índice
Apresentação
autobiografia
Balasar, 20 de Outubro de 1940
NASCIMENTO E BAPTISMO
PRIMEIROS ANOS DA MINHA INFÂNCIA
DESENVOLVIMENTO DA MINHA INSTRUÇÃO RELIGIOSA.
FREQUÊNCIA DA CATEQUESE
VIVEZA DE CARÁCTER
IDA PARA A PÓVOA A FIM DE FREQUENTAR A ESCOLA
PRIMEIRA VISTA DE JESUS À MINHA ALMA
RECEBI O SANTO CRISMA
AMOR À ORAÇÃO
DEDICAÇÃO PELA ENCARREGADA DA MINHA EDUCAÇÃO
PERSEGUIÇÃO DOS GUARDAS-REPUBLICANOS
REGRESSO À TERRA NATAL
AS MINHAS PRIMEIRAS CONTEMPLAÇÕES
OS MEUS ESCRÚPULOS
AMOR AOS POBREZINHOS, DOENTINHOS E VELHINHOS
AMOR À ORAÇÃO
GRAVE DOENÇA
PERÍODO MAIS DOLOROSO DA MINHA VIDA DE TRABALHO
UM SONHO
UMA TARDE DE RECREIO
UM SALTO
SOFRIMENTOS FÍSICOS E MORAIS
DORES SEM ALÍVIO, DOZE ANOS DE PREOCUPAÇÃO CONTÍNUA
TRATAMENTO A SÉRIO DA MINHA DOENÇA,
VÁRIAS PRETENSÕES DE CASAMENTO
VIGILÂNCIA DA QUERIDA
MÃEZINHA
DESEJOS DE SER CURADA,
CONFORMIDADE COM A VONTADE DE DEUS
A DEVOÇÃO À MÃEZINHA, PREDILECÇÃO PELO MÊS DE MARIA
NOVOS DESEJOS DE SER CURADA.
INTEIRA CONFORMIDADE COM A VONTADE DIVINA
OFERECI-ME A JESUS COMO VÍTIMA
PEQUENINOS SACRIFÍCIOS POR AMOR DE JESUS
COMO HONRAVA JESUS E A SSª VIRGEM
AS MINHAS ORAÇÕES
E UNIÃO ÍNTIMA COM JESUS SACRAMENTADO
COMO JESUS ME ENVIOU O MEU DIRECTOR ESPIRITUAL
COMO HONRAVA JESUS E A SANTÍSSIMA VIRGEM
CONHECIMENTO PERFEITO DA VOZ DE NOSSO SENHOR.
VISÕES CELESTES
COMO MARTIRIZAVA O MEU CORPO
A PRIMEIRA MISSA CELEBRADA NO MEU QUARTINHO.
PRINCÍPIO DA PERDA DOS NOSSOS BENS
COMO HONRAVA JESUS E A SANTÍSSIMA VIRGEM
AS MINHAS ORAÇÕES E
UNIÃO COM JESUS SACRAMENTADO
MORTE APARENTE
UMA VISÃO
UMA GRANDE CRISE, SINTOMAS DE MORTE
A PROTECÇÃO DESVELADA DE JESUS E DA MÃEZINHA
PRIMEIRO EXAME DA SANTA SÉ
PERÍODO EM QUE O DEMÓNIO MAIS ME APOQUENTOU
JESUS MOSTRANDO-ME AS SUAS DIVINAS CHAGAS
O MEU RETIRO ESPIRITUAL
PRIMEIRA CRUCIFIXÃO
DÚVIDAS E RECEIOS DE ENGANAR.
EXAMES DOS MÉDICOS E TEÓLOGOS
SEGUNDO EXAME DA SANTA SÉ
OPINIÕES DO POVO. NOVOS TORMENTOS
VISITA DE UM MÉDICO ENVIADO POR DEUS
CARTA A NOSSA SENHORA
VISITA DO REVº PADRE TERÇAS. CONSEQUÊNCIAS DESTA VISITA
O MEU ENTERRO
A MINHA CAMPA
QUARENTA DIAS PASSADOS NA FOZ (1943)
APÊNDICE
NOTAS
* * * * *
Apresentação
Uma vez, num artigo do Boletim de Graças, o
Padre Humberto citou um seu amigo, o Padre salesiano Eduardo Pavanetti, que dizia
:
«Já há muito sabe quanto aprecio a vida e a
espiritualidade da Alexandrina: pode, portanto, imaginar como me é agradável a
leitura do último livro que recebi há pouco tempo. Como também me alegrei com o
título «Cristo Jesus na Alexandrina». Tudo o que faz para a Alexandrina, fá-lo
par a Igreja: o futuro da Alexandrina na renovação interior da Igreja há-de ser
muito grande e incisivo. A Igreja, depois destas loucuras materialistas, deve
voltar para a «Mística», que é a sua verdadeira vida. E a Alexandrina há-de
dizer uma palavra muito forte e universal.»
Estamos em crer que este alvitre é plenamente
justificado, porque a Alexandrina é uma figura excepcional. Veja-se o retrato
que o mesmo Padre Humberto sobre ela escreveu:
«Ao ser interrogado frequentemente acerca da
Alexandrina, eu costumo afirmar:
“Na minha já
não breve vida sacerdotal abeirei-me de muita gente, de todas as categorias,
mas nunca encontrei nenhuma (inclusive sacerdotes e religiosos) tão
humana e espiritualmente perfeita, sob todos os aspectos, como a
Alexandrina. Nunca!”
Recordando os frequentes contactos que tive
com aquela alma de escol, iluminando-os com os conhecimentos ascéticos que as
leituras espirituais da minha vida sacerdotal me fornecem diariamente, não
consigo descobrir nela a mais pequena sombra de imperfeição. Antes pelo
contrário, descubro cada vez melhor a beleza, o requinte e o heroísmo da virtude
da Alexandrina. Sinto-me cada vez mais levado a admirar a maravilhosa acção da
graça de Deus naquela alma.
Se eu tivesse de apontar a virtude em que ela
mais se distinguiu, não saberia fazê-lo, porque não houve uma que brilhasse nela
mais do que as outras: foi excelente em todas, numa harmonia perfeita. Mesmo
naquelas que exteriormente foram mais provadas: por ex. na obediência à
Autoridade eclesiástica e aos seus directores; na paciência posta tão
rudemente aprova quer pela doença, quer pelas pessoas que a visitavam de maneira
importuna; na caridade para com o próximo, sobretudo com os que lhe
causavam gravíssimos desgostos.
A sua personalidade verdadeiramente gigante
era escorada por um espírito de humildade muito convicta e evidente que aflorava
dos seus lábios e mais ainda das suas atitudes interiores, como facilmente se
pode deduzir da leitura atenta dos seu diários: por um total desapego da sua
vontade, sempre ansiosa em buscar e cumprir a vontade de Deus à custa da
renúncia total dos seus desejos e gostos pessoais.
Era verdadeiramente uma criatura consagrada
de uma forma total ao seu Deus, em espírito de imolação, para reparar as ofensas
que lhe são continuamente dirigidas, e para salvar-lhe almas, todas as almas.
Uma tal consagração não se explica sem um grau eminente de amor de Deus: amor
insaciável, ardoroso, avassalador. Não saberia melhor definir esse amor do que
aplicando-lhe o adjectivo «seráfico», no sentido mais completo da palavra.
Não encontro paralelo desse amor a não ser
na vida dos grandes amantes de Deus, reconhecidos pela Autoridade da Igreja.
Mais ainda que os factos, que podiam causar
impressão, foram estas virtudes sólidas e excepcionais que me ligaram à
Alexandrina: foi delas que me ocupei e preocupei tomando, no devido tempo, a sua
defesa à custa de muitas amarguras.
Foi igualmente o mesmo motivo que me levou a
exigir que ditasse os seus sentimentos de alma, sem os quais teriam ficado
ignoradas as suas riquezas espirituais nos seus aspectos mais íntimos e,
portanto, mais preciosos.
Turim (Itália), 2 de Julho de 1965.
In fide (em fé).
Padre Humberto M. Pasquale»
* * *
A seu modo, as seguintes palavras de Jesus,
do último dia em que a Alexandrina pôde ditar os Sentimentos da Alma (2/9/55),
confirmam quanto disse o Padre. Humberto:
Numa angústia lancinante (eu, Alexandrina)
repeti os meus actos de fé:
“Creio, Jesus, creio que foi para mim o vosso
nascimento, a vossa morte, o vosso calvário.
Creio, Jesus, creio!”
Os meus abismos são tão negros e profundos
que só um Deus podia penetrar neles.
Foi assim que Jesus fez.
Desceu à minha profundeza, trouxe à
superfície e iluminou o meu pobre ser com uns raiozinhos
da sua luz:
“Vem cá, minha filha, luz e farol do
mundo!
Tu que és treva inigualável, és luz que
brilha, farol que tudo ilumina.
A treva é para ti, a luz é para as almas.
Vem cá, luz de quem Eu sou luz, farol de
quem Eu sou farol!
Não posso Eu fazer-te brilhar com o Meu
brilho?
Não posso Eu fazer que sejas farol como Eu
sou farol?”
O Padre Humberto, ou os seus amigos Salesianos,
abriram a Autobiografia da Beata Alexandrina com esta observação:
A Autobiografia, redigida por ordem do
Padre Mariano Pinho, S. J., foi ditada por Alexandrina, aos poucos, a D. Maria
da Conceição Leite Reis Proença, professora de Balasar. Em apêndice, recolhem-se
outros pormenores apontados pelo Padre Humberto Maria Pasquale e Padre Ismael de
Matos, salesianos, em conversa adrede tida com a Alexandrina.
Este livro é assim a primeira obra de fôlego
que a autora ditou. E não é uma obra qualquer, é antes o átrio que dá acesso às
restantes. Há nela páginas notáveis, que nos introduzem no âmago das
experiências místicas que a Alexandrina viveu. De facto, ao tempo em que a
ditou, estava-se no início dos anos quarenta, quando ocorreu a consagração do
mundo ao Imaculado Coração de Maria, quando o Padre Terças fez a sua publicação,
quando o Padre Mariano Pinho teve de abandonar a sua direcção espiritual, quando,
deixando de viver visivelmente o fenómeno da Paixão, já passara a vivê-lo apenas
na intimidade, etc. Numa palavra, ela percorrera já grande parte da sua
caminhada mística.
Repare-se que a autora não menciona muitas
coisas que com ela se passaram. O exemplo mais significativo é o de calar o
papel que teve na consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria.
Oxalá que os amigos e admiradores da
Alexandrina possam, com esta cópia digitalizada e ilustrada da Autobiografia,
tornar ainda mais arraigada a devoção que já lhe dedicam.
José Ferreira
***
Balasar, 20 de Outubro de 1940
Depois
de uns momentos de oração, a implorar auxílios do Céu e a luz do Divino Espírito
Santo para poder fazer o que o meu Padre espiritual me determinou, principio a
descrever a minha vida, tal qual como Nosso Senhor ma for recordando, embora com
grande sacrifício.
― Eu
chamo-me Alexandrina Maria da Costa, nasci na freguesia de Balasar, concelho da
Póvoa de Varzim, distrito do Porto, a 30 de Março de 1905
,
numa quarta-feira de trevas, e fui baptizada a 2 de Abril do mesmo ano, era
então Sábado de Aleluia.
