I
Queridos irmãos e irmãs!
Depois
das grandes festas de Natal, gostaria de voltar às meditações sobre
os Padres da Igreja e falar hoje do maior Padre da Igreja latina,
Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e
incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor da Igreja
é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o
cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma
marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo.
Pelo seu singular relevo, Santo Agostinho teve uma influência
vastíssima, e poder-se-ia afirmar, por um lado, que todas as
estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à
beira-mar da Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que
desta cidade da África romana, da qual Agostinho foi Bispo de 395
até à morte em 430, se ramificam muitas outras estradas do
cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.
Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, que
soubesse acolher os seus valores e exaltar a sua intrínseca riqueza,
inventando ideias e formas das quais se alimentariam as gerações
vindouras, como ressaltou também Paulo VI: "Pode-se dizer que todo o
pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam
correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos
séculos sucessivos" (AAS 62, 1970, p. 426). Além disso,
Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. O
seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse
escrever tantas coisas durante a vida. Falaremos destas diversas
obras num próximo encontro. Hoje a nossa atenção concentra-se sobre
a sua vida, que se reconstrói bem pelos escritos, e em particular
pelas Confessiones, a extraordinária autobiografia
espiritual, escrita em louvor a Deus, que é a sua obra mais famosa.
E são precisamente as Confessiones agostinianas, com a sua
atenção à interioridade e à psicologia, que constituem um modelo
único na literatura ocidental, e não só, também não religiosa, até à
modernidade. Esta atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao
mistério do Deus que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária
sem precedentes e permanece para sempre, por assim dizer, um
"vértice" espiritual.
Mas, falando da sua vida, Agostinho nasceu em Tagaste na Província
de Numídia, na África romana a 13 de Novembro de 354, filho de
Patrício, um pagão que depois se tornou catecúmeno, e de Mónica,
cristã fervorosa. Esta mulher apaixonada, venerada como santa,
exerceu sobre o filho uma grandíssima influência e educou-o na fé
cristã. Agostinho recebeu também o sal, como sinal de acolhimento no
catecumenato. E permaneceu sempre fascinado pela figura de Jesus
Cristo; aliás, ele diz que amou sempre Jesus, mas que se afastou
cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como acontece
hoje com muitos jovens.
Agostinho tinha também um irmão, Navígio, e uma irmã, da qual não
sabemos o nome e que, tendo ficado viúva, chefiou depois um mosteiro
feminino. O jovem, de inteligência aguda, recebeu uma boa educação,
mesmo se nem sempre foi um estudante exemplar. Contudo ele estudou
bem a gramática, primeiro na sua cidade natal, depois em Madaura, e
a partir de 370 rectórica em Cartago, capital da África romana:
dominava perfeitamente a língua latina, mas não conseguiu dominar do
mesmo modo o grego nem aprendeu o púnico, falado pelos seus
conterrâneos. Precisamente em Cartago Agostinho leu pela primeira
vez o Hortensius, um escrito de Cícero que depois se perdeu,
o qual está na base do seu caminho rumo à conversão. De facto, o
texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como
escreverá, já Bispo, nas Confessiones: "Aquele livro mudou
verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente
perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor
do coração a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).
Mas
estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se
encontrou efectivamente a verdade, e dado que neste livro
apaixonante lhe faltava aquele nome, logo após tê-lo lido começou a
ler a Escritura, a Bíblia. Mas ficou desiludido. Não só porque o
estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas
também porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas
narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas
não encontrava a altura da filosofia, o esplendor de busca da
verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e
assim procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de
verdade e também ao seu desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim
na rede dos maniqueus, que se apresentavam como cristãos e prometiam
uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está
dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria
toda a complexidade da história humana. Agostinho apreciava também a
moral dualista, porque implicava uma moral muito alta para os
eleitos: e para quem, como ele, a ela aderia, era possível uma vida
muito mais adequada à situação do tempo, sobretudo para um homem
jovem. Portanto, tornou-se maniqueu, convencido naquele momento de
ter encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e
amor a Jesus Cristo. E teve também uma vantagem concreta para a sua
vida: de facto, a adesão aos maniqueus abria perspectivas fáceis
para fazer carreira. Aderir àquela religião que contava muitas
personalidades influentes permitia-lhe prosseguir a relação
estabelecida com uma mulher e continuar a sua carreira. Desta mulher
teve um filho, Adeodato, por ele muito querido, muito inteligente,
que estará depois presente na preparação para o baptismo junto do
lago de Como, participando naqueles "Diálogos" que Santo Agostinho
nos transmitiu. Infelizmente o jovem faleceu prematuramente.
