16
de Outubro
Caminhando sempre arrastadas por alguém, sem já há tanto tempo darem
sinal de vida, lá vão as minhas cinzas aprofundando-se, momento a
momento, neste cemitério imenso, num abismo sem fim. Uma montanha de
ruínas, de misérias e de crimes cai sobre elas infundindo-as
(mergulhando-as)
mais e mais
nesse
abismo. Oh, meu Deus, tudo passa, tudo desaparece! Não sei pelo que
sinto agora uma chuva de sangue cair sobre estas pobres cinzas
amortecidas, quase a desaparecerem por completo. Esse sangue forma
rios, banha essas cinzas que ficam mergulhadas nele, ficando assim
numa massa de sangue, só sangue.
O que
é isto, meu Jesus ? Não o sei: é dor para mim e o resto basta que
Vós o saibais. Se no meio disto eu Vos amasse! Os meus desejos são
profundos, são vivíssimos. Eu não queria que um só momento da minha
vida se passasse sem eu repetir sempre: Amo-Vos, meu Jesus, eu
amo-Vos. Não queria outro movimento nem outra palavra para os meus
lábios.
Jesus,
o demónio enfurecido não cessa os seus combates; sede comigo para eu
resistir, é furor diabólico. Num deles, dos mais violentos,
acusava-me como a maior das criminosas.
— E
dizes que és inocente e que não queres pecar e é só isso o que tu
queres.
Dizia-me mais, muito mais.
— Ó
meu Deus, bem sabeis que não me tenho por inocente e que por graça e
misericórdia Vossa conheço a minha miséria. Meu Jesus, sou a Vossa
vítima.
Enquanto que eu renovava a oferta a Jesus e Lhe dizia, não quero
pecar, o demónio repetia:
— Criminosa! Criminosa!
E
Jesus, dentro de mim, prontamente a defender-me:
— Inocente! Inocente!
O
demónio espavorido, de cara voltada para trás como que a olhar
alguém, fugia para muito longe, desesperado. Não ouvia bem, mas
parecia blasfemar contra Jesus. Tudo se serenou e pouco depois eu
adormeci.
Vivo
triste e aterradíssima. Meu Deus, que medo eu tenho de pecar! Ainda
hoje ouvia ao longe as seduções e palavras feias de Satanás. Às suas
tremendas ameaças, cada vez me aterrava mais. Olhei para Jesus
crucificado e disse:
Bendita seja a cruz de cada dia, benditos sejam os sofrimentos de
cada momento!
Fez-me
lembrar um condenando que vai para o martírio, mas que vai porque é
obrigado, e enquanto caminha, desesperadamente, vai amaldiçoando
tudo. Assim me acontecia a mim. O demónio levava-me com as suas
manhas, desafiava-me com as suas maldades. O amor a Jesus e às almas
obrigava-me a caminhar. No auge da minha aflição, as minhas
maldições foram estas:
— Sou
Vossa, Jesus! Tudo por Vós e pelas almas! Não quero pecar! Ai, pecar
não, meu Jesus! Sou a Vossa vítima.
Ao
terminar a luta, o coração a desfazer em dor, banhada em suores,
acabei com lágrimas, com o triste receio de ter pecado.
Bem
sabeis, Senhor, que não quero ofender-Vos; confio em Vós e nas
palavras de quem me dirige. Em recompensa da minha dor, dai-me
almas, todas as almas e o Vosso amor sem fim.
17
de Outubro
Hoje
sinto o meu corpo em um tal cansaço, basta dizer: está moído, é
cinza, só cinza. O demónio deixou-me mais em paz, ou melhor, Jesus
assim o permitiu. Mas ele serviu-se do meu estado de desfalecimento
para me atacar violentamente. Foi só um ataque no dia de hoje, mas
valeu não sei por quantos. Chamando-me muitos nomes feios, dizia-me:
— Dizes que sou eu que te atormento, e vês que és tu que queres
pecar. Hoje não tens feito nada do costume, porque te sentes
cansada. Vês que és tu que pecas e queres pecar.
Continuando a dizer-me as coisas mais horrorosas, acrescentou:
— Prepara-te para uma noite de crimes, para uma noite de ofensas a
esse Deus a quem dizes amar, o qual tem por ti o maior aborrecimento
e desprezo.
O
combate foi aterrador a mais não poder ser. Foi no auge de tanta
agonia que recorri a Jesus e à Mãezinha. O meu pobre coração
parecia-me que tinha o movimento e o barulho de uma fábrica. O meu
peito era pequenino para o conter.
