Enquanto a
Igreja, única autoridade competente, não emitir um parecer contrário,
continuarei a pensar que a experiência mística da Alexandrina deve ser
incluída entre as mais extraordinárias das que foram vividas pelas
almas-vítimas dos últimos séculos.
É
Cristo, o Bom-Pastor da Humanidade, quem suscita e forma criaturas de
tão singular grandeza, tendo em conta as necessidades dos tempos e dos
homens. Por isso Ele dizia a esta sua serva:
Deixa-Me
que te crucifique com ma crucifixão sem igual, para o desempenho da tua
missão, para acudires ao mundo que te dei, que te confiei. Ai dele, ai
dele se não lhe acodem (26/7/1946).
Aquela
palavra deixa sugere-nos uma observação de particular importância
para a justa apreciação das almas assinaladas por fenómenos invulgares:
Deus não opera sem o consentimento e a colaboração das criaturas; muito
pelo contrário, e neste campo mais do que em qualquer outro, Ele opera
na proporção da correspondência da alma.
Todos
quantos acompanharam de perto a vida da Alexandrina confirmam ter sido
através da sua fidelidade de todos os dias – uma fidelidade tão generosa
que causava assombro – que ela chegou ao heroísmo e aos mais excelsos
dons do Céu.
Desta
fidelidade já eu tratei na sua biografia; e também dela se ocupou o seu
primeiro director em duas obras editadas no Brasil.
Todavia,
nada exemplifica melhor tão extraordinária fidelidade do que alguns
trechos da autoria da própria Alexandrina, escolhidos entre o
abundantíssimo material que tenho no meu arquivo e que se devem tornar
conhecidos do público, para assim obedecer a um conjunto de exortações
do próprio Jesus, exortações que julgo, pelo menos, edificantes.
Minha
filha, em que está escrito tudo o que é divino: em ti aprenderão a amar,
em ti apenderão a sofrer, em ti aprenderão como Eu Me comunico às almas
(11/9/1944).
Em outro
êxtase, Jesus afirma à sua serva:
Tu serás
mestra das almas-vítimas.
Era meu
desejo que, através destes trechos dos seus escritos, a Alexandrina,
como irmã mais velha, falasse ao coração de tantas almas humildes e
ignoradas, que se consagram à vida de imolação.
Noutros
colóquios, Jesus disse-lhe:
Especialmente as almas dos sacerdotes aprenderão de ti o que seja a vida
divina numa criatura.
E em 22 de
Dezembro de 1944:
Era meu
desejo que todos os meus discípulos estudassem estas ciências divinas.
Não as estudam, não as compreendem. Dou-lhes as luzes precisas, tentam
apagá-las. Em vão, nada conseguem. Em todos os tempos necessitei de
vítimas; agora, mais que nunca, preciso delas.
Já algum
tempo antes Jesus lhe chamara “Doutora e mestra das ciências divinas,
cheia de sabedoria celeste”.
Assim, a
Alexandrina tem algo a dizer aos sacerdotes, “os discípulos queridos de
Jesus, acerca da vida divina nas almas”. De umas dezenas de anos para
cá, têm aparecido livros edificantes, pletóricos desta doutrina. Mas…
quanta abstracção! Pois, na humildade aldeã de Balasar, os sacerdotes
poderão ver esta graça ou vida divina nas suas realizações
concretas, naquele desenvolvimento a que aludem S. Pedro e S. Paulo
quando nos aconselham a “crescer Jesus Cristo, na graça, como templo
santo do Senhor”. Eles poderão vê-la, esta graça, nas suas obras mais
altas.
A
Alexandrina, uma quase analfabeta (tinha uns escassos meses de
frequência das classes primárias), descreve, admiravelmente, como opera
e se desenvolve esta vida a que damos o nome expressivo e real de
graça e que, em regra, é explicada duma maneira abstracta, sem
jamais atingir a concretização das acções vitais que Jesus opera nas
almas, nessas almas em que nós, os sacerdotes, a devemos cultivar.
Numa das
suas florinhas em honra do Sagrado Coração de Jesus, em 20 de
Junho de 1947, a Alexandrina escreve:
Sofrer e
rezar para que haja mais vida interior e os sacerdotes compreendam a
vida de Jesus nas almas.
Thomas
Merton escreveu:
A graça não
é qualquer coisa com que fazemos boas obras e chegamos até Deus.
Não é uma coisa ou uma substância completamente estranha a
Deus. É a própria presença e acção de Deus em nós… portanto, não
é mercadoria que tenhamos necessidade de Lhe comprar para chegar
até Ele. Tendo em conta o sentido prático das coisas, bem se pode dizer
que a graça é a qualidade do nosso ser que resulta da energia
santificante de Deus a operar dinamicamente na nossa vida.