Professor de gramática aos vinte anos na sua cidade natal, regressou
cedo a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de
rectórica. Todavia, com o tempo, Agostinho começou a afastar-se da
fé dos maniqueus, que o desiludiram precisamente sob o ponto de
vista intelectual porque não esclareceram as suas dúvidas, e
transferiu-se para Roma, e depois para Milão, onde na época residia
a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio graças ao
interesse e às recomendações do prefeito de Roma, o pagão Símaco,
hostil ao Bispo de Milão, Santo Ambrósio.
Em
Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir inicialmente para
enriquecer a sua bagagem rectórica as lindíssimas pregações do Bispo
Ambrósio, que tinha sido representante do imperador para a Itália
setentrional, e pela palavra do grande prelado milanês o rectórico
africano sentiu-se fascinado; e não só pela sua rectórica, sobretudo
o conteúdo atingiu cada vez mais o seu coração. O grande problema do
Antigo Testamento, da falta de beleza rectórica, de elevação
filosófica resolveu-se, nas pregações de santo Ambrósio, graças à
interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu
que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo.
Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade
também filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do
mistério de Cristo na história e também a síntese entre filosofia,
racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo eterno que se
fez carne.
Em
breve tempo Agostinho deu-se conta de que a literatura alegórica da
Escritura e a filosofia neoplatónica praticadas pelo Bispo de Milão
lhe permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era
jovem, na sua primeira abordagem aos textos bíblicos, lhe pareciam
insuperáveis.
À dos
escritos dos filósofos Agostinho fez seguir-se a leitura renovada da
Escritura e sobretudo das Cartas paulinas. A conversão ao
cristianismo, a 15 de Agosto de 386, colocou-se no ápice de um longo
e atormentado percurso interior, do qual falaremos noutra catequese,
e o africano transferiu-se para o campo a norte de Milão, nas
proximidades do lago de Como com a mãe Mónica, o filho Adeodato e um
pequeno grupo de amigos a fim de se preparar para o baptismo. Assim,
aos trinta e dois anos, Agostinho foi baptizado por Ambrósio a 24 de
Abril de 387, durante a vigília pascal, na Catedral de Milão.
Depois
do baptismo, Agostinho decidiu regressar à África com os amigos, com
a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de
Deus. Mas em Óstia, à espera de partir, a mãe improvisamente adoeceu
e pouco mais tarde faleceu, dilacerando o coração do filho.
Regressando finalmente à pátria, o convertido estabeleceu-se em
Hipona para ali fundar um mosteiro. Nesta cidade da beira-mar
africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em
391 e iniciou com alguns companheiros a vida monástica na qual
pensava há tempos, dividindo os seus dias entre a oração, o estudo e
a pregação. Ele desejava estar só ao serviço da verdade, não se
sentia chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que a chamada
de Deus era para ser pastor entre os outros, e oferecer assim o dom
da verdade aos demais. Em Hipona, quatro anos mais tarde, em 395,
foi consagrado Bispo. Continuando a aprofundar o estudo das
Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho foi um Bispo
exemplar no seu incansável compromisso pastoral: pregava várias
vezes por semana aos seus fiéis, apoiava os pobres e os órfãos,
cuidava da formação do clero e da organização de mosteiros femininos
e masculinos. Em pouco tempo o antigo rectórico afirmou-se como um
dos representantes mais importantes do cristianismo daquele tempo:
muito activo no governo da sua diocese com notáveis influências
também civis nos mais de 35 anos de episcopado, o Bispo de Hipona
exerceu grande influência na guia da Igreja católica da África
romana e mais em geral no cristianismo do seu tempo, enfrentando
tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras como o
maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que punham em perigo a fé
cristã no Deus único e rico em misericórdia.
E a
Deus se confiou Agostinho todos os dias, até ao extremo da sua vida:
atingido por febre, quando havia três meses que Hipona estava
assediada pelos vândalos invasores, o Bispo narra o amigo Possídio
na Vita Augustini pediu para transcrever em letras grandes os
salmos penitenciais "e fez pregar as folhas na parede, de modo que
estando de cama durante a sua doença os podia ver e ler, e chorava
ininterruptamente lágrimas quentes" (31, 2). Transcorreram assim os
últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu a 28 de Agosto de
430, quando ainda não tinha completado 76 anos. Dedicaremos os
próximos encontros às suas obras, à sua mensagem e à sua vicissitude
interior.