Serviram
de padrinhos um tio de nome Joaquim da Costa e uma senhora de Gondifelos,
Famalicão, de nome Alexandrina.
―
Encontro em mim, desde a mais tenra idade, tantos, tantos defeitos, tantas,
tantas maldades que, como as de hoje, me fazem tremer. Era meu desejo ver a
minha vida, logo desde o princípio, cheia de encantos e de amor para com Nosso
Senhor.
Até aos
três anos de idade não me recordo de nada, a não ser de algum carinho que dos
meus recebia. Com os meus três anos recebi o primeiro mimo de Nosso Senhor.
Como era
desinquieta e, enquanto minha mãe descansava um pouco, tendo-me deitado junto
dela, eu não quis dormir e, levantando-me, subi à parte de cima da cama para
chegar a uma malga que continha gordura de aplicar no cabelo – conforme era uso
da terra – e, por ter visto alguém fazê-lo, principiei também a aplicá-la nos
meus cabelos. Minha mãe deu por isso, falou-me e eu assustei-me. Com o susto,
deitei a malga ao chão, caí em cima dela e feri-me muito no rosto. Foi preciso
recorrer imediatamente ao médico que, vendo o meu estado, recusou-se a
tratar-me, julgando-se incapaz. Minha mãe levou-me a Viatodos, a um farmacêutico
de grande fama, que me tratou, embora com muito custo, porque foi preciso coser
a cara por três vezes e levou bastante tempo a cicatrizar a ferida. O sofrimento
foi doloroso. Ah, se desta idade soubesse já aproveitar-me dele!... Mas não.
Depois de um curativo, fiquei muito zangada com o farmacêutico; este ofereceu-me
alguns biscoitos e vinho, que depois de amolecidos no vinho queria que os
comesse. Eu tinha fome e, às vezes, até chegava a chorar porque não podia mexer
os queixos. Não aceitei a oferta e ainda maltratei o farmacêutico. Ora aqui está
a minha primeira maldade.
Pelos
quatro anos e meio de idade, punha-me a contemplar o céu (abóbada celeste)
e perguntava aos meus se poderia chegar-lhe se pudesse colocar umas sobre as
outras todas as árvores, casas, linhas dos carrinhos, cordas, etc., etc. Como me
dissessem que nem assim chegaria, ficava descontente e saudosa, porque não sei o
que me atraía para lá.
Lembro-me de que, nesta idade, tinha em casa uma tia doente, que morreu de
cancro, e chamava-me para ir embalar um filho, primeiro fruto do seu matrimónio,
serviço que fazia com toda a prontidão, quer de dia quer de noite.
Já nesta
idade amava muito a oração, pois lembra-me que minha tia pedia-me para rezar com
ela a fim de obter a sua cura.
―
Comecei a frequentar a catequese e a dar mostras de um grande defeito, a
teimosice. Um dia fui à doutrina à igreja e o coadjutor do Senhor Abade, Padre
António Matias, indicou-me o lugar que devia tomar entre as meninas da minha
idade, mas, como ia acompanhada de outras mais velhas, quis tornar lugar delas.
Por mais carinhos que o Reverendo me fizesse e me mostrasse santinhos, eu não
fui capaz de ceder à sua ordem. Dias depois, Sua Reverência convenceu-me e ficou
sendo muito meu amigo e até me abrigava da chuva debaixo do seu viatório, de
casa à igreja e desta a casa. Lembro-me que era muito teimosa.
Quando
me encontrava na igreja, punha-me a contemplar os santos, e os que mais
encantavam eram as imagens de Nossa Senhora do Rosário e S. José, porque tinham
uns vestidos muito bonitos e eu desejava ter uns iguais aos deles. Não sei se
seria já princípio da manifestação da minha vaidade. Queria ter uns vestidos
assim, porque perecia-me que ficava mais bonita com eles.
E, se
nesta idade manifestava os meus defeitos, também mostrava o meu amor para com a
Mãe do Céu, e lembra-me com que entusiasmo cantava os versinhos a Nossa Senhora
e até me recordo do primeiro cântico que entoei na igreja, que foi «Virgem pura,
tua ternura, etc.»
Gostava
muito de levar flores às zeladoras que compunham o altar da Mãezinha.
― Era
viva e tão viva que até me chamavam Maria-Rapaz. Dominava as companheiras da
minha idade e até as mais velhas do que eu. Trepava às árvores, aos muros e até
preferia estes para caminhar em vez das estradas.
Gostava
muito de trabalhar: arrumava a casa, acarretava a lenha e fazia outros serviços
caseiros. Tinha gosto que o trabalho fosse bem feito e gostava de andar
asseadinha. Também lavava roupa e, quando mais não tinha, era o meu aventalinho
que trazia à cinta. Quando não sabiam de mim, era quase certo encontrarem-me a
lavar num ribeiro que corria perto de casa.
Um dia,
fui com a minha irmã e uma prima apascentar o gado, entre ele uma égua. A certa
altura, a égua fugia para o lado do campo que estava cultivado e, como a fosse
tornar, ela atirou-me ao chão, dando-me com a cabeça, e depois colocou-se sobre
mim; de vez em quando raspava-me o peito com uma pata sobre o meu coração, como
quem brinca. Levantava-se, relinchava e voltava a fazer o mesmo. Fez assim
algumas vezes, mas não me magoou.
As
minhas companheiras gritaram e acudiram várias pessoas que ficaram admiradas de
eu sair ilesa da brincadeira do animal.
Quando
me encontrava com umas primas que moravam distantes, cantava com elas pelos
caminhos a Ave-Maria. Também gostava de cantar cantigas do campo e até me lembro
do lugar em que cantei a primeira quadra e da letra da mesma. Era assim:
Ó Maria, dá-me lume,
Que eu bem o vejo luzir.
Bota o teu amor cá fora,
Que eu bem o vi p’ra lá ir.
Uma vez
fui visitar a minha madrinha e tive de atravessar o rio Este, que levava grande
corrente, chegando a abalar umas pedras que serviam de passadiço; e, sem reparar
no perigo a que me expus, atravessei a corrente por essas pedras e a água ia-me
levando. Foi milagrosamente que escapei à morte, bem como minha irmã que me
acompanhava. Gostava muito de a (a madrinha) visitar, porque ela dava-me
bastante dinheiro. Pouco depois, morria ela, e foi o meu primeiro desgosto.
Tinha pena dela, do folar e da roupa dos sete anos que me tinha prometido. Minha
avózinha soube amenizar esse desgosto, dando-me o folar todos os anos.
Tinha eu
6 anos quando, de noite, me entretinha, por muito tempo, a ver cair sobre mim
inúmeras pétalas de flores de todas as cores, parecendo chuva miudinha. Isto
repetiu-se várias vezes. Eu via cair estas pétalas, mas não compreendia; talvez
fosse Jesus a convidar-me à contemplação das suas grandezas.
― Em
Janeiro de 1911, fui com a minha irmã Deolinda para a Póvoa de Varzim, para
frequentarmos a escola. Não quero pensar quanto sofri com a separação da minha
família. Chorei muito e durante muito tempo. Distraíam-me, acariciavam-me,
faziam-me todas as vontades e, depois de algum tempo, resignei-me.
Continuei a ser muito traquinas: agarrava-me aos americanos e deixava-me ir um
pouco e depois atirava-me ao chão e caía; atravessava a rua quando eles iam a
passar, sendo preciso o condutor deles acusar-me à patroa. Muitas vezes fugia de
casa e ia apanhar sargaço para a praia, metendo-me no mar, como fazem as
pescadeiras; trazia-o para casa e dava-o à patroa, que o vendia depois aos
lavradores. Com isto afligia a patroa, pois fazia isto às escondidas, embora
rapidamente.
― Foi na
Póvoa de Varzim que fiz a minha Primeira Comunhão, com sete anos de idade. Foi o
Senhor Padre Álvaro Matos quem me perguntou a doutrina, me confessou e me deu pela
vez primeira a Sagrada Comunhão. Como prémio, recebi um lindo lenço e uma
estampazinha. Quando comunguei, estava de joelhos, apesar de pequenina, e fitei
a Sagrada Hóstia que ia receber de tal maneira que me ficou tão gravada na alma,
parecendo-me unir a Jesus para nunca mais me separar d’Ele. Parece que me
prendeu o coração. A alegria que eu sentia era inexplicável. A todos dava a boa
nova. A encarregada da minha educação levava-me a comungar diariamente.
― Foi em
Vila do Conde onde recebi o Sacramento da Confirmação, ministrado pelo Ex.mo e
Rev.mo Senhor Bispo do Porto.
Lembro-me muito bem desta cerimónia e recebi-a com toda a consolação. No momento
em que fui crismada, não sei o que senti em mim; pareceu-me ser uma graça
sobrenatural que me transformou e me uniu cada vez mais a Nosso Senhor. Sobre
isto, queria exprimir-me melhor, mas não sei.
― À
medida que ia crescendo, ia aumentando em mim o desejo da oração. Tudo queria
aprender. Ainda conservo as devoções que aprendi na minha infância, como:
Lembrai-vos, ó puríssima Virgem Maria, Ó Senhora minha, ó minha Mãe,
o oferecimento das obras do dia – Ofereço-Vos, ó meu Deus –, a oração ao
Anjo da Guarda, oração a S. José e várias jaculatórias.
Quando
ia a passeio com a patroa para o campo, acompanhada com outras meninas, fugia do
convívio delas e ia colher flores que desfolhava para fazer tapetes na igreja de
Nossa Senhora das Dores. Era em Maio e toda me comprazia de ver o altar da
Mãezinha adornado de rosas e cravos e de respirar o perfume dessas flores.
Algumas vezes, oferecia à Mãezinha muitas flores que minha mãe propositadamente
me levava.
O
capelão de Nossa Senhora das Dores organizou várias comissões de meninas para
angariar meios para o culto da mesma capela. Essas comissões espalhavam-se pelas
freguesias vizinhas da Póvoa de Varzim. Eu fui para a Aguçadoura e aceitávamos
tudo o que nos dessem, como batatas, cebolas, etc. Por mais que pedíssemos,
pouco arranjámos e tivemos a má ideia de saltar a um campo e tirámos batatas,
cerca de dois quilogramas. Fui eu uma das que fiz tal acção, enquanto outras
vigiavam. Entregámos as ofertas, não contando nada do que se tinha passado.
―
Lembro-me de ir acompanhar a minha patroa a Laundos cumprir uma promessa a Nossa
Senhora da Saúde. Connosco foi uma filha dela e a minha irmã. Esta ajudava-a
pegando-lhe na mão, porque ia de joelhos, e eu ia à frente dela e arrumava-lhe
todas as pedrinhas que encontrava no caminho. A filha, que era mais velha do que
nós, foi para a brincadeira.
Era
muito dedicada à mulherzinha e, quando me davam qualquer coisa, como frutas,
doces, etc., repartia com ela, que ficava toda satisfeita. Eu procedia assim
porque o meu coração assim o queria, apesar de ser muito má.
