26
de Outubro
Durante a noite tive com o demónio um violento combate. Meu Deus,
tantas coisas feias, tantos gestos e ameaças e convites para o mal!
Não sei o que ele punha em minha alma, não sei das manhas de que ele
se servia; o que me parecia era que a minha alma tinha desejos de
pecar e que os meus lábios pronunciavam:
quero
pecar, troco o Céu, troco Jesus pelos prazeres, pelos gozos do
mundo. Isto eram manhas do demónio; Jesus bem sabia que eu não
queria pecar. Mãezinha, guardai-me, valei-me, oferecei-me a Jesus
como vítima. Dizei-Lhe que não renuncio aos sofrimentos, mas que
renuncio ao pecado. Pecar, não; amar-Vos, sim! Amar-Vos a Vós, amar
a Jesus! O maldito, no meio de horríveis coisas, convidava-me a que
o beijasse. Então redobrei de forças e atirava beijinhos para a
Mãezinha e dizia-lhe:
—
Dai-os a Jesus e levai-os por mim aos sacrários.
Procurava entrar em mim o mais intimamente possível e aí beijar o
Pai, o Filho e o Espírito Santo, rico tesouro que possuo. O demónio
retirou-se mostrando-se contente por me ter levado ao ponto que
desejava e afirmava-me eu ter pecado gravemente. Apesar dos meus
esforços para não ofender o meu Jesus, fiquei triste e duvidosa.
Unidinha aos sacrários, mas envergonhada diante de Jesus, queria
acreditar nas palavras de quem me dirige, que não pecava, e
custava-me a acreditar. Eram quatro horas da manhã e eu
desfalecidíssima preparava-me para a visita de Jesus. Ele não
esperou que eu o recebesse, veio consolar-me antes. Chamou-me:
― Minha filha, vem para os meus braços. Deixa a tua cruz, descansa
em mim, toma conforto.
Senti
que Jesus me desprendeu da cruz, via-a separada de mim: era grande.
E eu então sentia-me nos braços de Jesus, estreitada por Ele ao seu
divino Coração. Ao ouvir que Ele me dizia:
― Sacia a tua fome, sacia a tua sede, recebe o meu Sangue que é a
tua vida, o teu alimento. Estou em ti como Rei no palácio do teu
coração. Venho a ti como esposo fiel e cheio de amor. Venho a ti
como Pai cheio de doçura, ternura e compaixão.
Chegou
aos meus lábios o seu Sangue divino, deu-mo a beber por algum tempo.
Depois senti o meu coração e peito aberto, e dentro em mim caía uma
chuva de sangue. Jesus dizia-me :
― Recebe, é o Sangue das minhas veias.
Toma
coragem, enche-te de mim para levares a tua cruz. Se soubesses o bem
que estás aqui a fazer às almas, morrerias de pasmo! Confia nas
palavras de quem te dirige. Não me ofendes; confia nas palavras
afirmativas do teu Jesus, que valem mais do que uma jura. Confia,
confia; não me ofendes, não posso consentir que me ofendas.
Dito
isto, estreitou-me de novo forte e docemente. De novo fiquei na
cruz, de pés e mãos cravadas e a cabeça bem penetrada de agudos
espinhos, inclinada, bem firme sobre a cruz. Pouco depois,
comunguei; não senti novos alívios. Passei o dia abraçada à cruz.
Ai, quantas recordações tristes! Quantas amarguras e torturas de
alma! Quantas ânsias de amar o meu Jesus! Quantos pensamentos! Eu só
queria quem me ensinasse a amá-Lo!
A
chuva de sangue vinda do alto continua a cair sobre o cemitério, mas
já não encontra cinzas para lavar: tudo desapareceu. Bendito seja o
amor de Jesus, benditas sejam as suas invenções para salvar as
almas!
28
de Outubro
Hoje
foi um dia cheio; espinhos, só espinhos penetraram o meu corpo de
cima a baixo; nem um só bocadinho me foi poupado. Tantas
contrariedades! Tantos sofrimentos!
Meu
Jesus, por Vosso amor. Tudo o que é por Vosso amor não custa!
Olhava
o Santíssimo Coração de Jesus, olhava-o crucificado na cruz e
murmurava ao mesmo tempo que sorria aos sofrimentos: bendita seja a
cruz de cada dia, bendita a dor de cada momento.
Passavam-se as horas e com elas iam passando as dores e angústias da
minha alma. De vez enquanto era ferida por novos golpes. O demónio
de longe a longe ameaçava-me e atormentava-me a imaginação. Queria
confiar em Jesus e não podia, queria confiar nas palavras de quem me
dirige e não me era possível, queria confiar em mim mesma, nos
sentimentos da minha alma, pior ainda.
— Ó
meu Deus, ó meu Deus, se no meio disto eu Vos amasse! Ficava por
algum tempo com os olhos fixos no Sagrado Coração de Jesus. Que sede
de O amar!
Era já
noite, feriram-me agudas espadas. Pratiquei actos de humildade não
por entender que fosse necessário fazê-los, mas sim para dar bom
exemplo de ensinar alguém a ser humilde para consolarem a Jesus e O
amarem cada vez mais. Durante a noite com o coração a sangrar de dor
via correr dum lado e do outro muitos regatozinhos de sangue. Sobre
eles poisavam bandos de pombinhas sem conta bebendo o sangue e de
contentes batiam às asas. A amargura da minha alma continuava. O
demónio com as suas feias palavras e acções tentava levar-me ao
desânimo, ao desespero. Fazia actos de fé a ver se tinha confiança
para melhor resistir. Ó amargura, triste amargura!