II
Hoje,
como na passada quarta-feira, gostaria de falar do grande Bispo de
Hipona, Santo Agostinho. Quatro anos antes de morrer, ele quis
nomear o sucessor. Por isso, a 26 de Setembro de 426, reuniu o povo
na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis aquele que
tinha designado para tal tarefa. Disse: "Nesta vida somos todos
mortais, mas o último dia desta vida é para cada indivíduo sempre
incerto. Contudo, na infância espera-se chegar à adolescência; na
adolescência à juventude; na juventude à idade adulta; na idade
adulta à maturidade; na idade madura à velhice. Não se tem a certeza
de a alcançar, mas espera-se. A velhice, ao contrário, não tem
diante de si outro período no qual esperar; a sua própria duração é
incerta... Eu por vontade de Deus cheguei a esta cidade no vigor da
minha vida; mas agora a minha juventude passou e eu já sou velho"
(Ep 213, 1). Nesta altura Agostinho pronunciou o nome do
sucessor designado, o sacerdote Heráclito. A assembleia explodiu num
aplauso de aprovação repetindo vinte e três vezes: "Deus seja
louvado! Deus seja louvado!". Com outras aclamações os fiéis
aprovaram, além disso, quanto Agostinho disse depois sobre os
propósitos para o seu futuro: queria dedicar os anos que lhe
restavam a um estudo mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Ep
213, 6).
De
facto, seguiram-se quatro anos de extraordinária actividade
intelectual: realizou obras importantes, empreendeu outras não menos
empenhativas, fez debates públicos com os hereges procurava sempre o
diálogo interveio para promover a paz nas províncias africanas
assediadas pelas tribos bárbaras do sul. Neste sentido escreveu ao
conde Dário, que foi à África para resolver a discórdia entre o
conde Bonifácio e a corte imperial, da qual se estavam a aproveitar
as tribos dos Mauritanos pelas suas incursões: "O maior título de
glória afirmava na carta é precisamente o de suprimir a guerra com
as palavras, em vez de matar os homens com a espada, e procurar ou
manter a paz com a paz e não com a guerra. Sem dúvida, também os que
combatem, se são bons, procuram sem dúvida a paz, mas à custa do
derramamento de sangue. Tu, ao contrário, foste enviado precisamente
para impedir que se procure derramar o sangue de alguém" (Ep
229, 2). Infelizmente, a esperança de uma pacificação dos
territórios africanos foi desiludida: em Maio de 429 os Vândalos,
convidados para a África por vingança pelo próprio Bonifácio,
passaram o estreito de Gibraltar e invadiram a Mauritânia. A invasão
atingiu rapidamente as outras ricas províncias africanas. Em Maio ou
em Junho de 430 "os destruidores do império romano", como Possídio
qualifica aqueles bárbaros (Vita, 30, 1), estavam em volta de
Hipona, que assediaram.
Na
cidade tinha procurado refúgio, o qual, tendo-se reconciliado
demasiado tarde com a corte, procurava agora em vão impedir o
caminho aos invasores. O biógrafo Possídio descreve o sofrimento de
Agostinho: "As lágrimas eram, mais do que o habitual, o seu pão
noite e dia e, tendo já chegado ao extremo da sua vida, mais que os
outros arrastava à amargura e ao luto a sua velhice (Vida,
28, 6). E explica: "De facto, aquele homem de Deus via os massacres
e as destruições das cidades; destruídas as casas no campo e os
habitantes mortos pelos inimigos ou afugentados e desorientados; as
igrejas privadas dos sacerdotes e dos ministros, as virgens sagradas
e os religiosos dispersos por toda a parte; entre eles, outros
mortos sob as torturas, outros assassinados pela espada, outros
feitos prisioneiros, perdida a integridade da alma e do corpo e
também a fé, reduzidos em dolorosa e longa escravidão pelos
inimigos" (ibid., 28, 8).
Mesmo
idoso e cansado, Agostinho conquistou contudo sempre simpatias,
confortando-se a si mesmo e aos outros com a oração e a meditação
sobre os misteriosos desígnios da Providência. Falava, a este
propósito, da "velhice do mundo" e verdadeiramente era velho esse
mundo romano falava desta velhice como já tinha feito anos antes
para confortar os prófugos provenientes da Itália, quando em 410 os
Godos de Alarico tinham invadido a cidade de Roma. Na velhice,
dizia, os doentes abundam: tosse, catarro, remela, ansiedade,
esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é perpetuamente jovem.
E então o convite: "Não rejeitar rejuvenescer unido a Cristo, também
no mundo velho. Ele diz-te: Não temas, a tua juventude
renovar-se-á como a da águia" (cf. Serm. 81, 8). Por
conseguinte, o cristão não deve desanimar mesmo em situações
difíceis, mas empenhar-se por ajudar quem está em necessidade. É
quanto o grande Doutor sugere respondendo ao Bispo de Tiabe,
Honorato, que lhe tinha pedido se, sob as ameaças das invasões
bárbaras, um Bispo, um sacerdote ou um homem qualquer de Igreja
pudesse fugir para salvar a vida: "Quando o perigo é comum a todos,
isto é, a Bispos, clérigos e leigos, os que têm necessidade dos
outros não sejam abandonados por aqueles dos quais têm necessidade.