Uma
ocasião, a minha irmã pediu-lhe licença para ir estudar à casa de uma colega que
morava perto de nós, e eu também queria ir. Como ela não me deixasse, chorei e
por fim chamei-lhe «poveira»; estava zangada. Não me castigou, mas disse-me que
não podia confessar-me sem lhe pedir perdão. Minha irmã disse-me o mesmo. Isto
fez-me muita repugnância e, como quisesse confessar-me e comungar, venci o
orgulho. Pus-me de joelhos e, de mãos erguidas, pedi-lhe perdão. Ela comoveu-se
até às lágrimas e perdoou-me. Senti uma grande alegria por já poder no dia
seguinte confessar-me e receber Jesus.
― Depois
de umas férias, ia para a Póvoa, eu e a minha irmã; tínhamos quem nos
acompanhasse, mas só depois de atravessarmos a freguesia. Íamos pelo
caminho-de-ferro e avistámos ao longe dois guardas-republicanos. Tivemos medo
deles e refugiámo-nos na volta de um caminho. Como minha irmã levasse um
cestinho com linho, eles imaginaram que ela levava fósforos (espera-galegos) –
proibidos naquele tempo – e perseguiram-nos. Nós fugimos e gritámos muito. Aos
nossos gritos acudiram várias pessoas. Já estavam para fazer fogo quando
compreenderam que não éramos portadoras de tal contrabando. Felizmente desta vez
escapámos à morte.
Ainda na
Póvoa de Varzim, lembro-me que tinha muito respeito pelos sacerdotes. Quando
estava sentada à porta da rua, só ou com a minha irmã e primas, levantava-me
sempre à sua passagem, e eles correspondiam tirando o chapéu, se era de longe,
ou dando-me a bênção se passavam junto de mim. Observei algumas vezes que várias
pessoas reparavam nisto e eu gostava e até chegava a sentar-me propositadamente
para ter ocasião de me levantar no momento em que passavam por mim, só para ter
o gosto de mostrar a minha dedicação e respeito pelos ministros do Senhor.
―
Passados dezoito meses, como minha irmã fizesse exame, viemos embora. Minha mãe
queria que eu continuasse, mas sozinha não quis ficar; fiquei a saber pouco.
Voltámos ao lugar onde nascemos e aí estivemos quatro meses; depois fomos morar
para perto da igreja, numa casa da minha mãe.
Uma vez
minha mãe deu-me uns soquinhos. Eu fiquei tão contente com eles, porque eram
lindos!... Para ver a figura que fazia com eles, preparei-me como se fosse à
Missa, calcei-os e depois ajoelhei-me, pondo-os à minha frente, fingindo que
estava na igreja. Como era vaidosa!
Era
muito amiga da minha irmã, mas, quando me zangava com ela, atirava-lhe com o que
tivesse à mão. Lembro-me de fazer isso pelo menos duas vezes. Quero que o meu
génio não fique encoberto. Também gostava de lhe fazer partidinhas e, quando me
levantava primeiro do que ela, punha-lhe à porta do quarto paus a impedir-lhe a
passagem para ela cair, quando por ali passasse. Era mesmo como quem lhe chamava
preguiçosa. Fazia várias partidas deste género. Também as tinha de mau gosto,
pois uma vez levantei a tampa de uma caixa e deixei-a cair com força, começando
a gritar, fingindo assim que me magoei. Minha irmã acudiu logo e afligia-a
bastante. Ficava muito pesarosa por a ter ofendido. Não guardava ódio nenhum,
antes queria acariciar as pessoas que ofendia. Apesar de tudo isto e de subir às
árvores – pois trepava muito bem – nunca fiz mal às avezinhas. Não era capaz de
tirar os ninhos, nem de brincar com os passarinhos. Sofria muito quando via
ninhos desfeitos ou quando ouvia o piar triste e dolorido dos pais pelos
filhinhos. Cheguei a chorar com pena das avezinhas que ficavam sem os sus
filhinhos ou destes que perdiam os seus pais.
Nas
reuniões de família, não sei o que dizia, mas dispunha bem as pessoas que me
rodeavam, que se riam a bom rir. Minha mãe dizia: «Os fidalgos têm um bobo para
os fazer rir e eu não sou fidalga, mas também tenho quem me esteja a fazer
festa».
― Pelos
nove anos, quando me levantava cedo para ir trabalhar nos campos e quando me
encontrava sozinha, punha-me a contemplar a natureza. O romper da aurora, o
nascer do sol, o gorjeio das avezinhas, o murmúrio das águas entravam em mim
numa contemplação profunda que quase me esquecia de que vivia no mundo. Chegava
a deter os passos e ficava embebida neste pensamento, o poder de Deus! E, quando
me encontrava à beira-mar, oh, como me perdia diante daquele grandeza infinita!
À noite, ao contemplar o céu e as estrelas, parecia esconder-me mais ainda para
admirar as belezas do Criador! Quantas vezes no meu jardinzinho, onde hoje é o
meu quarto, fitava o céu, escutando o murmúrio das águas e ia contemplando cada
vez mais este abismo das grandezas divinas! Tenho pena de não saber aproveitar
tudo para começar nesta idade as minhas meditações.
―
Lembro-me de dizer duas palavras que tomei por pecados, sendo uma delas «diabo».
Fiquei muito envergonhada e custou-me muito a confessar-me delas. Não gostava de
ouvir conversas maliciosas e, embora não compreendendo o sentido delas, chegava
a dizer que me retirava se não falassem doutra forma. Também me indignava toda
quando presenciava cenas indecentes entre pessoas adultas. Tinha medo de perder
a minha inocência e receio que Nosso Senhor desse algum castigo.
Foi aos
nove anos que fiz pela primeira vez a minha confissão geral e foi com o Sr.
Padre
Manuel das Chagas. Fomos, a Deolinda, eu e a minha prima Olívia, a Gondifelos,
onde Sua Reverência se encontrava, e lá nos confessámos todas três. Levámos
merenda e ficámos para arde, à espera do sermão. Esperámos algumas horas e
recorda-me que não saímos da igreja para brincar. Tomámos nosso lugar junto do
altar do Sagrado Coração de Jesus e eu pus os meus soquinhos dentro das grades
do altar. A pregação dessa tarde foi sobre o inferno. Escutei com muita atenção
todas as palavras de Sua Reverência, mas, a certa altura, ele convidou-nos a ir
ao inferno em espírito. Para mim mesma disse: «Ao inferno é que eu não vou!
Quando todos se dirigirem para lá, eu vou-me embora!», e tratei de pegar nos
soquinhos. Como não vi ninguém sair, fiquei também, não largando mais os
soquinhos.
― Era
muito amiga dos velhinhos, pobrezinhos e enfermos e, quando sabia que alguém não
tinha roupinha para se vestir, pedia-a a minha mãe e ia levar-lha, ficando por
vezes a fazer-lhe companhia. Assisti à morte de alguns, rezando o que sabia e,
por fim, ajudava a vestir os defuntos, o que me custava imenso; fazia-o por
caridade: não tinha coração para deixar sozinha a família dos mortos e, por
serem pobrezinhos, fazia-o com muito gosto.
Dava
esmola aos pobres e sentia grande alegria em fazer obras de caridade. Algumas
vezes chorava com pena deles e por lhes não poder valer em todas as suas
necessidades. A minha maior satisfação era dar-lhes daquilo que tinha para
comer, privando-me assim do meu alimento. Quantas vezes fiz isto!... Apesar de
muito criança ainda, dei muitas vezes conselhos a pessoas de bastante idade,
evitando até que praticassem crimes horrendos, e de tudo guardava absoluto
silêncio. Vinham ter comigo e faziam-me conversas que não eram próprias da minha
idade, e eu confortava-as e dizia-lhes o que entendia. Presenciei e soube de
viários casos que por caridade não contei.
Quanto
hoje estou agradecida a Nosso Senhor por ter procedido assim: era a Sua graça e
não a minha virtude!
AMOR À ORAÇÃO
―
Gostava muito de ir à igreja e chegava-me para junto da minha catequista
e rezava quanto ela queria. Não deixava dia nenhum de rezar a estação ao
Santíssimo Sacramento, meditada, quer fosse na igreja quer em casa, até pelos
caminhos, fazendo sempre a comunhão espiritual assim:
«Ó meu
Jesus, vinde ao meu pobre coração! Ah, Eu desejo-Vos, não tardeis! Vinde
enriquecer-me das Vossas graças; aumentai-me o Vosso santo e divino amor. Uni-me
a Vós! Escondei-me no Vosso Sagrado Lado! Não quero outro bem senão a Vós! Só a
Vós amo, só a Vós quero, só por Vós suspiro! Dou-vos graças, Eterno Pai, por me
haverdes deixado a Jesus no Santíssimo Sacramento. Dou-Vos graças, meu Jesus, e
por último peço-Vos a Vossa santa bênção! Seja louvado em cada momento o
Santíssimo e Diviníssimo Sacramento da Eucaristia!»
Também
dizia várias jaculatórias, como «Bendito e louvado seja…» e «Graças e louvores
se dêem…»
Gostava
muito de fazer meditações ao Santíssimo Sacramento e à Mãezinha e, quando não
podia fazê-las de dia, fazias de noite, às escondidas de todos, reservando uma
vela, que escondida, para esse fim. Vidas de santos ou meditações muito
profundas não me satisfaziam, porque via que em nada ma assemelhava aos santos
e, em vez de me sentir bem, faziam-me mal.
― Aos
doze anos, tive uma doença muito grave, chegando a receber os últimos
sacramentos. Preparei-me para morrer, e lembro-me que estava bem disposta para a
morte. Um dia em que a febre estava muito alta, delirei, mas lembro-me que pedi
à minha mãe que me desse Jesus; ela deu-me um crucifixo e eu disse-lhe: «Não é
esse que eu quero. Eu quero o Senhor do sacrário.»
― Dos
doze aos catorze a os vivi com regular saúde. Minha mãe pôs-me a servir em casa
de um vizinho, mas, ao ajustar-me, tirou certas condições, como: confessar-me
todos os meses, passar as tardes dos domingos em casa, para ir à igreja e estar
sob o domínio dela, não andar de noite, etc. A combinação foi de cinco anos, mas
não estive até ao fim. O patrão era um perfeito carrasco; chamava-me nomes,
obrigava-me a trabalhar mais do que as forças que tinha. Tinha mau génio e pouca
paciência – até os animais o conheciam, porque batia-lhes e assustava-os, sendo
quase impossível chamar o gado, quando ele ia junto do gado. Envergonhava-me sem
causa, fosse diante de quem fosse, e eu sentia-me humilhada. Apesar de estar no
princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele triste viver. Um dia
fui à azenha levar a fornada, mas era já noitinha quando lá cheguei e, portanto,
muito tarde quando regressei a casa, pois gastava no caminho uma hora. Depois
que cheguei a casa, ralhou-me muito, insultou -me e até me chamou ladra. O pai
dele, homem velhinho, revoltou-se contra ele, defendeu-me, dizendo que eu não
tinha tido tempo para mais. Todos os dias vinha ficar à casa, e naquele dia,
como estava melindrada – porque a minha consciência não me acusava a mais
pequena falta – queixei-me a minha mãe que, depois de se informar do caso, não
me deixou voltar, apesar de pedir muito para que continuasse a trabalhar lá.
