Sorrio
à minha cruz, mas ó meu Deus, com quanta agonia de alma. Vejo o
tempo da minha vida todo perdido. Parece-me que não vivi para Deus
nem para as almas ; passei no mundo como se não passasse. Que contas
darei ao meu Deus ? Anseio por sair deste exílio. E como hei-de
aparecer diante do meu Jesus de mãos vazias ? Sinto que nada fiz por
Ele nem para Ele. Estou mais gelada do que o gelo.
Depois
da Sagrada Comunhão, ao sentir-me assim tão gelada, ao ver-me tão
longe de Jesus apesar de O receber, a minha alma chora de tristeza e
dor. Sou como um cadáver que nada sente, pois a dor que sinto não é
minha, as lágrimas que choro minhas não são. O cadáver não ama nem
sente o amor com que é amado. Ó morte, ó morte, que tremenda és. Que
tristeza ! Morte do corpo e morte da alma. Por tudo sou esmagada,
esmaga-me o peso das humilhações, esmaga-me o peso do abandono e
desprezo, esmaga-se a dor angustiosa de guardar o mundo, de o não
deixar cometer nem um só pecado, de fazer com que todo ele ame a
Jesus com toda a graça e pureza. Esmaga-me o peso da ânsia sem fim
de entrar no Céu com o Universo inteiro a entoar a Jesus um hino de
louvor, um hino eterno. Ai meu Jesus, o que me espera ! Ouço ao
longe a tempestade que se espalha ao largo e outra que se aproxima.
A sua fúria vem ferir meu coração. Deixá-lo, deixá-lo sangrar. Tomai
conta Jesus, tomai conta do sangue que dele correr, é sangue
derramado por Vosso amor, é sangue que corre à procura das almas.
Quero salvá-las todas, todas. Ó prova, dura prova, mas amada prova ;
em ti vejo Jesus, em ti vejo a salvação das almas. Ai, tanto quero
ver junto de mim os que me são mais queridos e tanto medo tenho
deles. Estou sozinha, vivo sozinha. Ó meu Jesus, e quando me dais o
meu Paizinho espiritual ? Quando realizais as Vossas divinas
promessas ? Vivo da esperança e da confiança em Vós. Confio no Vosso
amor e na Vossa misericórdia infinita. É quinta-feira, triste
quinta-feira. Caminho morta para outra morte. Que medo, que pavor. É
já noite. A minha alma apavorada fugiu para um ermo, quer-se
sozinha ; está envergonhada fugiu para a solidão para aí chorar
lágrimas de maior agonia. Oh ! quantos sofrimentos ela vê para ela e
para o corpo, vê tudo, nada lhe é oculto. O demónio anda como os
ladrões a formar os seus assaltos, atormenta-me se dó nem piedade.
Nem posso pensar nas coisas que ele me diz, tão feias, tão
criminosas, contra mim, contra pessoas da minha maior estima e
contra Jesus que é o que mais me aflige. Afirma-me descaradamente
que ofendo a Deus e nesse ponto perece-me ele falar verdade. Chama
todos os demónios para virem pecar comigo e eles vêem com toda a
manha infernal. Que triste e doloroso penar. Parece-me que chego a
ir às portas da eternidade. Não sei como o coração não me abre o
peito com tanta força que bate. Quando me parece morrer é que eu
chamo mais facilmente por Jesus e pela Mãezinha : se não é com os
lábios é com o coração e com o pensamento. Mas é ao terminar da
luta, ao fim do perigo, pois antes o maldito raras vezes me deixa.
Quem poderá acudir-me ? Que socorro posso esperar a não ser do Céu ?
pobre de mim.
Não
desaparecem do mundo as sextas-feiras ! Ó meu Deus, corro para a
morte e a morte para mim ! Que dor esta tão angustiosa ! A minha
cabeça está dilacerada. O meu corpo com os maus tratos despedaçado ;
é só sangue, é uma chaga viva. É tal a aflição e dor da minha alma
que sinto e parece-me ver nela o desespero duma criatura. Por graça
e grande misericórdia do Senhor não estou desesperada ; sinto o
efeito da desesperação, mas estou calma e serena, sequiosa de mais
dor, sequiosa de mais purificação e mais amor. Só com isto o mundo
será salvo ; só com estas cadeias fortes o poderei prender. O sangue
corre, a vida vai fugindo ; foge para dar a vida, vai louva a salvar
o mundo Meu Jesus, dai-me a dor que eu tanto amo, dai-me a
purificação que eu tanto desejo. Guardai-me em Vós e na Vossa e
minha querida Mãezinha. Ouvi a minha alma num brado contínuo de
agonia pela dor que sente e de ânsias de Vos entregar o mundo.
Queria-o ver nas minhas mãos para vo-lo oferecer como o sacerdote vê
em suas mãos a Sagrada Hóstia e a oferece ao Eterno Pai.
— Jesus, olhai para mim, vede as ânsias tão agoniosas e imolai-me
como Vos aprouver para Vos dar amor e com ele a humanidade. Queria
dizer-Vos muito, mas como nada sei, nada Vos digo.