30
de Outubro – Dia de Cristo Rei
Logo
de manhã na preparação para a comunhão esforcei-me por consolar a
Jesus. Pedi à Mãezinha que Lhe fizesse a oferta das minhas orações e
de todas as coisas para Sua maior glória, para que Ele triunfasse e
reinasse no mundo inteiro em todos os corações. Dei-me a Jesus por
Maria. Veio Jesus para o meu coração. Voltei aos mesmos regatozinhos
de sangue: tantos, tantos bandos de pombinhas alegres, satisfeitas,
bebendo, levantando-se aqui e poisando-se acolá. O sangue corria e
eu sem saber de onde. Terminou a visão e eu sem saber o que
significava, mas nem por isso me preocupava. A agonia da minha alma
não me deixava pensar em nada disso.
Fingia
no meio dos meus que estava muito satisfeita para assim ver em todos
a paz e a alegria. Fui visitada por muita gente. Perguntas
esquisitas, coisas desagradáveis: faziam-me sofrer muito.
Ó
Jesus, ó Mãezinha, tudo por Vosso amor; dai-me coragem para eu
sorrir a tudo sem dar a conhecer a minha dor. Sentia-me tão nada, um
nada que nunca existiu. Sentia-me morta e morta toda a humanidade,
mas era tal morte que nunca teve vida. Ó meu Deus, que há-de ser de
mim, que doloroso tormento! Pelo meio desta mortandade apareciam
ânsias quase insuportáveis de amar a Jesus, amar sem sentir, amar
sem conhecer o amor.
Chegou
a noite. Terríveis ameaças do demónio atormentavam-me e enchiam-me
de medo e pavor. Meu Jesus, quero só o que Vós quiserdes, estou
pronta para tudo, não me deixais ofender-Vos.
O
demónio é mentiroso, mas desta vez não mentiu. Ontem com feias
palavras mandava-me preparar para a noitada e não faltou. Eu não sei
bem, mas talvez das 10 para as 11 horas veio ele com toda a fúria e
maldade infernal. Ó meu Deus, nem posso pensar, ai que horror!
Lutei, lutei por muito tempo. O grande tormento da minha alma era
parecer-me que ele conseguia que eu dissesse: não quero Jesus, não
quero Maria, não quero o Céu, odeio-os, volto-lhe as costas, quero o
prazer, quero gozar. Eu não o juro, mas parece-me que não dizia nada
disto. Só de longe a longe eu podia chamar por Jesus ou pela
Mãezinha e oferecer-me como vítima e escrava. Uns momentos em que me
parecia pecar sem remédio apertei como pude na minha mão o crucifixo
e a [medalha da] Mãezinha e dizia-lhes: amar sim, pecar não.
E foi tal a aflição do meu coração que pensei que morria por espaço
de muito tempo. Vinha-me ao pensamento a realização das promessas de
Jesus e animava-me. Eu quero o Céu, mas quero uma morte de amor, não
quero morrer nas mãos de Satanás. Via-me sobre um horroroso abismo;
por entre as trevas dele sobressaíam uns ganchos rebitados muito
polidos. Assustadíssima porque me parecia cair nele sem remédio,
fiquei desfalecida. O coração estava em fortes arrancos e, aflito,
fazia grande ruído; parecia-me que a morte estava para aquele
momento. Só com a minha mente dizia: ó meu Jesus, se eu ao menos não
pecasse não me importava todo este sofrimento. Fiquei nesta
prostração e triste agonia. O pecado, o pecado, que preocupação a
minha! Passaram-se uns momentos: nova visão de sangue e bandos de
pombinhas. Mas desta vez falou-me Jesus:
― Não
pecas, não pecas, minha filha. Confia, meu amor, tem coragem. Exijo
de ti esta reparação. Vistes aquele abismo? Com este sofrimento
evitas de cair nele muitas almas. Os ganchos que nele estão são as
prisões em que ficam presas para sempre. Este sangue é o sangue da
tua dor, do teu martírio. As pombinhas que nele bebem são as almas
que por ti se salvam; nele se lavam e purificam. Alegra-te querida,
alegra-te, amada, és minha, só minha. Não pecas, amas-me, reparas,
desagravas o meu divino Coração. Amo-te, amo-te, minha loucura.
A
noite ia adiantada, uns pequeninos intervalos de sono, queria estar
muito unidinha a Jesus, esforçava-me para isso, mas mal podia. Com
una lanterna que ardia fitava o seu divino Coração, fitava [o
quadro d]a Mãezinha e a Jesus pequenino em seus braços,
pedia-Lhe amor, graça e pureza, pedia-Lhes tudo. Chegou a hora de
comungar: fiquei unida a Jesus. Pouco depois passou-me pelo
pensamento o grande combate da noite, desfaleci mais ainda.
Indiferente a tudo e de tudo depreendida, sentia lá no alto aquela
vida que já me pertenceu enquanto que a dor lutava e rastejava no
lodo nojento e na lama.
De vez
em quando o Divino Espírito Santo batia as asas em meu coração e
dentro dele infundia o seu biquinho como para me alimentar e dar
coragem. Sinto-o em mim em forma de pomba.
É já
noite. O que me espera nela? Jesus o sabe. |