Minha mãe, vendo que ele não cumpria o contracto, tirou-me de servir.
Uma vez
estive das dez horas da noite às quatro da manhã na Póvoa de Varzim a tomar
conta de quatro juntas de bois, porque o patrão e um seu amigo ausentaram-se de
mim; e eu, cheia de medo, lá passei aquelas horas tristíssimas da noite.
Enquanto vigiava o gado, ia contemplando as estrelas que brilhavam muito e
serviam de minhas companheiras.
Foi aos
doze anos que me deram o cargo de catequista e cantora; trabalhava com muito
gosto, tanto num cargo como noutro, mas pelo canto posso dizer que tinha uma
paixão louca.
Quando
comungava e me encontrava no meio das minhas companheiras a dar graças, sentia
uma humilhação tão grande que julgava a mais indigna de receber Jesus-Hóstia!...
UM SONHO
― Uma
noite, ia da cozinha para a sala com ma candeia acesa e ela apagou-se. Tratei de
a acender, voltando à cozinha, mas ela apagou-se por várias vezes, tendo de
andar abaixo e acima. Não me recordo que fosse vento que a pudesse apagar. Da
última vez em que tentei acendê-la, caí, entornei o petróleo, que me saltou para
a boca. Julgando que era o mafarrico, disse: «Podes ir embora, que hoje não
arranjas nada». Fui deitar-me muito sossegada, adormeci e tive um sonho que se
gravou na minha alma para nunca mais me esquecer. Foi assim:
Subi ao
Paraíso por umas escadinhas tão estreitinhas que mal me cabiam as pontas dos
pés. Foi com muita dificuldade e com muito tempo que lá cheguei, porque não
tinha nada onde me amarrar. Pelo caminho, via algumas almas que ficavam ao lado
das escadas, dando-me conforto sem me falarem. Lá em cima, vi ao centro, num
trono, Nosso Senhor, e, ao lado d’Ele, a Mãezinha. Todo o céu estava cheio de
bem-aventurados. Depois de contemplar tudo isto, tive que vir à terra, o que eu
não queria. Desci com muita dificuldade e encontrei-me na terra, e tudo tinha
desaparecido. Depois, acordei.
UMA TARDE DE RECREIO
― Uma
vela tarde, fui passear com as minhas primas para um monte próximo de casa, onde
andavam algumas jumentinhas a pastar. Atirei-me para cima duma delas; como não
sabia montar, fui cair, pouco depois, entre o mato; mas não me feri nos picos
dele. Ri-me a bom rir com as minhas companheiras.
Quando
recordo estas brincadeiras, tenho pena de as ter feito; antes queria só ter
amado Jesus.
UM SALTO
― Até
aos catorze anos, trabalhei nos campos e com tal cuidado que me pagavam o jornal
como a minha mãe. Uma vez, andava a apanhar hera numa carvalheira para dar ao
gado e caí dela abaixo, ficado algum tempo sem me poder mexer e sem respirar,
levantando-me pouco depois para continuar o meu serviço.
Uma
ocasião, estando eu, minha irmã e uma pequena mais velha que nós a trabalhar na
costura, avistámos três homens: o que tinha sido meu patrão, outro casado e um
terceiro solteiro. Minha irmã, percebendo alguma coisa e vendo-os seguir o nosso
caminho, mandou-me fechar a porta da sala. Instantes depois, sentimos que eles
subiam as escadas que davam para a sala e bateram à porta. Falou-lhes minha
irmã. O que tinha sido meu patrão mandou abrir a porta, mas, como não tivessem
lá obra, não lhes abrimos a porta. O meu antigo patrão conhecia bem a casa e
subiu por umas escadas pelo interior da habitação e os outros ficaram à porta
onde tinham batido. Ele, não podendo entrar pelo interior por um alçapão que
estava fechado e resguardado por uma máquina de costura, pegou num maço e deu
fortes pancadas nas tábuas até rebentar o alçapão, tentando passar por aí. Minha
irmã, ao ver isto, abriu a porta da sala para fugir, mas essa ficou presa, e eu,
ao ver tudo isto, saltei pela janela que estava aberta e que deitava para o
quintal. Sofri um grande abalo porque a janela distava do chão quatro metros.
Quis levantar-me logo, mas não pude, porque me deu uma forte dor na barriga. Com
o salto caiu-me o anel que usava, sem dar por ela. Cheia de coragem, peguei num
pau e entrei pela porta do quintal para o eirado onde estava a minha irmã a
discutir com os dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu
aproximei-me deles e chamei-lhes «cães» e disse que o deixavam vir a pequena ou
então gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na ir.
Foi
nesta altura que dei pela falta do anel e disse-lhes de novo: «Seus cães, por
vossa causa perdi o meu anel». Um deles, que trazia os dedos cheios de anéis,
disse-me: «Escolhe daqui um.» Mas eu, toda zangada, respondi: «Não quero.» Não
lhes demos mais confiança; eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar. De
tudo isto não contámos a ninguém, mas minha mãe veio a saber tudo. Pouco depois,
comecei a sofrer mais e toda a gente dizia que foi do salto que dei. Os médicos
também afirmaram que muito concorrera para a minha doença.
― Aos
catorze anos e quatro meses, deixei o trabalho para sempre, embora há meses
trabalhasse com muito custo. Principiei a consultar médicos, coisa que me
custava imenso. Eles tratavam-me de várias doenças; a princípio tudo corria bem
e todos tinham pena de mim e eu só sentia o desgosto dos meus males. Isto durou
bem pouco tempo. As minhas maiores amigas, pessoas da família e o próprio pároco
revoltaram-se contra mim. Chegaram a fazer caçoada de mim, do meu modo de andar,
da posição que tinha na igreja…, mas eu não podia estar doutra forma.
O Sr.
Abade dizia-me que eu não comia porque não queria e se morresse que ia para o
inferno. Quando me ia confessar dizia-me também que o meu maior pecado era não
comer. Estas palavras fizeram-me sofrer muito sozinha; com Nosso Senhor é que eu
desabafava.
Quando
ia de casa para a igreja e desta para casa, olhava os montes em volta e pensava
fugir e refugiar-me onde mais ninguém me visse, mas Nosso Senhor nunca me deixou
fazer isto. Chorei tanto, tanto ao ver-me na situação em que me encontrava… não
me recordo bem do tempo que durou este sofrimento, mas sei que não chegou a um
ano.
Como
piorasse cada vez mais e ao verem o mau estado, foi o próprio Sr. Abade quem
aconselhou minha mãe a levar-me a um médico conhecido dele. Foi esse que me veio
tirar do martírio em que vivia, dizendo aos que lhe perguntavam que não comia
porque não podia. Apesar de estar longe de compreender todos os meus
sofrimentos, era muito meu amigo.
― Nosso
Senhor aliviou-me de um, mas deu-me outro sofrimento maior ainda
.
Só dele teve conhecimento Jesus e, alguns anos mais tarde, o meu Pai espiritual.
Passaram-se seis anos de doença, um pouco a pé, outro pouco na cama. Durante
este período cheguei a estar cinco meses sem me levantar, continuando no mesmo
sofrimento moral por espaço de doze anos sem nunca, nunca dizer nada a ninguém.
Quando me encontrava sozinha e presa no meu leito, voltava-me para o quadro da
entronização do Sagrado Coração de Jesus, pedia-lhe que me libertasse de tal
sofrimento, que me desse luz para conhecer o que havia de fazer, enquanto ia
chorando muitas lágrimas.
Não
deixei de pedir muito à Mãezinha para que intercedesse por mim nas mesmas
intenções.
― Com os
meus dezasseis anos, pouco mais ou menos, fui continuar o meu tratamento para a
Póvoa de Varzim.
Numa
manhã, quando me dirigia para a igreja, percebi que alguém apressadamente se
aproximava de mim. Era um militar que se dirigia a mim a pedir-me namoro.
Recusei imediatamente, mas como ele insistisse e não deixasse de me acompanhar,
disse-lhe que se retirasse, que ia para a igreja. Pediu-me licença para estar
comigo quando voltasse da igreja. Prometi-lhe que estaria, só para me livrar
dele, com a ideia de trocar o caminho. Ao voltar, pus-me a ver se o via e, como
nada enxergasse, vim pela mesma rua. A certa altura surgiu-me ele, não sei de
onde, e disse-me: «Ó menina, você que me prometeu?», e tratava de me acompanhar
a casa. Parei e falei-lhe, dizendo que era doente e que minha mãe não consentia
que eu namorasse. Custou-me muito a convencê-lo. De repente, apareceu a minha
irmã e ralhou-me, pensando que eu estava a namorar. Não voltei mais por aquele
caminho, com receio de me encontrar com ele. Com isto, tudo terminou. Várias
vezes me vi apoquentada por rapazes a pedirem-me namoro, mas nunca aceitei.
Cheguei a dizer a um que me falava em casamento: «Não deixo a minha família por
causa de um homem.»
Sendo do
conhecimento do Senhor Abade que um outro me pretendia, Sua Reverência falou-me
assim: «Se queres o rapaz, isso é tudo comigo.» Eu respondi-lhe: «Eu estou boa
para casar!», pois já me sentia bastante doente e, além disso, não tinha
inclinação nenhuma para o casamento.
Às vezes
pensava, se um dia fosse casada, como educaria os filhinhos para serem todos de
Nosso Senhor.
VIGILÂNCIA DA QUERIDA
MÃEZINHA
― Com os
meus dezoito anos, vi-me num perigo muito grande, inesperadamente. Lembro-me que
levava o meu tercinho na mão e que apertei uma medalha da Nossa Senhora das
Graças e, de repente, livrei-me do perigo. Foi sem dúvida a Mãezinha do Céu a
velar-me. Oh, como lhe estou agradecida!...
― Aos
dezanove anos acamei e, desta vez, não tive, como da outra, quem me dissesse:
«Deixa passar algum tempo, que ainda virás a levantar-te.» Nesta altura, o
médico do Porto, Sr. Dr. João de Almeida, informou minha mãe de que temia que eu
entrevasse.
A partir
desta ocasião, comecei a ter por enfermeira minha irmã, porque minha mãe
ocupava-se em serviços do campo e minha irmã costurava. Tive momentos de
desânimo, mas nunca de desespero. Nada no mundo me prendia, só tinha saudades do
meu jardinzinho, porque amava muito as flores. Algumas vezes fui vê-lo, matar
essas saudades, ao colo da minha irmã. Tinha muitas saudades de Jesus, da nossa
igreja e, quando havia festas do Sagrado Coração de Jesus ou Missas cantadas, eu
chorava amargamente. Como era cantora, entristecia-me muito por ver a minha
irmã, que também cantava, e eu ficar. Quantas vezes ela me dizia: «Se lá
pudesses estar deitadinha, eu levava-te ao colo!» Chorava ela por ir e eu ficar
e chorava eu por a ver a sair e não poder acompanhá-la, mas conformava-me sempre
com a vontade de Nosso Senhor. A pouco e pouco, fui-me habituando à cama e fui
perdendo todas as saudades.
Nos
primeiros anos, fazia por me distrair e até pedia que jogassem às cartas comigo,
outras vezes jogava eu sozinha. Tenho pena de não ter pensado desde o princípio
como penso agora, de viver só unida ao meu Jesus.
