste mesmo ano. Não sei exprimir
melhor os meus sentimentos.
Ó
Jesus, Vós sabeis e compreendeis tudo; eu não sei que vida é esta.
Tende dó de mim, valei-me nos meus combates, nas minhas lutas com
Satanás. Ele continua a seduzir-me ao mal. Quer instruir-me com as
suas lições vergonhosas e maliciosas. Vede que tudo sofro por Vosso
amor e pelas almas. Vede que não quero pecar, não quero ferir o
Vosso divino Coração. Feri-lo sim, feri-lo sempre mas com setas de
amor, não com o pecado; não quero ferir-Vos, não quero
desgostar-Vos.
Por
Vossa bondade e amor, ele não tem vindo tão frequentes vezes. Mas
ai, meu Jesus, a manha dele! Quando vem, vem mais furioso e
desastrado. E faz sofrer tanto a minha pobre alma quando me diz:
— Vês
como és tu que queres pecar e pecas quando queres? Agora que sentes
o teu corpo desfalecido, entregas-te aos prazeres menos vezes. Vês
como és tu e não eu?
E
insulta-me então com todos os nomes feios e maus. Ameaça-me que vou
ter uma noite de crimes e depois demora-se a vir, deixando-me na
alma desejos de pecar. Depois, quando vem, lança-me em rosto esses
sentimentos de minha alma para assim me afirmar mais que sou eu que
quero, que sou eu que peco.
— Meu
Jesus, bem sabeis que não quero. Só Vós vedes como fico assustada
quando o ouço ao longe com as suas ameaças. Fico sempre aterrada a
ver quando chega a hora do martírio. Banhada em suor e lágrimas,
recorro a Vós nos momentos mais graves.
Jesus,
valei-me! Mãezinha, mostrai que sois minha Mãe, entregai-me a Jesus
como vítima, quero desagravá-lo, quero reparar, mas não quero pecar.
Entreguei-me a Ele como escrava; quero servi-lo, quero amá-lo e
dar-lhe almas. Pecar, nunca, ó Jesus, ó Mãezinha! Sou vítima, sou
vítima!
No
último ataque, das 11 à meia-noite desta mesma noite, banhada em
suor, chorei sentidas lágrimas. O coração não podia resistir mais.
Quantas vezes repeti:
Sagrado
Coração de Jesus, tenho confiança em Vós! Juro-Vos que não quero
pecar. Valei-me, Mãezinha, valei-me lá do Céu!
O
malvado punha-se ao lado, dançava, batia palmas. Dizia-me que os
meus escritos estavam na mão dele, que ia ser uma vergonha em todo o
Portugal.
— Eles
não chegam mais à mão do P. Humberto nem do P. Pinho — e
chamava-lhes nomes feios. Pronunciava também o nome do Médico e
dizia-me dele coisas feias. Desesperado, gritava ao longe:
— Não
os posso ver, tenho-lhes raiva, odeio-os!
Terminada a luta, fiquei tristíssima, só com o receio de ter pecado.
Ó
Jesus, eu quero confiar em Vós e na palavra de quem me dirige. Pobre
de mim, se aqui confio e me encorajo, ali desfaleço e fico duvidosa!
Vinde,
Mãezinha, em meu auxílio! Valei-me, valei-me, Jesus!
Fiquei
em paz. Muito unida aos sacrários, contente por estar acordada,
dizia:
Jesus,
quero velar, quero amar pelos que estão a dormir. Quero sofrer,
quero reparar pelos que estão a pecar.
Assim
passavam as horas e eu entrava em mim para falar com as Personagens
divinas da minha alma. Sinto por tantas vezes a sua realeza divina
dentro em mim! Gosto tanto de viver na solidão e no silêncio com
estas Personagens! Sinto que o divino Espírito Santo no seu trono,
no trono do meu coração, no meio do Pai e do filho, mas acima deles,
bate as suas asinhas brancas como para me despertar e dizer-me que
estão ali. Irradia-me com o seu amor, dá-me efusões do seu fogo
divino, leva-me a santas inspirações, move-me a praticar obras boas,
obras de caridade e tantas vezes com tanto sacrifício. Para quantas
coisas sinto a sua acção divina. Quando estou em êxtase com Jesus e
Ele me manda escrever tudo, eu não chego a dizer-Lhe nada, mas fico
triste por me lembrar que não sou capaz. E Ele, que tudo conhece,
diz-me logo:
— Vai,
que o divino Espírito Santo está contigo, tens toda a sua luz
divina.
E é bem
verdade! Vou para escrever, lembro-me de tudo, compreendo tudo sem
dificuldade. Sinto uma luz que alumia todos os caminhos. XE "Como o
Espirito Santo vejo coisas nas almas" O divino Espírito Santo! Com a
sua luz vejo tantas coisas nas almas, ansiosas tantas vezes por mas
dizerem e não têm coragem.