Neste caso transfiram-se todos para lugares seguros; mas se alguns
têm necessidade de permanecer, não sejam abandonados por aqueles que
têm o dever de os assistir com o ministério sagrado, de modo que se
salvem juntamente ou juntos suportem as calamidades que o Pai de
família quiser que sofram" (Ep 228, 2). E concluía: "Esta é a
prova suprema da caridade" (ibid., 3). Como não reconhecer,
nestas palavras, a mensagem heróica que tantos sacerdotes, aol ongo
dos séculos, acolheram e fizeram própria?
Entretanto a cidade de Hipona resistia. A casa-mosteiro de Agostinho
tinha aberto as suas portas para acolher os colegas no episcopado
que pediam hospitalidade. Entre eles encontrava-se também Possídio,
já seu discípulo, o qual pôde assim deixar-nos o testemunho directo
daqueles últimos e dramáticos dias. "No terceiro mês daquela invasão
narra ele caiu de cama com febre: era a sua última doença" (Vita,
29, 3). O santo idoso aproveitou daquele tempo finalmente livre para
se dedicar com mais intensidade à oração. Costumava afirmar que
ninguém, Bispo, religioso ou leigo, por mais irrepreensível que
possa parecer o seu comportamento, pode encarar a morte com uma
adequada penitência. Por isso ele repetia continuamente entre
lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes recitara com o
povo (cf. ibid., 31, 2).
Quanto
mais se agravava a doença, mais o Bispo moribundo sentia necessidade
de solidão e de oração: "Para não ser incomodado por ninguém no seu
recolhimento, cerca de dez dias antes de sair do corpo implorou a
nós presentes para não deixar entrar ninguém no seu quarto fora das
horas em que os médicos iam visitá-lo ou quando lhe levavam as
refeições. A sua vontade foi cumprida exactamente e durante todo
aquele tempo ele dedicava-se à oração" (ibid., 31, 3). Cessou
de viver a 28 de Agosto de 430: o seu grande coração tinha-se
finalmente aplacado em Deus.
"Para a
deposição do seu corpo informa Possídio foi oferecido a Deus o
sacrifício, ao qual nós assistimos, e depois foi sepultado"
(Vita, 31, 5). O seu corpo, em data incerta, foi transferido
para a Sardenha e dali, por volta de 725, para Pavia, na Basílica de
São Pedro "in Ciel d'oro", onde repousa ainda hoje. O seu primeiro
biógrafo tem sobre ele este juízo conclusivo: "Deixou à Igreja um
clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres
cheios de pessoas dedicadas à continência sob a obediência dos seus
superiores, juntamente com as bibliotecas que contêm livros e
discursos seus e de outros santos, dos quais se conhece qual foi por
graça de Deus o seu mérito e a sua grandeza na Igreja, e nos quais
os fiéis sempre o encontram vivo" (Possídio, Vita, 31, 8).
Trata-se de uma afirmação à qual nos podemos associar: nos seus
escritos também nós o "encontramos vivo". Quando leio os escritos de
Santo Agostinho não tenho a impressão que é um homem morto mais ou
menos há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje:
um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com a sua fé
vigorosa e actual. Em Santo Agostinho que nos fala, fala a mim nos
seus escritos, vemos a actualidade permanente da sua fé; da fé que
vem de Cristo, Verbo Eterno Encarnado, Filho de Deus e Filho do
homem. E podemos ver que esta fé não é de ontem, mesmo tendo sido
pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é realmente ontem,
hoje e para sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Assim nos
encoraja Santo Agostinho a confiar-nos a este Cristo sempre vivo e a
encontrar assim o caminho da vida.
III
Depois
da Semana de oração pela unidade dos cristãos voltamos hoje à grande
figura de Santo Agostinho. O meu querido Predecessor João Paulo II
dedicou em 1986, isto é, no décimo sexto centenário da sua
conversão, um longo e denso documento, a Carta apostólica
Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto
"um agradecimento a Deus pelo dom feito à Igreja, e através dela à
humanidade inteira, com aquela admirável conversão". Sobre o tema da
conversão gostaria de voltar a reflectir numa próxima Audiência. É
um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas também para
a nossa. No Evangelho de domingo passado o próprio Senhor resumiu a
sua pregação com a palavra: "Convertei-vos". Seguindo o caminho de
Santo Agostinho, poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão:
uma coisa definitiva, decisiva, mas a decisão fundamental deve
desenvolver-se, deve realizar-se em toda a nossa vida.