Cheguei
a fazer algumas promessas para ser curada, como: cortar rente o meu cabelo (que
era para mim grande sacrifício), dar todo o meu ouro e vestir-me de luto toda a
minha vida, ir de joelhos desde a minha casa até à igreja. Minha mãe, irmã e
primas fizeram também grandes promessas. Por fim, compreendi que a vontade de
Nosso Senhor era que estivesse doente. Deixei de pedir a minha cura. No decorrer
dos anos, estive várias vezes às portas da morte; preparava-me com os últimos
Sacramentos e esperava a hora da morte resignada. Na medicina, não tinha outro
alívio senão um bocadinho de morfina que me injectavam.
― Todos
os anos, no mês de Maio, fazia o mês da Mãezinha. Gostava muito de o fazer
sozinha: meditava, cantava, rezava e chorava algumas vezes ao mesmo tempo que
pedia à Mãe do Céu que me libertasse da grande tribulação que estava a passar.
Cantava o «Tantum ergo» como se estivesse na igreja e fosse receber a bênção de
Nosso Senhor. Como não tinha o Santíssimo Sacramento em casa, nem nenhum
sacerdote que me viesse dar a bênção, pedia a Nosso Senhor que ma desse do Céu e
de todos os sacrários. Oh, que momentos tão felizes!... Sentia cair sobre mim
todas as bênçãos e amor de Nosso Senhor! Nestes momentos, pedia a Jesus para
abençoar toda a minha família e todas aqueles que me eram queridos.
Como não
tinha nenhuma imagem da Mãezinha, nos primeiros anos, vinha uma de casa do
Senhor abade – o Coração de Maria. Durante o mês, tudo estava bem, mas ao
terminar sentia grandes saudades quando tinha de ficar sem a imagem. Principiei
a pensar na maneira de arranjar uma que fosse só minha. Como não tinha dinheiro,
várias pessoas ajudaram-me. Uma amiga deu-me uma franguinhas que minha irmã foi
criando até porem ovos, para mais tarde nascerem pintainhos. Assim fui
arranjando a quantia precisa para a imagem, redoma e altarzinho, etc. Não sei
descrever a consolação que senti ao ver que possuía para sempre a imagem da
querida Mãezinha e que ficaria a contemplá-la dia e noite.
― Como
me falassem dos milagres de Fátima e sabendo eu, em 1928, que várias pessoas iam
à Cova da Iria, nasceram em mim desejos de ir também. O médico assistente e o
meu pároco não me deixaram, dizendo que era impossível ir tão longe, se eu mal
consentia que me tocassem na cama. O Sr. Abade dizia-me que pedisse daqui a
acura e que, depois, iria a Nossa Senhora de Fátima agradecer tão grande graça.
O médico prometeu passar o atestado se o milagre se desse.
Nesse
ano, o Sr. Abade foi a Fátima e perguntou-me o que queria de lá. Pedi-lhe que me
trouxesse uma medalha, mas ele ofereceu-me um terço, uma medalha, o «Manual de
Peregrino» e alguma água de Fátima. Sua Reverência aconselhou-me a fazer uma
novena a Nossa Senhora e a beber água de Fátima com o fim de ser curada. Não fiz
uma, mas muitas. Cantava muito e dizia às pessoas vizinhas que me visitavam: se
um dia me vissem pelo caminho e me ouvissem cantar, era eu que ia agradecer a
Nossa Senhora o benefício que recebia. Pensava que seria curada, mas enganei-me;
era a minha grande confiança na Mãezinha e em Jesus que me fazia falar. Pensava:
se for curada, vou logo, logo para religiosa, pois tinha medo de viver no mundo.
Nem sequer visitava a minha família. Queria ser missionária, para baptizar
pretinhos e salvar almas a Jesus.
Como não
consegui nada, morreram os meus desejos de ser curada e para sempre, sentindo
cada vez mais ânsias de amor ao sofrimento e de só pensar em Jesus.
Um dia
em que estava sozinha e, lembrando-me de que Jesus estava no sacrário, disse:
«Meu bom
Jesus, Vós preso e eu também. Estamos presos os dois: Vós preso para meu bem e
eu presa das Vossas mãos. Sois Rei e Senhor de tudo e eu um verme da terra.
Deixei-Vos ao abandono, só pensando neste mundo, que é das almas a perdição.
Agora, arrependida de todo o coração, quero o que Vós quiserdes e sofrer com
resignação. Não me falteis, bom Jesus, com a Vossa protecção.»
― Sem
saber como, ofereci-me a Nosso Senhor como vítima, e vinha, desde há muito
tempo, a pedir o amor ao sofrimento. Nosso Senhor concedeu-me tanto, tanto esta
graça que hoje não trocaria a dor por tudo quanto há no mundo. Com este amor à
dor, toda me consolava em oferecer a Jesus todos os meus sofrimentos. A
consolação de Jesus e a salvação das almas era o que mais me preocupava.
Com a
perda das focas físicas, fui deixando todas as distracções do mundo e, com o
amor que tinha à oração – porque só a orar me sentia bem – habituei-me a viver
em união íntima com Nosso Senhor. Quando recebia visitas que me distraíam um
pouco, ficava toda desgostosa e triste por não me ter lembrado de Jesus durante
esse tempo.
― Por amor
de Jesus e da Mãezinha, fazia sacrificiozinhos como: deixava de me ver ao
espelho, chegando a tê-lo muitas vezes na mão; não falava quando me apetecia, e
vice-versa; deixava de dormir durante a noite para fazer companhia a Jesus.
Comungava sacramentalmente poucas vezes, mas vivia unidinha a Ele o mais
possível. Consentia que as moscas me mordessem, etc., etc.
― Para
honrar Jesus e a SSª Virgem, escrevia em papeizinhos, santinhos, etc., o que se
segue:
«Amo-Vos,
Jesus, de todo o meu coração. Compadecei-Vos desta pobre doentinha e levai-a
para Vós quando for da Vossa vontade. Sim, amado Jesus? Nunca Vos esqueçais de
mim, que sou uma grande pecadora.»
Em 1930:
«Ó meu
querido Jesus, quero ir visitar-Vos aos Vossos sacrários mas não posso, porque a
minha doença obriga-me a estar retida no meu querido leito de dor. Faça-se a
Vossa vontade, Senhor, mas, ao menos, meu Jesus, permiti que nem um momento se
passe sem que à portinha dos Vossos sacrários eu vá em espírito dizer-Vos:
Meu
Jesus, quero amar-Vos, quero abrasar-me toda nas chamas do Vosso amor e
pedir-Vos pelos pecadores e pelas almas do Purgatório.»
Em Maio
de 1930, escrevi assim nas capas de um livrinho:
«Ó minha
querida Mãe do Céu, vinde apresentar ao Vosso e meu querido Jesus, nos Vossos
sacrários, as minhas orações e fazer mais valiosos os meus pedidos. Ó Refúgio
dos pecadores, dizei a Jesus que quero ser santa! Sim, Santíssima Virgem? Ah,
dizei-Lhe também que quero muitos sofrimentos, mas que não me deixe sozinha nem
um momento, porque só tenho que confundir-me, porque nada sou, nada possuo, nada
valho. Dizei-Lhe que O amo muito, mas que O quero amar ainda muito mais. Quero
morrer abrasada no amor de Jesus e no Vosso. Sim? Dizei-Lhe muitas coisas de
mim; fazei-Lhe todos os meus pedidos. Confio, confio em Vós! Ó Maria, dai-me o
Céu!»
Em 1931,
escrevi no verso de um santinho isto:
«Ó minha
querida Mãe, rogai a Jesus por esta filhinha tão pobre, tão pecadora. Não há
outra como eu. Não mereço ser atendida. Como me tenho eu atrevido a ofender o
meu querido Jesus!? Que miserável eu tenho sido por ter ofendido o meu Jesus!»
― Pela
manhãzinha, principiava a fazer as minhas orações, começando pelo sinal da cruz,
e logo me lembrava de Jesus Sacramentado, fazendo a comunhão espiritual e
dizendo esta jaculatória: «Sagrado Coração de Jesus, este dia é para Vós.»
Repetia-a por três vezes. Depois, continuava: «A Vossa bênção, Jesus! Eu quero
ser santa! Ó meu Jesus, abençoai a Vossa filhinha que quer ser santa.» Dizia
também: «Louvado seja Nosso Senhor… As Três Pessoas da Santíssima Trindade me
abençoem, assim como S. José, Maria Santíssima e todos os Anjos, Santos e Santas
do Céu! Que as bênçãos desçam sobre mim e nada terei que temer. Serei santa: são
esses os meus mais ardentes desejos.» Rezava três Gloria Patri. Depois
oferecia as horas do dia assim: «Ofereço-Vos, ó meu Deus, em união…»,
Pai-Nosso, Ave-Maria e Glória ao Pai… «Sagrado Coração de
Jesus que tanto nos amais…» e o Credo.
Depois
continuava: «Ó meu Jesus, eu me uno em espírito, neste momento e desde este
momento para sempre, a todas as Santas Missas que de dia e de noite se celebram
na Terra. Jesus, imolai-me convosco a cada momento no altar do sacrifício;
oferecei-me convosco ao Eterno Pai pelas mesmas intenções porque Vós mesmo Vos
ofereceis.»
Voltada
para a Mãezinha, dizia-lhe: «Ave Maria, cheia de graça! Eu vos saúdo, ó cheia de
graça! Ó Mãezinha, eu quero ser santa! Ó Mãezinha, abençoai-me e pedi a Jesus
que me abençoe!»
E
consagrava-me a ela assim: «Mãezinha, eu Vos consagro os meus olhos, meus
ouvidos, minha boca, meu coração; a minha alma, a minha virgindade, a minha
pureza, a minha castidade; a pureza e a virgindade de ……...
Aceitai,
Mãezinha, é Vossa, sois Vós o cofre sagrado, o cofre bendito da nossa riqueza.
Consagro-Vos o meu presente e o meu futuro, a minha vida e a minha morte, tudo
quanto me deram a mim, rezaram por mim e ofereceram por mim. Ó Mãezinha, abri-me
os Vossos santíssimos braços, tomai-me sobre eles, estreitai-me ao Vossos
santíssimo Coração, cobri-me com o Vosso manto e aceitai-me como Vossa filha
muito amada, muito querida, e consagrai-me toda a Jesus.
Fechai-me para sempre no Seu Divino Coração e dizei-lhe que O ajudais a
crucificar-me, para que não fique no meu corpo nem na minha alma nada por
crucificar. Ó Mãezinha, fazei-me humilde, obediente, pura, casta na alma e no
corpo. Fazei-me pura, fazei-me um anjo. Transformai-me toda em amor, consumi-me
toda nas chamas do amor de Jesus. Ó Mãezinha, pedi perdão a Jesus por mim!