No meio
destas ânsias veio Jesus :
— “Minha filha, anjo da terra, flor mimosa, flor cândida do Paraíso.
Vem minha filha recolher mais uma prova do meu esposório contigo, da
minha união conjugal”.
Neste
momento Jesus tomou a minha mão beijou-me e acariciou-me e
estreitou-me docemente e Ele. Fiquei como que a nadar num mar de
gozo, num mar de amor. Jesus continuou :
— “Recebe a efusão do meu amor divino, recebe-o porque é a tua vida
e tu és a vida das almas. Coragem minha filha, mais um pouco, o teu
Céu está perto, agora está perto. Em breve a tua alma desprendida da
terra voará ao Céu como a pomba branca e pura voa ao seu ninho. O
teu ninho é o Céu junto do trono da Majestade divina ao lado da
minha bendita Mãe. Voa a rainha da terra para o seu esposo celeste,
para junto do Rei do Céu. É junto a Mim, minha filha, que tu vais
continuar a vigiar, a governar o teu reinado na terra. Não fica nela
herdeiro da tua coroa nem do teu reinado. A ti entreguei o reinado
do mundo, do Céu governarás. Quanto te deve o mundo por e que por
ele tens feito e por Eu o ter guardado no cofre riquíssimo do teu
coração. És um mar de dor, és um mar de amor. Estás transformada no
infinito, tens sobre as almas poder infinito. Quanto te é devedora a
humanidade, quanto te é devedor Portugal. O mundo devia estar
destruído. Foi para evitar males maiores que permiti haver ainda os
males presentes. Pede, pede de novo muita oração e penitência.
Coragem, minha querida jardineira, jardineira do jardim celeste,
agricultora divina. Semeia, colhe para Jesus. Semeia graça, semeia
pureza, semeia amor. O amor é a mais bela flor. Quem ama é puro, não
ofende O seu Amado. Quem ama sofre por amor. Ó filhinha amada, a tua
dor tem sido a salvação das almas, guia e amparo dos pecadores.
Escuta, filhinha, escuta os anjos a entoarem-me louvores e um Te
Deum de acção de graças pela vítima que escolhi, pela redentora que
ao mundo dei. Todo o Céu vê a glória que me deste, todo o Céu vê o
valor da tua dor. Escuta, escuta as vozes celestes. Este louvor é ao
terminar o ano. Este louvor é dado em teu nome e em nome dos que
sofrem contigo, dos que cuidam de ti e da minha causa divina. Dá a
todos o meu agradecimento divino. Olha o que te digo na última
sexta-feira deste ano, na última que te falo e renovo a tua
crucifixão : não te enganas, nunca te enganaste. Anima-te, tem
coragem para a luta. Antes da tua morte todas as minhas divinas
promessas serão compridas. O esposo que ama a sua esposa não a
engana nem a deixa enganar”.
Quando
Jesus me mandou escutar ouvi as vozes celestes dos anjos, vozes tão
harmoniosas que arrebatavam a alma ao Céu. Só a alma podia ouvir, só
ela podia gozar. Jesus disse-me :
— “É
neste arrebatamento, num êxtase de amor saído por entre a dor que
voarás ao Céu”.
— Obrigada, meu Jesus, abençoai esta pobrezinha que tão miserável e
pequenina à vista da Vossa grandeza desaparece. Dai-me força, dai-me
amor.
Quase
todos os dias ora dum lado ora do outro vêm espinhos, por vezes bem
agudos, cravarem-se em meu coração. Recebo-os sempre com alegria
embora com custo : manda-os Jesus ; sejam bem-vindos ; são mimos do
Senhor. São mimos que ferem ! Também eu, por minha miséria, cravo em
Jesus espinhos muito mais dolorosos e Ele é inocente eu não sou.
Estes pensamentos animam, dão-me coragem para abraçar por amor tudo
o que de Jesus vem. Que vida tão dolorosa a minha ! Meu Deus, como
são variados os sofrimentos que me dais ! Passo horas do dia e da
noite em ânsias dolorosas de guardar o mundo. Jesus modificou agora
estas ânsias. Umas horas quero gradá-lo, mas é como se fosse
obrigada. Não sei pelo quê, não sei o que é : quero prendê-lo e não
sei de onde me vem a força para o fazer, não é por mim, alguma coisa
me obriga ; parece-me ser o amor que se sujeita a prendê-lo. Ao
mesmo tempo faço-o com repugnância, parece-me que ele era digno de
esquecimento e desprezo. Vêm outras horas que tenho tanta pena de
sentir pelo mundo a repugnância e o aborrecimento e avivam-se em mim
vivos desejos de o conquistar e de o possuir, enlouqueço-me tanto de
amor por ele que me faz lembrar um pai a quem lhe fugiu o filho e
voltando a casa o pai em vez de o castigar abraça-o e cobre-o de
carícias. Eu louca de alegria a querer abraçar toda a humanidade
chego a exclamar “Ó mundo, estou louca de ti ; ó como eu te quero,
como eu te amo. Em ti vejo Jesus”.