Hoje a
catequese é dedicada, ao contrário, ao tema fé e razão, que é
determinante, ou melhor, o tema determinante para a biografia de
Santo Agostinho. Quando era criança tinha aprendido da sua mãe
Mónica a fé católica. Mas quando era adolescente abandonou esta fé
porque não via a sua racionalidade e não queria uma religião, que
não fosse também para ele expressão da razão, isto é, da verdade. A
sua sede de verdade era radical e levou-o portanto a afastar-se da
fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia
contentar-se com filosofias que não alcançassem a própria verdade,
que não chegassem a Deus. E a um Deus que não fosse só uma última
hipótese cosmológica, mas o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e
que entra na nossa própria vida. Assim todo o percurso intelectual e
espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje
na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes mas
para cada homem que procura a verdade, tema central para o
equilíbrio e o destino de cada ser humano. Estas duas dimensões, fé
e razão, não podem ser separadas nem contrapostas, mas devem antes
estar sempre juntas. Como escreveu o próprio Agostinho, depois da
sua conversão, fé e razão são "as duas forças que nos levam a
conhecer" (Contra Academicos, III, 20, 43). A este propósito
permanecem justamente célebres as duas fórmulas agostinianas
(Sermones, 43, 9) que expressam esta síntese coerente entre fé e
razão: crede ut intelligas ("crê para compreender") o crer
abre o caminho para passar pela porta da verdade mas também, e
inseparavelmente, intellige ut credas ("compreende para
crer"), perscruta a verdade para poder encontrar Deus e crer.
As duas
afirmações de Agostinho exprimem com eficaz prontidão e com igual
profundidade a síntese deste problema, na qual a Igreja católica vê
expresso o próprio caminho. Historicamente esta síntese vai-se
formando, ainda antes da vinda de Cristo, no encontro entre fé
judaica e pensamento grego no judaísmo helénico. Sucessivamente na
história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos
pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa sobretudo
que Deus não está longe: não está longe da nossa razão e da nossa
vida; está próximo de cada ser humano, perto do nosso coração e da
nossa razão, se realmente nos pusermos a caminho.
Precisamente esta proximidade de Deus ao homem foi sentida com
extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus no
homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode ser
reconhecida e descoberta no próprio íntimo: não saias afirma o
convertido mas "volta para ti"; no homem interior habita a verdade;
e se achares que a tua natureza é alterável, transcende-te a ti
mesmo. Mas recorda-te, quando te transcendes a ti mesmo, transcendes
uma alma que raciocina" (De vera religione, 39, 72).
Precisamente como ele mesmo ressalta, com uma afirmação muito
famosa, no início das Confessiones, autobiografia espiritual
escrita para louvor de Deus: "Criastes-nos para Vós, e o nosso
coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós" (I, 1, 1).
A
distância de Deus equivale à distância de si mesmo: "De facto, tu
reconhece Agostinho (Confessiones, III, 6, 11) dirigindo-se
directamente a Deus estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e
acima da minha parte mais alta", interior intimo meo et superior
summo meo; a ponto que acrescenta noutro trecho recordando o
tempo que precedeu a conversão "tu estavas diante de mim; e eu, ao
contrário, tinha-me afastado de mim mesmo, e não me reencontrava; e
muito menos te encontrava a ti" (Confessiones, V, 2, 2).
Precisamente porque Agostinho viveu em primeira pessoa este percurso
intelectual e espiritual, soube transmiti-lo nas suas obras com
tanta prontidão, profundidade e sabedoria, reconhecendo em dois
outros célebres trechos das Confessiones (IV, 4, 9 e 14, 22)
que o homem é "um grande enigma" (magna quaestio) e "um
grande abismo" (grande profundum), enigma e abismo que só
Cristo ilumina e salva. Isto é importante: um homem que está
distante de Deus está também afastado de si mesmo, alienado de si
próprio, e só pode reencontrar-se encontrando-se com Deus. Assim
chega também a si, ao seu verdadeiro eu, à sua verdadeira
identidade.
O ser
humano ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27)
é social por natureza mas anti-social por vício, e é salvo por
Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade e "caminho
universal da liberdade e da salvação", como repetiu o meu
predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): fora
deste caminho, que nunca faltou ao género humano afirma ainda Santo
Agostinho na mesma obra "ninguém jamais foi libertado, ninguém é
libertado e ninguém será libertado" (De civitate Dei, X, 32,
2). Enquanto único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja
e a ela está misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar:
"Tornamo-nos Cristo. De facto, se ele é a cabeça, nós somos os seus
membros, o homem total é Ele e nós" (In Iohannis evangelium
tractatus, 21, 8).