Dizei-Lhe que é o filho pródigo que volta a casa do seu bom Pai, disposto a
segui-Lo, a amá-Lo, a adorá-Lo, a obedecer-Lhe e a imitá-Lo. Dizei-Lhe que não
quero mais ofendê-Lo. Ó Mãezinha, obtende-me uma dor tão grande dos meus
pecados, que seja tal o meu arrependimento que eu fique pura, que eu fique um
anjo! Pura como fiquei depois do meu Baptismo, para que pela minha pureza mereça
a compaixão de Jesus de O receber sacramentalmente todos os dias e de possuí-Lo
para sempre em mim até dar o último suspiro. Mãezinha, vinde comigo para os
sacrários, para todos os sacrários do mundo, para toda a parte o lugar onde
Jesus habita sacramentado. Fazei-Lhe a minha humilde oferta. Oh, como Jesus
ficará contente com a oferta mais pobrezinha, mais miserável, mais indigna!... Ó
Mãezinha, eu quero andar de sacrário em sacrário a pedir favores a Jesus, como a
abelhinha de flor em flor, a chupar-lhe o néctar! Ó Mãezinha, eu quero formar um
rochedo de amor em cada lugar onde Jesus habita sacramentado, para que não haja
nada que possa intrometer-se entre o amor e ir ferir o Seu Santíssimo Coração,
renovar as Suas Santíssimas Chagas e toda a Sua Santa Paixão. Mãezinha, falai no
meu coração e nos meus lábios, fazei mais fervorosas as minhas orações e mais
valiosos os meus pedidos.
Ó meu
Jesus, eu me consagro toda a Vós. Abri-me de par em par o Vosso Santíssimo
Coração. Deixai que eu entre nesse Coração bendito, nessa fornalha ardente,
nesse fogo abrasador. Fechai-o, meu bom Jesus, deixai-me toda dentro do Vosso
Santíssimo Coração, deixai-me dar aí o meu último suspiro, embriagada no Vosso
divino amor, queimada nas chamas do amor. Não me deixeis separar de Vós na terra
senão para me tornar a unir a Vós no Céu, por toda a eternidade.
Jesus,
vou convidar a Mãezinha! É Ela quem Vos vai falar por mim. Vou e já venho, sim,
meu Jesus?
Ave
Maria, cheia de graça, eu vos saúdo, cheia de graça! Mãezinha, vinde comigo para
os sacrários, vinde cobrir o meu Jesus de amor. Oferecei-Lhe tudo quanto se
passar em mim, tudo quanto tenho costume de oferecer, tudo quanto se possa
imaginar, como actos de amor para Nosso Senhor Sacramentado.»
Dizia
três vezes: «Graças e louvor se dêem a cada momento…» e fazia a comunhão
espiritual já descrita. Nesta altura, dizia tudo isto que se segue a Nossa
Senhora, para Ela repetir ao Seu amado Filho por mim:
«Ó
Jesus, cá está a Mãezinha, escutai-a, é Ela quem Vos vai falar por mim.
Ó
querida Mãezinha do Céu, ide dar beijinhos aos sacrários, beijos sem conta,
abraços sem conta, mimos sem conta, carícias sem conta, tudo para Jesus
sacramentado, tudo para a Santíssima Trindade, tudo para Vós. Multiplicai-os
muito, muito e dai-os de um puro e santo amor, dum amor que não possa mais amar,
cheios de umas santas saudades por não poder ir eu beijar e abraçar a Jesus
sacramentado e à Santíssima Trindade a Vós, minha Mãe querida. Pois não sois Vós
a criatura mais amada e mais querida de Jesus? Oh! dai-os então em meu nome, com
esse amor com que amais e sois amada.
Ó
meu Jesus, eu quero que cada dor que sentir, cada palpitação do meu coração,
cada vez que respirar, cada segundo das horas que passar, sejam
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Eu quero que cada movimento dos meus pés, das
minhas mãos, dos meus lábios, da minha língua, cada vez que abrir os meus olhos
ou os fechar, cada lágrima, cada sorriso, cada alegria, cada tristeza, cada
atribulação, cada distracção, contrariedades ou desgostos, sejam
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Eu quero que cada letra das orações que reze,
ou oiça rezar, cada palavra que pronuncie ou oiça pronunciar, que leia ou oiça
ler, que escreva ou veja escrever, que conte ou oiça contar, sejam
actos de
amor para com os vossos Sacrários.
Eu quero que cada beijinho que Vos der nas
vossas santas imagens ou da vossa e minha querida Mãezinha, nos vossos santos ou
santas, sejam
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu quero que cada gotinha de chuva
que cai do céu para a terra, toda a água que o mundo encerra, oferecida às
gotas, todas as areias do mar e tudo o que o mar contém, sejam
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Eu Vos ofereço as folhas das árvores, todos
os frutos que elas possam ter, as florzinhas oferecidas pétala por pétala,
todos os grãozinhos de sementes e cereais que possa haver no mundo, e tudo o que
contêm os jardins, campos, prados e montes, ofereço tudo como
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu Vos ofereço as penas das
avezinhas, o gorjeio das mesmas, os pêlos e as vozes de todos os animais, como
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu Vos ofereço o dia e a noite, o
calor e o frio, o vento, a neve, a lua, o luar, o sol, a escuridão, as estrelas
do firmamento, o meu dormir, o meu sonhar, como
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Ó Jesus, eu Vos ofereço tudo o que o mundo encerra, todas as grandezas,
riquezas e tesouros do mundo, tudo quanto se passar em mim, tudo quanto tenho
costume de oferecer-Vos, tudo quanto se possa imaginar, como
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Ó
Jesus, aceitai o Céu, a terra, o mar, tudo, tudo quanto neles se encerra, como
se esse «tudo» fosse meu e de tudo pudesse dispor e oferecer-Vos como
actos de
amor para os vossos Sacrários.
Nestas ocasiões em que fazia estes oferecimentos a Nosso Senhor,
sentia-me subir, sem saber como, e ao mesmo tempo um calor abrasador que parecia
queimar-me. Como não compreendia a causa deste calor, ponha-me a observar se
estava a transpirar, porque me parecia impossível, sendo dias de grandes frios.
Sentia-me apertada interiormente, o que me deixava muito cansada.
Não
tenho a certeza, mas deveria ser numa dessas ocasiões que eu senti esta
exigência de Nosso Senhor: SOFRER, AMAR e REPARAR.
― Eu não
tinha nem sabia sequer o que era um director espiritual; apenas tinha o meu
pároco como guia da minha alma.
Como
minha irmã fizesse um retiro aberto das Filhas de Maria, tomou nessa ocasião
para seu director espiritual o conferente desse retiro, o Sr. Dr. Mariano Pinho.
Este, sabendo que eu estava doente, mandou pedir as minhas orações, prometendo
orar por mim. De vez em quando, mandava-me um santinho. Passaram-se dois anos, e
sabendo eu que ele estava doente, sem saber como, senti tanta pena que comecei a
chorar; minha irmã perguntou-me porque chorava, se o não conhecia sequer.
Respondi-lhe: «Choro, porque ele era meu amigo e eu também sou dele.»
Em 16 de
Agosto de 1933, Sua Reverência veio à nossa freguesia fazer um tríduo ao Sagrado
Coração de Jesus, tomando-o então para meu director espiritual. Não lhe falei
nos oferecimentos que fazia ao sacrário, nem nos calores que sentia, nem na
força que fazia elevar, nem nas palavras que tomei como uma exigência de Jesus.
Pensava que era assim toda a gente. Só passados dois meses é que lhe falei nas
palavras de Jesus e do resto nada disse, porque nada compreendia como coisas de
Nosso Senhor. Apesar de Sua Reverência não me dizer que eram palavras de Nosso
Senhor, eu continuei sempre e cada vez mais unida a Nosso Senhor. Quer de dia
quer de noite eram os sacrários os meus lugares predilectos.
Em
8/9/1933, escrevi nas costas de um retrato meu assim:
«Ave
Maria, eu vos saúdo, ó minha Mãe Santíssima. Ó minha querida Mãezinha, que
hei-de eu dar-Vos no dia do Vosso aniversário? Não tenho mais nada que Vos dar,
dou-Vos o meu corpo e a minha vida. Quero ser toda Vossa. Não rejeiteis a minha
oferta, ó minha querida Mãe. Rogai a Nosso Senhor por mim, ouvistes? Quero ser
toda, toda Vossa. Dou-Vos quanto tenho.
Ó meu
Jesus, não rejeiteis nada do que peço à Vossa Mãe!
Sois
minha Mãe muito querida. Oh, quem me dera ter uma boa oferta para Vos dar, mas
ao menos tenho a boa vontade! Dai-me o Céu!»
Em
Agosto de 1934, voltou a fazer outra pregação aqui e então é que abri a minha
consciência. Nesta altura fui muito tentada pelo demónio, porque lembrava-me
que, uma vez que expusesse a minha vida, não mais quereria ser meu director
espiritual. Nessa altura Nosso Senhor disse-me:
«Obedece
em tudo ao teu Padre espiritual. Não foste tu quem o escolheste, mas eu quem to
enviei.» Sua Reverência apenas me perguntou a forma como ouvi estas palavras e
não me disse que era nem que não era Nosso Senhor.
Passados
dias, como minha irmã soubesse que demorava por muito tempo a fazer as minhas
orações, perguntou-me o que é que eu dizia. Nessa ocasião, expliquei-lhe em que
me ocupava durante todo aquele tempo e o que sentia nessas ocasiões, dizendo-lhe
que certamente era a fé e o fervor com que fazia todas as minhas orações e ela
concordou comigo. Pediu-me para que lhe dissesse tudo, para se tornar fervorosa.
― No ano
de 1934: «Ó minha Mãezinha do Céu, eis aqui aos Vossos santíssimos pés uma alma
que vos deseja amar. Ó minha amável Senhora, eu quero um amor que seja capaz de
sofrer só por amor de Vós e por amor do meu querido Jesus! Sim, do meu Jesus que
é o tudo da minha alma. Ele é a luz que me alumia, é o pão que me alimenta, é o
meu caminho pelo qual eu quero seguir. Mas, minha soberana Rainha, sinto-me tão
fraca para passar por tantas contrariedades da vida!... Que será de mim sem Vós
ou sem o meu querido Jesus? Ó minha Mãezinha do Céu, lá do trono em que estais,
vede este meu triste viver. Vinde em meu auxílio. Abençoai-me e pedi a Jesus por
mim, vossa indigna filha.»
Noutra
ocasião de 1934: «Ó Jesus, que melhor companhia posso eu ter aqui neste leito de
dor, se Vós estiverdes sempre em mim, que só para Vós quero viver? Ó Jesus,
sabeis bem todos os meus desejos, que são: estar sempre presente nos vossos
sacrários, não me esquecer deles um momento. Dai-me força, bom Jesus, para assim
o fazer:
Ainda em
1934:
«Ó meu Jesus, meu Amado,
No altar sacramentado,
Por meu amor encerrado
Nesse sacrário de amor.
Quisera estar contigo, ó Jesus,
Dia e noite e a toda a hora,
Porém, agora não posso ir,
Bem o sabeis, ó meu bom Pai!
Estou presinha de pés e mãos;
Mais presa quisera estar,
Juntinha a Vós no sacrário,
Não me ausentar um só momento.
Ó Sacramento tão adorado
Do meu Jesus, do meu Amado,
Eu Vos saúdo aqui do leito,
Vinde morar neste meu peito!
Fazei, Senhor,
Dele um sacrário
Para eu poder,
Ó bom Jesus,
Ser Vossa esposa.