Tantas
coisas queria dizer destas ânsias que me consomem. Como pode ser
isto, amar o mundo, aborrecer o mundo, querer possuí-lo se eu quero
deixá-lo.
— Ó meu
Deus, ó meu Jesus, ponde em mim os Vossos olhares, ampara-me, assim
vencerei !
Durante
a noite fui assaltada, mas assaltada tormentosamente. Já durante a
tarde a minha alma sentia que ele andava a rodear-me. De longe a
longe ouvia dele palavras de ameaça. Veio então não sei a que hora
nem o tempo que ele demorou. Sei que foi muito. Convidou o inferno
para vir atormentar-me. Dizia-me o que há de feio, feio e horroroso.
Durante a luta passei por vários abismos ; uns mais espaçosos,
outros mais fundos. Mas apesar de muito feios ainda sobressaiam
neles uns raiozinhos de luz. O último foi o mais aterrador ;
fantasmas negros o rodeavam. Eram tantos, tantos demónios, mais
negros que o carvão, em várias formas e caras tão feias. E eu
prestes a cair neles. Parecia-me perder a vida, o coração batia
aflitivamente. O suor banhava-me o corpo. O maldito afirmava-me
pecar e que gostava de pecar. A hora era grave. Meu Deus, que tanto
perigo. Pelos meus lábios saíam zunidos como tempestade furiosa. Eu
mesma dizia coisas. Ai que raiva a do maldito. Ouvia o ranger dos
dentes e querer-me estrancinhar. Só então eu repetia :
— Ó
Jesus, ó Mãezinha, ó Mãezinha, valei-me, sou a Vossa vítima, sou a
Vossa escrava. Ouvi então Jesus :
— “Desempenha ó anjo do Céu a missão que te confiei. Toma em tuas
mãos a minha esposa querida, o meu anjo em carne, leva-a, coloca-a
no seu lugar. Não pecaste, minha filha, convence-te, não pecaste.
São altos os juízos divinos. Escolhi-te para reparares por todos os
pecados. Se não fosse a tua reparação quantas almas se perderiam. As
que caíssem neste último abismo nunca mais de lá saiam. São os que
preferem o pecado Deus ; pecam com toda a malícia, com todo o
conhecimento. Antes querem o prazer do que possuir a Deus. Eis a
razão porque não querias nas tuas mãos o terço”.
Por um
acaso, quando principiou a luta possuía nas mãos o terço da
Mãezinha. Durante o combate não o quis, arrumei-o. Continuou Jesus :
— “Os
abismos que ainda possuíam luz são aquelas almas que pecam por
fraqueza, mas temem o pecado, querem vencer-se. Em ti vence o amor,
a tua loucura por elas. Não pecaste, anima-te, minha pomba bela”.
Terminado isto, estava já na minha posição, confiei em Nosso Senhor,
mas fiquei muito dorida do que se tinha passado. Sempre a causa do
meu sofrimento é o medo de pecar.
Logo
que pude, cedo ainda, principiei as orações da manhã. Sentia que
Jesus não me ouvia palavra, mal as pronunciava logo morriam. Via
todos os sofrimentos passados durante o ano sem nenhuns me
pertencerem nem nenhumas orações, se me pertenceram, mal nasceram
morreram. Estava a terminar o ano e eu sem nada ter que dar a Jesus.
Principiei a ver de tal forma a minha miséria, o meu nada !
Recordava o meu Pai espiritual prisioneiro e a sofrer tanto por
minha causa ! Pensava em todas as luzes que me foram tiradas e que
tanta falta me fizeram para me guiarem e aproximarem de Jesus.
Pensava no meu médico assistente e pessoas queridas que tantos
cuidados, carinhos e amor me têm dispensado. E eu assim, tão nada e
miserável ! Não pude resistir, principiei a chorar.
— Ó meu
Jesus, ai, tantos cuidados e passos perdidos por minha causa ! Ai, o
que eu sou e a quem eles pensam fazer as coisas. Recompensai-os, meu
Deus, enchei-os de Vós, do Vosso amor.
Foi um
dia cheio de amargura. Recebi alguns mimos que me deram alegria.
Quando a alma principiava a senti-la, a saboreá-la, logo vinha Jesus
com um corte separar tudo. Faça-se a Vossa vontade, ó meu Amor, por
Vosso amor.
À meia
noite agradeci a Jesus todos os benefícios recebidos durante o ano e
tudo o que me tinha feito sofrer. Pedi para que rezassem comigo um
“Te Deum” em acção de graças. Terminado ele, acrescentei :
— Obrigada por tudo, meu Jesus, por toda a dor e por toda a alegria.
Perdoai as minhas ingratidões para convosco. Que me espera agora no
novo ano ? Mandai-me o que quiserdes, Jesus, que tudo aceito, mas
não me falteis com a graça precisa e dai-me todo o Vosso amor. |