Povo de
Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está portanto
estreitamente relacionada com o conceito de Corpo de Cristo, fundada
na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental
centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o seu Corpo e nos
transforma em seu Corpo. Então, é fundamental que a Igreja, povo de
Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja
verdadeiramente inserida em Cristo, o qual afirma Agostinho numa
lindíssima página "reza por nós, reza em nós, é rezado por nós; reza
por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa cabeça, é
rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos portanto nele a nossa
voz e em nós a sua" (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).
Na
conclusão da Carta apostólica Augustinum Hipponensem João
Paulo II quis perguntar ao próprio Santo o que tem para dizer aos
homens de hoje e responde antes de tudo com as palavras que
Agostinho escreveu numa carta ditada pouco antes da sua conversão:
"Parece-me que se deve reconduzir os homens à esperança de encontrar
a verdade" (Epistulae, 1, 1); aquela verdade que é o próprio
Cristo, Deus verdadeiro, ao qual é dirigida uma das orações mais
bonitas e mais famosas das Confessiones (X, 27, 38): "Tarde
Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis
dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como
era, lançava-me sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis
comigo e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que
não existiria se não existisse em Vós. Mas Vós me chamastes,
clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e
curastes a minha cegueira. Exalastes o vosso perfume: respirei-o e
agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de
Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a vossa paz".
Eis que
Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua vida fez experiência
dele a ponto que esta realidade que é antes de tudo encontro com uma
Pessoa, Jesus mudou a sua vida, assim como muda a de quantos,
mulheres e homens, em todos os tempos têm a graça de o encontrar.
Rezemos para que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça
encontrar assim a sua paz.
IV
Depois
da pausa dos exercícios espirituais da semana passada voltamos hoje
à grande figura de Santo Agostinho, sobre o qual já falei
repetidamente nas catequeses da quarta-feira. É o Padre da Igreja
que deixou o maior número de obras, e hoje pretendo falar delas
brevemente. Alguns dos escritos agostinianos são de importância
fundamental, e não só para a história do cristianismo mas para a
formação de toda a cultura ocidental: o exemplo mais claro são as
Confessiones, sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã
ainda hoje muito lido. Como diversos Padres da Igreja dos primeiros
séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla, também o Bispo
de Hipona exerceu de facto uma influência alargada e persistente,
como é demonstrado pela superabundante tradição manuscrita das suas
obras, que deveras são numerosíssimas.
Ele
mesmo as passou em revista alguns anos antes de morrer nas
Retractationes e pouco depois da sua morte elas foram
cuidadosamente registradas no Indiculus ("elenco")
acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo
Agostinho, Vita Augustini. O elenco das obras de Agostinho
foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a sua memória
enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana e
conta mil e trinta escritos enumerados pelo seu Autor, com outros
"que não podem ser numerados, porque não os enumerou". Bispo de uma
cidade próxima, Possídio ditava estas palavras precisamente a Hipona
onde se tinha refugiado e assistira à morte do amigo e quase
certamente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de
Agostinho. Hoje, são mais de trezentas as cartas do Bispo de Hipona
que sobreviveram e quase seiscentas as homilias, mas elas eram
muitas mais, talvez até entre as três mil e as quatro mil, fruto de
quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido
seguir Jesus e falar já não aos grandes da corte imperial, mas à
simples população de Hipona.
E ainda
em anos recentes as descobertas de um grupo de cartas e de algumas
homilias enriqueceram o nosso conhecimento deste grande Padre da
Igreja. "Muitos livros escreve Possídio foram por ele compostos e
publicados, muitas pregações foram feitas na igreja, transcritas e
corrigidas, quer para contestar os diversos hereges quer para
interpretar as sagradas Escrituras dos santos filhos da Igreja.
Estas obras ressalta o Bispo amigo são tantas que dificilmente um
estudioso tem a possibilidade de as ler e aprender a conhecê-las"
(Vita Augustini, 18, 9).
Entre a
produção literária de Agostinho portanto mais de mil publicações
subdivididas em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais,
morais, monásticos, exegéticos, anti-hereges, além, precisamente,
das obras excepcionais de grande alcance teológico e filosófico.
Antes de tudo é preciso recordar as já mencionadas Confessiones,
escritas em treze livros entre 397 e 400 para louvor de Deus. Elas
são uma espécie de autobiografia na forma de um diálogo com Deus.