Ó meu Amado,
Realizai os meus desejos
Que são, Senhor,
Possuir-Vos em mim
Sacramentado.
Perdão,
meu Deus, eu não sou digna de tamanha graça, de Vos receber, mas não olheis para
a minha miséria, mas sim para a Vossa infinita misericórdia. Sim, meu querido
Jesus?»
No dia
da Anunciação, em 25 de Março de 1934: «Ave Maria, cheia de graça! Eu Vos saúdo,
ó cheia de graça! Soberana Rainha do Céu e da terra, Mãe dos pecadores, eu, a
mais indigna de todas as Vossas filhas, Vos agradeço de todo o coração, ó Santa
Mãe de Deus, por terdes consentido que o meu amabilíssimo Jesus encarnasse em
Vossas puríssimas entranhas para redenção da humanidade. Sim, minha Mãezinha,
encarnar, nascer, viver trinta e três anos no mundo e por fim morrer numa cruz
pelos miseráveis filhos de Eva! Entenda quem puder tantos excessos de amor, que
eu por mim só tenho que confundir-me e lamentar este meu pobre coração por não
ter correspondido a tanta bondade dos meus dois queridos amores, Jesus e Maria!
A mais indigna das Vossas filhas.»
Em 1934:
«Meu Jesus, estou doente, não posso ir visitar-Vos às Vossas igrejas, mas, meu
querido Paizinho do Céu, estou a cumprir a missão que Vós destinastes para mim.
Seja feita a Vossa santíssima vontade em todas as coisas. Meu Bem-amado, Vós
sabeis os meus desejos, que são estar na Vossa presença no Santíssimo
Sacramento. Mas, já que eu não posso, mando-vos o meu coração, a minha
inteligência para aprender todas as Vossas lições, o meu pensamento para que só
em Vós pense, o meu amor para que só a Vós ame, só a Vós busque, só por Vós
suspire, só Vós, meu Jesus, em tudo e por tudo. Vós no sacrário preso e
abandonado e eu, Jesus, presa também. Mas fazei, Senhor, que eu abandone tudo o
que é do mundo, buscando-Vos só a Vós em todas as coisas, que sois a luz da
minha inteligência, sois as minhas delícias, sois todo o meu bem. Oh, eu vos
mando tudo quanto tenho que Vos possa agradar e fazer-Vos companhia no Vosso
sacrário de amor!»
Em 1934:
«Queria, ó meu Jesus, na Vossa presença estar dia e noite, a toda a hora, unida
a Vós estar, e não Vos deixar, meu Jesus, sozinho na Sacramento, nem um momento
me ausentar e dar-Vos o que possuo e que tudo a Vós pertence: o meu coração, o
meu corpo com todos os seus sentidos. É toda a minha riqueza.»
A Nossa
Senhora, em 1934: «Ó minha Mãezinha do Céu, eu tenho tanta, tanta confiança em
Vós que não sei explicar-Vos o amor que Vos tenho.
Ó minha
Mãe, é muito, mas queria muito mais, muito mais; só Vós me podeis alcançar essa
graça e também o amor ao Vosso e meu querido Jesus. Ai, aumentai-mo muito,
muito! Abrasai-me em chamas de puro amor! Sim, sim, minha boa Mãezinha!?»
― Foi em
Setembro de 1934 que eu compreendi que era a voz de Nosso Senhor e não uma
exigência, como julgava. Foi então que Ele me pediu e falou assim: «Dá-me as
tuas mãos, que as quero crucificar; dá-me os teus pés, que os quero cravar
comigo; dá-me a tua cabeça, que a quero coroar de espinhos como Me fizeram a
Mim; dá-me o teu coração, que o quero trespassar com uma lança, como Me
trespassaram a Mim; consagra-Me todo o teu corpo, oferece-te toda a Mim, que te
quero possuir por completo e fazer o que Me aprouver.»
Nosso
Senhor pediu-me isto duas vezes. Não sei dizer a minha aflição, pois não queria
escrever e não queria dizer à minha irmã, mas também não queria ficar calada,
porque compreendia que não era a vontade de Nosso Senhor. Tinha que dizer ao meu
Pai espiritual. Resolvi-me a fazer o sacrifício, pedindo à minha irmã que
escrevesse em meu nome tudo o que lhe ia ditar. Ela não olhava para mim, nem eu
para ela e, depois da carta escrita, tudo morreu para nós ambas, não falando
mais no assunto.
Até esse
tempo, sentia uma grande alegria para mim receber uma carta do meu director
espiritual. Desde então, toda essa consolação espiritual desapareceu. Temia que
ele me maltratasse, dizendo-me que tudo era falso. Eu cedi ao convite de Nosso
Senhor, mas pensava que esses sacrifícios fossem só sofrimentos, embora maiores;
não pensava em nada de sobrenatural. O meu director obrigou-me a que escrevesse
tudo, e durante dois anos e meio não me disse que era Nosso Senhor – o que me
fez sofrer bastante, apesar dos meus poucos conhecimentos.
Desde
então, tinha Jesus à minha ordem, falando-me de dia e de noite. Sentia grande
consolação espiritual; não me assustavam os meus sofrimentos. Em tudo sentia
amor ao meu Jesus e sentia que Ele me amava, pois d’Ele recebia carícias sem
conta. Só me desejava sozinha. Oh, como me sentia em no silêncio e muito
unidinha a Ele!...
Jesus
desabafava muito comigo. Dizia-me coisas tristes, mas as consolações e o amor
que me fazia sentir obrigavam-me a esquecer o Seus desabafos. Passava noites e
noites sem descansar, a contemplar quadros que Jesus me mostrava e em conversa
íntima com Ele. Umas vezes, via Jesus como jardineiro a cuidar das florinhas,
regando-as, guiando-as, etc; passeava pelo meio delas, mostrando-me variedade de
flores. Noutras vezes, aparecia-me em tamanho natural, mostrando-me o Seu Divino
Coração cercado de raios de amor.
Também
vi a Mãezinha uma vez, representando Nossa Senhora do Carmo, com o Seu Divino
Filho nos braços. Outras vezes como Nossa Senhora da Conceição. Oh, como era
bela!... Só queria amá-la e a Jesus! Só me sentia bem a sós com Eles!
― Tudo
queria fazer por Seus amores e, para provar que Os amava, algumas vezes fazia
bolinhas de cera a atava-as na ponta de um lencinho e com ele batia no meu
corpo, escolhendo os lugares onde mais podia sofrer, como fossem nos joelhos e
sobre os ossos, ficando com o meu corpo denegrido das pancadas.
Outras
vezes atava a trança dos meus cabelos aos ferros da minha cama e puxava a cabeça
com toda a força para a frente, para assim mais sofrer.
Ou então
dava nós na ponta da trança, açoitando-me com ela nas costas, no peito, nos
braços e em todas as partes onde a trança chegava.
Na tarde
de um domingo, tinha tantas ânsias de amor divino, não cabendo em mim de
ansiedades, suspirava por ficar sozinha, vendo partir todos os meus para a
igreja. Como de costume, queriam fazer-me companhia, mas eu preferia ficar
sozinha, pois só com Jesus é que me sentia bem. Logo que me deixaram a sós com
Jesus, foi então que lhe provei quanto O amava. Peguei num alfinete que segurava
as minhas medalhinhas espetando-o sobre o meu coração; mas como não visse
aparecer sangue, enterrei-o ainda mais e retorci as fibras até rebentarem,
surgindo sangue. Tomei a caneta e um santinho e com o meu sangue escrevi assim:
«Com o
meu sangue Vos juro amar-Vos muito, meu Jesus, e seja tal o meu amor que morra
abraçada à cruz! Amo-os e morro por Vós, meu querido Jesus, e nos Vossos
sacrários quero habitar, ó meu Jesus. Balasar, 14/10/1934:»
Logo que
acabei de escrever isto, foi tal a repugnância e aflição que senti, tentando
rasgar imediatamente o santinho, mas não seu o que foi que me impediu de o
fazer; não senti nenhuma consolação com esta prova que Lhe dei. Quando minha
irmã regressou da igreja, eu estava numa grande inquietação; não lhe disse o que
tinha feito, mas mostrei-lhe o santinho, e ela exclamou: «Ai, minha marota, o
que tu fizeste! Assim que o Sr. Padre Pinho o souber…» Eu respondi-lhe: «Ai, não
lho digo!» Mas contei isso e tudo o mais que tinha feito. Sua Reverência
perguntou-me quem tinha dado licença, ao que respondi: «Não sabia que era
preciso pedir licença.» Desde então proibiu-me de voltar a fazer coisas deste
género.
― Em 20
de Novembro de 1933, tive a graça de ter pela primeira vez o Santo Sacrifício da
Missa no meu quarto. Principiou Nosso Senhor a aumentar-me os Seus miminhos,
para também aumentar o peso da minha cruz.
Bendito
seja Ele e bendita a sua graça que nunca me faltou!
Começámos agora a sofrer muito com a perda dos nossos bens. Nesse tempo, já a
nada do mundo tinha apego, contudo sofria amarguradamente por ver que tudo
quanto possuíamos não chegava para satisfazer as dívidas de que a mãe era
fiadora. Eu dizia que não queria ficar com o valor de um tostão, enquanto
tivéssemos que pagar. Faltou-me muitas vezes o alimento que melhor poderia comer
e só me alimentava daquilo que tínhamos, mas que prejudicava o meu estado de
físico. Sofria em silêncio e não dizia que comia dessas coisas por não ter
outras melhores, e minha família julgava que eu comia com gosto e assim não a
desgostava pedindo-lhe aquilo que não tinha para me dar. Tudo que me ofereciam
para comer cedia à minha irmã, porque nessa altura ela encontrava-se bastante
doente. Eu pensava assim: já que não tenho cura, que ao menos ela possa
melhorar.
A minha
família chegou a passar muitas privações e até, por vezes, chegaram a comer o
caldo sem adubo, porque não contávamos a nossa vida a ninguém. Chorei muitas
lágrimas, mas procurava sempre que não me vissem chorar. Era de noite que
desabafava com o meu Jesus e com a Mãezinha. Benditas lágrimas que mais me
uniram a Jesus e a Maria e mais firmaram a minha confiança n’Eles.
Esta
situação durou cerca de seis anos. Procurava ser o conforto da minha família.
Quantas vezes ela chorava em altos gritos e eu dizia-lhes que confiassem em
Nosso Senhor. Ele também tinha sido pobre e alegrava-me por Jesus nos ter
assemelhado à Sua pobreza.
Cheguei
a ter medo de ficar acompanhada pela mina mãe, porque ela procurava estar comigo
sozinha para desabafar e, por mais que a confortasse e lhe dissesse que tivesse
confiança, ela na sua dor dizia-me palavras desagradáveis. Eu pedia quase
continuamente a Jesus que nos valesse e, no fim da Sagrada Comunhão, dizia a
Jesus: - «Vós dissestes: pedi e recebereis; batei e abrir-se-vos-á. Eu peço e
hei-de ser ouvida; bato e hei-de ser atendida. Ó Jesus, não Vos peço honras,
grandezas, nem riquezas, mas peço-Vos que nos deixeis a nossa casinha, para que
minha mãe e irmã tenham onde viver até ao fim da vida, para que minha irmã tenha
onde colher as florinhas para compor o Vosso altar na igreja, aos sábados. Ó
Jesus, todas as florinhas são para Vós. Jesus, acudi-nos, que perecemos! Levai
esta notícia longe, a quem nos possa acudir! Não Vos peço este nem aquele meio,
porque não sei! Confio em Vós!»