Assim no-la
apresenta a Alexandrina, de forma a tornar-nos sensíveis a toda a
verdade contida na afirmação de S. Paulo, quando o apóstolo nos fala do
cristão que realiza em si mesmo e de maneira plena os desígnios de Deus:
Não vos
pertenceis a vós mesmos, pertenceis a Cristo.
Guiada pela
graça, a Alexandrina compreendeu que a santidade, à qual aspirava desde
a infância, não é constituída apenas por boas obras e pelo heroísmo
moral, mas também – e principalmente – pela união com Deus “em Cristo”,
para formarmos em nós a “nova criatura”. Com todo o fervor possível,
procurou consentir a Jesus que manifestasse nela a sal virtude e a sua
santidade, removendo todos os obstáculos do egoísmo, da
desobediência, de todo o apego, obstáculos que contrariam o amor. Ela
sentia que devia ser santa, mas que seria Jesus a sua santidade, porque
é através de Jesus que nos tornamos “participantes da natureza divina”
(II Pedro, 1,4). Eis a luz que esclarece umas frases muito frequentes
nos lábios da Alexandrina:
Não
quero pôr obstáculos à causa, não quero prejudicar a causa, é a causa de
Jesus que o quer.
Santa Maria
Madalena de Pazzi descreve-nos as diversas fases da vida da graça vivida
por uma criatura humana na sua mais alta expressão:
O Verbo
desce à alma, a Ele unida e configurada, e nela opera espiritualmente,
tudo quanto de facto operou na sua humanidade, desde a encarnação até à
morte. Isto é, a alma morre, ressuscita, sobre com Ele ao Céu, muito
embora permaneça na terra (1ª parte, cap. 3,
4)
Com o
baptismo, desponta em todo o cristão a vida mística que traz consigo o
gérmen das graças místicas e contemplativas. Tudo quanto Maria Madalena
de Pazzi afirma, e já S. Paulo nos revelara ao estimular o cristão a
“crescer até à maturidade de Cristo, a ter os mesmos sentimentos de
Cristo, a revestir-se dele, a completar em si mesmo o que falta à paixão
de Cristo”, acontece de um modo impossível de verificar e também em
diferentes proporções – em cada um dos baptizados. Realiza-se, porém, de
um modo experimental, embora velado por certo mistério, na alma que
atingiu certo desenvolvimento de graça e um alto grau contemplativo,
especialmente se essa alma se encontra investida duma particular missão
junto dos seus irmãos. E isto também acontece para que a todos se revele
a obra realizada por Jesus, ocultamente, em cada um dos baptizados. A
Alexandrina pertence ao número destas almas eleitas:
“Em ti
Eu reproduzo toda a minha paixão”, diz-lhe
Jesus em 19 de Abril de 1945. “És a cópia mais fiel de
Cristo-Redentor. Eu sigo passo a passo o caminho do teu calvário… Como é
bela a tua missão!... Como ela é eficaz para as almas; tens muito que
fazer, tens tantas a salvar!”
Esta
experiência vivida pela Alexandrina é uma mensagem directa ao homem de
hoje. Isto mesmo o confirma o seguinte trecho, cujo tema aflora, não
poucas vezes, nos diários da Serva de Deus:
“Dezanove séculos são passados que Eu vim ao mundo; e trouxe agora a
nova redentora, escolhida por Mim, para relembrar ao mundo o que Cristo
sofreu, o que é a dor, o que é o amor e loucura pelas almas… Minha
filha, livro onde estão escritas com dor e sangue, letras de oiro e
pedras preciosas, todas, todas as ciências divinas!”
Foi pelo
amor e pela imitação de Jesus crucificado que ela atingiu a sua
transformação nele. “Com Cristo me encontro crucificado. Já não sou eu
que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gál 2, 19-20).
Uma vez
encontrado o caminho para a própria salvação, não mais cessou o Apóstolo
de o apontar aos seus irmãos:
Nós
pregamos a Cristo crucificado!
E, todavia,
esse Cristo aparecera-lhe a ele, Saulo, aureolado pelos fulgores da
ressurreição (1 Cor 15,8). Não obstante, o Apóstolo aferra-se,
pertinazmente, a um pensamento: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (Gál
5,7).
Mas uma
Páscoa só de luz não existe, nem nunca existirá. É mera invenção humana,
sem raízes na história dos tempos. Da cruz à luz; por meio da cruz
chegaremos à luz.
É assim que
o cristão se torna para “espectáculo para o mundo, para os anjos e para
homens” (1 Cor 4,9).
Fonte:
Boletim
de Graças, 1966, n.os 110-111 |