Este género literário reflecte precisamente a vida de Santo
Agostinho, que era uma vida não fechada em si, dispersa em tantas
coisas, mas vivida substancialmente como diálogo com Deus e assim
uma vida com os outros. Já o título Confessiones indica a
especificidade desta autobiografia. Esta palavra confessiones
no latim cristão desenvolvido pela tradição dos Salmos tem dois
significados, que contudo se entrelaçam. Confessiones indica,
em primeiro lugar, a confissão das próprias debilidades, da miséria
dos pecados; mas, ao mesmo tempo, confessiones significa
louvor a Deus, reconhecimento a Deus. Ver a própria miséria na luz
de Deus torna-se louvor a Deus e agradecimento porque Deus nos ama e
nos aceita, nos transforma e nos eleva para si mesmo. Sobre estas
Confessiones, que tiveram grande êxito já durante a vida de
Santo Agostinho, ele mesmo escreveu: "Elas exerceram sobre mim tal
acção enquanto as escrevia e ainda a exercem quando as releio. Estas
obras são do agrado de muitos irmãos" (Retractationes, II,
6): e devo dizer que também eu sou um destes "irmãos". E graças às
Confessiones, podemos seguir passo a passo o caminho interior
deste homem extraordinário e apaixonado por Deus. Menos conhecidas
mas igualmente originais e muito importantes são, outrossim, as
Retractationes, compostas em dois livros por volta do ano 427,
nas quais Santo Agostinho já idoso realiza uma obra de "revisão"(retractatio)detoda
a sua obra escrita, deixando assim um documento literário singular e
extremamente precioso, mas também um ensinamento de sinceridade e de
humildade intelectual.
O De
civitate Dei obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do
pensamento político ocidental e para a teologia cristã da história
foi escrito de 413 a 426, em vinte e dois livros. A ocasião era o
saque de Roma, levado a cabo pelos Gotos em 410. Numerosos pagãos
ainda vivos, mas também muitos cristãos, disseram: Roma caiu e agora
o Deus cristão e os apóstolos já não podem proteger a cidade.
Durante a presença das divindades pagãs, Roma era caput mundi,
a grande capital, e ninguém podia pensar que teria caído nas
mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já
não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos já não protegia,
não podia ser o Deus ao qual confiar-se. Nesta objecção, que tocava
profundamente também o coração dos cristãos, Santo Agostinho
responde com esta obra grandiosa, o De civitate Dei,
esclarecendo o que devemos ou não esperar de Deus, qual é a relação
entre o campo político e o campo da fé, da Igreja. Também nos dias
de hoje, este livro é uma fonte para definir bem a verdadeira
laicidade e a competência da Igreja, a grande e verdadeira esperança
que a fé nos proporciona.
Este
livro excelso é uma apresentação da história da humanidade governada
pela Providência divina, mas actualmente dividida por dois amores. E
este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que
é a luta entre dois amores: o amor a si mesmo, "até à indiferença
por Deus", e o amor a Deus", "até à indiferença por si mesmo" (De
civitate Dei, XIV, 28), à plena liberdade de si próprio pelos
outros, na luz de Deus. Portanto, este é talvez o maior livro de
Santo Agostinho, de uma importância permanente. Igualmente
importante é o De Trinitate, obra em quinze livros no núcleo
principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois
tempos: entre 399 e 412, os primeiros doze livros, publicados sem o
conhecimento de Agostinho, que por volta de 420 os completou e reviu
a obra inteira. Aqui, ele reflecte sobre o rosto de Deus e procura
compreender este mistério do Deus que é singular, o único criador do
mundo, de todos nós e, todavia, que precisamente este Deus único é
trinitário, um círculo de amor. Procura compreender o mistério
insondável: exactamente o ser trinitário, em três Pessoas, é a mais
real e mais profunda unidade do único Deus. O De doctrina
Christiana é, no entanto, uma verdadeira e própria introdução
cultural à interpretação da Bíblia e, em última análise, ao próprio
cristianismo, que teve uma importância determinante na formação da
cultura ocidental.
Apesar
de toda a sua humildade, Agostinho certamente estava consciente da
sua estatura intelectual. Mas para ele, mais importante do que
realizar grandes obras de elevado significado teológico, era
transmitir a mensagem aos simples. Esta sua intenção mais profunda,
que orientou toda a sua vida, manifesta-se numa carta escrita ao
colega Evódio, na qual comunica a decisão de suspender
momentaneamente o ditado dos livros do De Trinitate, "porque
são demasiado cansativos e na minha opinião podem ser entendidos por
poucos; por isso, são mais urgentes os textos que, esperamos, venham
a ser mais úteis para muitos" (Epistulae, 169, 1, 1).
Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de modo
compreensível para todos, do que escrever grandes obras teológicas.