É bem
verdade, nunca é demais a confiança! Em nossa casa não havia momentos de
alegria. Quantas vezes nos faltava aquilo que nos era indispensável e eu, no
fundo, estava sempre alegre com a vontade de Deus. Confiava cegamente n’Ele.
Escondia o mais possível a minha dor, procurando em tudo animar os meus. A minha
prece foi ouvida. Passaram-se seis anos de aflições e de lágrimas. Jesus ouviu a
nossa prece. Foi mesmo longe, muito longe que uma senhora veio dar remédio ao
nosso mal, que não acabou por acanhamento meu. Não disse tudo quanto devíamos,
porque Nosso Senhor assim o permitiu, para que se prolongasse por mais tempo o
meu sofrimento. Deu-nos ela o bastante para não vendermos a nossa casinha. Eu
chorei mais de confusão do que de contentamento ao receber tão grande graça de
Nosso Senhor. Não sabia como havia de Lhe agradecer. Parecia que estava
louquinha e dizia a Jesus: «Muito obrigada! Muito obrigada!»
É
indizível a alegria que a minha mãe e irmã sentiram quando receberam a quantia
que as aliviou das grandes preocupações em que viviam. É impossível
descrevê-las, pois foram tantas e tão grandes!... Que Jesus aceitasse todas
estas aflições, e bendito Ele seja por tudo. Só com Ele se podia vencer!
― Em
1935: «Coração meu, a quem amas a não ser o teu Jesus? É a riqueza do Céu, é o
amor dos sacrários, o alimento das almas famintas do Seu amor, é o pastor
compassivo das ovelhas desgarradas que há muito Lhe têm fugido. Procura-as por
toda a parte, chama-as, não descansa enquanto as não alcança. Depôs de as ter
consigo, abraça-as, acaricia-as.»
O mês
de Maria, em 1935 – Desejosa de consolar a Mãezinha e
por seu amor sofrer alguma coisa, pensei em escrever nuns pedacinhos de papel
uns pensamentos todos os dias do mês de Maio. Em cada dia tirava um à sorte e
procurava viver segundo o que estava escrito. Isto só com o fim de consolar
Jesus por meio da Mãezinha. Eis o que saiu para cada dia do mês:
1 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para obter um
amor doido a Jesus Sacramentado e para que seja amado de todos no Santíssimo
Sacramento.
2 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelas intenções
do meu padrinho e família.
3 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelos pecadores
que me estão muito recomendados.
4 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo por todos os
pecadores do mundo.
5 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para obter um
amor doido a Maria Santíssima.
6 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelos
sacerdotes.
7 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelas intenções
que me estão recomendadas.
8 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelo meu
director espiritual.
9 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para obter o
amor dos anjos, dos querubins e dos serafins.
10 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo sem em queixar.
11 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelo que for da
vontade de Nosso Senhor.
12 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo em memória da
Paixão de Nosso Senhor.
13 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pela minha
mãezinha.
14 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, mortificarei o mau corpo.
15 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei só para viver para
Jesus e para Maria.
16 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelo Santo Padre
e pelas necessidades da Santa Igreja.
17 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei pelas Dores de Nossa
Senhora.
18 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei pela minha querida
Çãozinha.
19 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, entrego-Lhe o meu corpo como
vítima e renovo o meu voto de virgindade e pureza.
20 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para só pensar
em Jesus e Maria.
21 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para ser muito
amiga do meu Anjo da Guarda.
22 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, guardarei o silêncio.
23 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para obter o
amor da Santíssima Trindade.
24 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei para alcançar tudo de
Nosso Senhor e ser santa.
26 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, renovarei o voto de oferecer
tudo pelas Almas do Purgatório.
27 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo, em primeiro
lugar, pela Nossa Cruzada Eucarística e por outra que me foi recomendada e por
todas do mundo inteiro.
28 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pela conversão e
necessidade de toda a minha família.
29 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo pelos pecadores
que estão para mais depressa irem para a presença do Senhor.
30 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, sofrerei tudo para obter o
amor de todos os santos e santas.
31 – Por
amor de Maria Santíssima e de Jesus Sacramentado, não comerei sobremesa.
No
primeiro de Maio, aos pés de Maria: um verdadeiro e sincero amor da minha parte
para com a minha Mãe Santíssima e para com Jesus Sacramentado.
Em 1 de
Maio de 1935: «Mãe de Jesus e Mãe minha, ouvi a minha oração: eu Vos consagro o
meu corpo e todo o meu coração. Purificai-me, Mãe Santíssima. Enchei-me do Vosso
amor. Colocai-me mesmo Vós junto a Jesus nos sacrários, para lhe servir de
lâmpada enquanto o mundo durar.
Aceitai,
ó Mãe do Céu, as flores que colhi durante este mês bendito; reverdecei-as e
perfumai-as. Entregai-as a Jesus por mim. Abençoai-me, santificai-me, ó minha
querida Mãezinha do Céu!
Em 1936,
já sem forças para escrever por minha mão e querendo dar a mesma prova a Jesus e
à Mãezinha do ano anterior, pedi à minha irmã para escrever os pensamentos que
se seguem em bilhetinhos, para em cada ia tirar um, sofrendo e amando segundo
essa intenção. Seguem os pensamentos:
1 – Por
amor de Jesus e para muita consolação da Mãe do Céu, vou sofrer tudo pelos
sacerdotes, para que eles sejam o que Jesus quer: cumpridores dos seus deveres e
muito santos.
2 – Para
consolar muito, muito a querida Mãezinha do Céu, vou sofrer neste dia para que
Jesus seja amado, muito amado na Santíssima Eucaristia.
3 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei neste dia pelas intenções das
pessoas que tenho costume de pedir mais em particular.
4 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei neste dia pelo bom êxito das
missões, para que em breve ressoe dum cantinho ao outro do mundo a palavra de
Jesus, única verdade.
5 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo hoje pelos pecadores que me
estão recomendados.
6 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, e como prova da minha gratidão para com
Eles, sofrerei hoje pelo meu Pai espiritual. Devo-lhe tanto, tanto!...
7 – Por
amor de Jesus e da Mãezinha do Céu, sofrerei neste dia pela paz das nações e
para que Jesus as converta.
8 – Por
amor de Jesus e para obsequiar a querida Mãezinha do Céu, sofrerei tudo para que
Ela seja amada e querida por todos os que vivem e hão-de ao fim dos séculos, e
que em breve a ela seja consagrado o mundo inteiro.
9 – Por
amor de Jesus e da minha Santíssima Mãe, sofrerei hoje tudo pela minha irmãzinha
da Sertã, pelas melhoras da irmã dela e por todas as suas necessidades.
10 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo hoje para a canonização e
beatificação de todos os santos, para que seja dada muita honra e glória a Nosso
Senhor.
11 – Por
amor de Jesus e de minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo meu Pai
espiritual, pela minha família e pelas necessidades por que mais se interessa e
lhe são mais recomendadas.
12 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei hoje tudo por toda a família da
Çãozinha.
13 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo neste dia pela minha irmã,
para que ela seja muito santa.
14 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo Sr. Padre
Manuel Araújo, pela irmã e sobrinha.
15 – Por
amor de Jesus e de Maria Santíssima, sofrerei tudo pelos sacerdotes que
desprezaram a lei de Nosso Senhor, esquecendo-se do honroso nome de Seus
discípulos, para que voltem a amar Jesus e as almas.
16 – Por
amor de Jesus e da Mãe Santíssima, sofrerei neste dia pela conversão dos
pecadores que estão mais perto de dar contas a Nosso Senhor, para que morram em
estado da Sua divina graça.
17 – Por
amor de Jesus e da Mãezinha do Céu, sofrerei tudo para que não venha o
bolchevismo para Portugal.
18 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei neste dia pelas pessoas que
me são mais queridas, para que Nosso Senhor lhes conceda todas as graças e as
faça santas.
19 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei neste dia para que seja dada
muita honra e glória à santíssima Trindade e que todos conheçam o divino tesouro
que trazem dentro de si.
20 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pela Çãozinha, para
que seja muito santa, e pelas suas necessidades.
21 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei tudo neste dia pela conversão
dos pecadores do mundo inteiro. Tanto, que não queria que fossem mais alminhas
para o inferno!...
22 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelas necessidades
do meu padrinho e família, para que nosso Senhor os ajude.
23 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei tudo hoje para ser mais
humilde, mais obediente, mais pura, toda abrasada no amor do querido Paizinho e
da querida Mãezinha do Céu.
24 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo para obter de Nosso
Senhor a graça de chegar ao maior grau de santidade.
25 – Por
amor de Jesus e para agradar muito à querida Mãezinha do Céu, quero hoje orar e
sofrer muito pelo Santo Padre. É o pai espiritual do mundo inteiro, é luz e guia
de todas as almas, precisa do nosso auxílio.
26 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo bom resultado
da «Acção Católica» e da nossa «Cruzada».
27 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelo bom resultado
da Acção Católica e da Cruzada Eucarística do mundo inteiro. Que todos fossem
santos, é o meu desejo.
28 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo por toda a minha
família.
29 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo pelas necessidades
da minha mãe, para que ela seja muito santa.
30 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei tudo neste pelo triunfo da
Santa Igreja.
31 – Por
amor de Jesus e da minha Mãezinha do Céu, sofrerei hoje tudo para me converter
deveras a Nosso Senhor, cumprindo em tudo a Sua santíssima vontade, sendo o que
Ele quer que eu seja.
Em 31 de
Maio de 1936 escrevi assim:
Mãezinha, eu venho humildemente aos vossos pés depor as flores espirituais que
durante o mês colhi. Estou envergonhada e confundida. Que pobreza! Em que estado
Vo-las entrego! Estão tão murchas, tão desfolhadas! Mas Vós, ó querida Mãezinha
celestial, podeis transformá-las. Reverdecei-as, abrilhantai-as e ide consolar e
perfumar com elas a Jesus por mim. Falai-lhe das minhas penas e das minhas
aflições. Bem sabeis tudo o que me faz estar atribulada. Fazei-Lhe comigo de
novo todos os meus pedidos e despachai Vós, em nome de Jesus, Vo-lo peço, as
pobres flores por quem foram oferecidas. Fazei de um modo particular que com
todas elas eu faça um belo ramalhete para oferecer ao Santo Padre, neste dia do
seu aniversário.
Querida
Mãezinha, neste último dia do Vosso bendito mês, como despedida, já que nada
mais tenho para Vos dar, dou-Vos todo o meu corpo e Vos peço, por quem sois, que
mo guardeis e me tomeis para sempre nos Vossos santíssimos braços, como Vossa
filha muito querida. Abençoai-me, pedi a Jesus Sacramentado que me abençoe
também e toda a Santíssima Trindade.
Adeus,
Mãezinha, perdoai-me tudo.
A pobre
Alexandrina Maria da Costa (a assinatura é da própria Alexandrina).
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