Jesus,
sou a Vossa vítima; Jesus, não quero pecar! Mãezinha, valei-me! Ai,
o que será de mim!
Banhada em suor, principiei a chorar. Depois de reflectir bem no
perigo em que estava metida, exclamei profunda e dolorosamente:
Ó meu
Deus, eu estou na Vossa divina presença. Que vergonha, que vergonha,
meu Jesus!
Depois
disto, uma voz vinda só de Deus tranquilizou a minha alma; sosseguei
e não pensei por algum tempo que tinha ofendido a Jesus. Fiquei em
ânsias de O amar e dizia-Lhe:
Ó
Jesus, se houvessem novas invenções de amor, como eu Vos queria
amar! Se houvessem fábricas que inventassem amor e me fosse possível
construir o mundo todo em fábricas, era isso o que eu fazia, Jesus.
Queria ver o mundo todo, o Céu e a terra, a amar-Vos por mim. Não
caibo em mim, Jesus; Jesus, meu doce Amor, fazei que eu Vos ame:
vede os meus desejos, vede as ânsias que me consomem.
18
de Outubro
O
demónio bem me ameaça, mas de nada valeram as suas ameaças. Jesus
não consentiu que ele me atormentasse durante a noite.
Nesta
manhã, quando me preparava para comungar, atormentaram-me as dúvidas
por algum tempo. Depois de Jesus entrar no meu coração, tudo que
eram dúvidas desapareceram, senti uma grande paz e doce união sem me
poder separar daquele por quem só suspiro. Esta doçura e suavidade
de alma, estas ânsias e loucura de amor por Jesus deram alento,
deram vida às cinzas do meu pobre corpo. De tudo necessitei.
Após
umas horas da sagrada Comunhão, inventou o maldito novos meios de me
atormentar. Eram horas do comboio, nele deviam regressar da Póvoa
minha mãe e uma prima. Foi minha irmã esperá-las ao apeadeiro. A
demora era grande; não aparecia ninguém. Principiou o malvado, um
pouco retirado de mim, com as maiores injúrias e afrontas, com as
palavras mais indecentes e feias.
— Olha, minha criminosa, tua mãe e tua prima estão mortas. O corpo
delas está em ruínas, nem um hospital, nem um cemitério. Umas
galgueiras (valas) estão
abertas para as sepultar no lugar do desastre, a elas e a centenas e
centenas de pessoas: não escapou uma só. Tantos inocentes mortos por
tua causa, que és culpada. Deus não via outra forma de castigar e
punir os teus crimes; foi para te castigar que procedeu assim.
Manda-me aqui avisar-te que tudo isto foi por tu O ofenderes tão
gravemente. Tua irmã foi ao seu encontro, foi vítima junto das
ruínas delas.
Via e
sentia na minha alma as galgueiras, o sangue e todos aqueles
estilhaços desastrosos. Não eram cadáveres, era sangue, eram as
carnes todas em bocadinhos. Meu Deus, tudo isto por causa minha!
Sentia-me de verdade a maior das criminosas e a causadora de todo
aquele desastre.
— Ó
Jesus, confio em Vós, espero que tudo isto é mentira. Perdoai-me,
tende misericórdia de mim. Bem sabeis que os meus desejos são de Vos
amar; nada de pecado, nada de desgosto para Vós.
O
demónio, às gargalhadas, acompanhadas de nomes
(feios), fingia tocar viola.
Recordou-me a minha prima que havia ordem de quem tinha autoridade
para isso de o mandar retirar. Pegando no crucifixo, aspergindo água
benta, usou das palavras que tinha ouvido dizer, e ele retirou-se.
Mas antes de se retirar, enfurecido, escarrava virado para o rosto
dela. Cheguei a perguntar-lhe se ela sentia os escarros;
respondeu-me que não. Foram duas horas de luta. Lutei sempre com os
olhos em Jesus e sem dar uma palavra ao inimigo. Estava cansada e
aterrada de tão triste cena. Veio Jesus com o seu bálsamo divino,
curou por algum tempo as minhas chagas.
— Minha filha, minha filha, não acredites em Satanás: é meu inimigo,
é inimigo das almas. Não houve desastre nenhum, foi apenas um
atraso; os teus estão para chegar. Confia no teu Jesus que te dá
tudo: dá-te paz, doçura e amor. Confia, confia: sou o teu Jesus,
louquinho de amor por ti. Confia plenamente em Jesus.
Não
duvidei mais. Minutos depois, chegavam todos os que me eram
queridos.
Pobres
almas que se deixam convencer por Satanás! Pobre de mim, se Jesus me
abandonasse um momento só, seria eu então a mais desgraçada. |