Dá-me o
Espírito Santo conhecimento de tudo. E quantas vezes pressentimentos
reais, como da vinda de pessoas junto de mim, acontecimentos,
etc. ... O divino Espírito Santo é fogo que me ilumina e eleva
muitas vezes às alturas: perco-me nele, irradio-me nele. Oh, quem me
dera todas as almas conhecessem e sentissem nelas a presença do Pai,
do Filho e do Espírito Santo!
Meu
Jesus, tenho tantas ânsias de Vos amar! Desfaleço com tantas
saudades do Céu. Que tristeza viver aqui! Tende dó de mim! Sinto-me
tão ferida, e por pessoas que desconhecem ferir-me assim! Assemelhai
o meu coração ao Vosso. Por Vosso amor quero perdoar a todos, por
Vosso amor e por amor às almas aceito estes espinhos que tão
profundamente ferem a minha cabeça em tantas horas do dia.
Se o
mundo compreendesse a dor! Se o mundo compreendesse uma ofensa feita
a Vós, não pecava, só Vos amava. Jesus, dai-me amor sem fim, dai-me
amor para todos. Dai-me força e coragem para eu obedecer escrevendo
tudo como me mandam. Que repugnância, meu Jesus, em tudo que
escrevo! Se não fosse a obediência, não escrevia nada apesar da
grande necessidade que sinto de o fazer. Amo a obediência, custe o
que custar; quero ser fiel, quero obedecer em tudo.
Muito
obrigada, meu Jesus, pelo alívio que me destes trazendo junto de mim
quem tão bem compreende a minha alma. Com os olhos fitos em Vós,
embora sempre na cruz, pude respirar mais fundo. Ó cruz, ó amor do
meu Jesus, quero-te, quero-te, morro por ti!
25
de Outubro
Dia a
dia, momento a momento, torna-se a minha vida mais penosa e triste.
Por um lado, a ordem da obediência obriga-me a viver escondida não
recebendo pessoas para assim, a pouco e pouco, ficar esquecida. Ó
meu Deus, se eu tivesse querer, era assim que eu queria; mas que
engano! Quanto mais me querem escondida, mais me fazem conhecida.
Chegam-me visitas dum lado e doutro. Despertou agora a curiosidade
dos médicos: que tormento para mim! Ó almas, ó almas, quanto é
preciso sofrer para Vos salvar! Ó Jesus, ó Jesus, quanto custa a
conquista do Vosso amor!
Esta
manhã, quando me preparava para a visita do meu Amado, sentia-me
triste e amargurada.
Meu
Deus, receber-Vos assim, tão cheia de misérias! Tende dó de mim,
Jesus! Ó Mãezinha, purificai o meu coração, o meu corpo e a minha
alma; preparai-me para a visita de Jesus.
Ele
veio, fez serenar tudo, sentia-O na minha alma, suavizou a minha dor
unindo-me toda a Ele. A seguir uns momentos, deram-me a notícia que
os meus escritos que se julgavam perdidos e que o demónio afirmava
estarem na mão dele tinham aparecido. Senti muita alegria. Já que
tinha Jesus em meu coração, aproveitei a ocasião de Lhe agradecer
mais de perto. Pouco depois principiaram as visitas. De Jesus recebi
força para tão grandes sacrifícios.
Eram
duas horas e meia da tarde e entraram no meu quarto cinco homens.
Tive logo o pressentimento de que algum deles era médico.
Principiaram a interrogar-me; não sei porquê, os meus olhos
fitavam-se mais num. Soube depois que era esse o médico. Como tinha
o pressentimento de que estava a falar com um médico, respondia a
tudo e fazia por me explicar bem da minha doença. Não me faltou a
serenidade. Ó Jesus, só Vós sabeis quanto custa tudo isto. Quando
acabará, ó meu Deus? Com certeza só com a minha morte! Respondia com
firmeza, pois a verdade só tem um caminho. Chegou a ocasião de me
falarem na alimentação. Duro golpe! Quem me dera que ninguém
soubesse!
— Então
não come nada?
Eu não
sabia se estava a falar com pessoas religiosas. Mas sem respeito
humano, respondi:
— Comungo todos os dias.
Um
silêncio profundo por uns momentos se travou sobre todos; nem um
gesto, nem um sorriso. Pouco depois retiraram-se muito delicada e
respeitosamente. Ó Jesus, ó Mãezinha, divino Espírito Santo, dai a
Vossa santa luz a estas almas; fazei que sejam só Vossas e sigam os
Vossos caminhos. Que as minhas humilhações e sacrifícios sirvam para
a salvação de todos. Ó Jesus, quero viver para Vos amar e para a
salvação das almas! |