A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação da
mensagem cristã é sentida também na origem de escritos, como De
catechizandis rudibus, uma teoria e também uma prática da
catequese, ou o Psalmus contra partem Donati. Os donatistas
eram o grande problema da África de Santo Agostinho, um cisma
intencionalmente africano. Eles afirmavam: a verdadeira cristandade
é africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o
grande Bispo lutou durante toda a sua vida, procurando convencer os
donatistas que somente na unidade também a africanidade pode ser
verdadeira. E para se fazer compreender pelos mais simples, que não
conseguiam entender o latim erudito do reitor, disse: devo escrever
também com erros gramaticais, num latim muito simplificado. E fê-lo
sobretudo neste Psalmus, uma espécie de poesia simples contra
os donatistas, para ajudar todas as pessoas a compreenderem que
unicamente na unidade da Igreja se realiza para todos realmente a
nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.
Nesta
produção destinada a um público mais vasto reveste uma importância
particular o número de homilias, muitas vezes pronunciadas "de modo
improvisado", transcritas pelos taquígrafos durante a pregação e
imediatamente postas em circulação. Entre elas, sobressaem as lindas
Enarrationes in Psalmos, muito lidas na Idade Média.
Precisamente a prática de publicação dos milhares de homilias de
Agostinho muitas vezes sem o controle do autor explica a sua difusão
e sucessiva dispersão, mas também a sua vitalidade. Com efeito,
imediatamente as pregações do Bispo de Hipona tornavam-se, pela fama
do seu autor, textos muito procurados e serviam também para outros
Bispos e sacerdotes como modelos, adequados a contextos sempre
novos.
A
tradição iconográfica, já num afresco lateranense que remonta ao
século VI, representa Santo Agostinho com um livro na mão, sem
dúvida para expressar a sua produção literária que influenciou em
grande medida a mentalidade e o pensamento cristãos, mas para
exprimir também o seu amor pelos livros, pela leitura e pelo
conhecimento da grande cultura precedente. Quando faleceu nada
deixou, narra Possídio, mas "recomendava sempre que se conservasse
diligentemente para a posteridade a biblioteca da igreja com todos
os códices", sobretudo os das suas obras. Nelas, sublinha Possídio,
Agostinho está "sempre vivo" e beneficia quem lê os seus escritos
não obstante, conclui ele, "na minha opinião puderam tirar mais
proveito do seu contacto aqueles que o conseguiram ver e ouvir,
quando falava pessoalmente nas igrejas, e sobretudo aqueles que
tiveram a experiência da sua vida quotidiana no meio do povo" (Vita
Augustini, 31). Sim, também para nós teria sido muito bom poder
ouvi-lo pessoalmente. Todavia, ele está deveras vivo nos seus
escritos, está presente em nós e assim sentimos também a vitalidade
permanente da fé, à qual ele entregou toda a sua vida.
V
Com o
encontro de hoje gostaria de concluir a apresentação da figura de
Santo Agostinho. Depois de termos analisado a sua vida, as suas
obras e alguns aspectos do seu pensamento, hoje gostaria de falar de
novo sobre a sua vicissitude interior, que fez dele um dos maiores
convertidos da história cristã. Dediquei a esta sua experiência em
particular a minha reflexão durante a peregrinação que realizei a
Pavia, no ano passado, para venerar os despojos mortais deste Padre
da Igreja. Deste modo quis expressar-lhe a homenagem de toda a
Igreja católica, mas também tornar visível a minha pessoal devoção e
reconhecimento em relação a uma figura à qual me sinto muito ligado
pela parte que teve na minha vida de teólogo, de sacerdote e de
pastor.
Ainda
hoje é possível repercorrer a vicissitude de Santo Agostinho graças
sobretudo às Confissões, escritas para louvor de Deus e que
estão na origem de uma das formas literárias mais específicas do
Ocidente, a autobiografia, isto é, a expressão pessoal da
consciência de si. Pois bem, quem quer que tome conhecimento deste
livro extraordinário e fascinante, ainda hoje muito lido,
apercebe-se facilmente do modo como a conversão de Agostinho não
tinha sido improvisada nem plenamente realizada desde o início, mas
possa antes ser definida um verdadeiro caminho, que permanece um
modelo para cada um de nós. Este itinerário teve certamente o seu
ápice com a conversão e depois com o baptismo, mas não se concluiu
naquela Vigília pascal do ano 387, quando em Milão o retórico
africano foi baptizado pelo Bispo Ambrósio. De facto, o caminho de
conversão de Agostinho prosseguiu humildemente até ao fim da sua
vida, a ponto que se pode verdadeiramente dizer que as suas diversas
etapas podem-se distinguir facilmente três são uma única grande
conversão.
Santo
Agostinho foi um pesquisador apaixonado da verdade: foi-o desde o
início e depois em toda a sua vida. A primeira etapa do seu caminho
de conversão realizou-se precisamente na progressiva aproximação ao
cristianismo. Na realidade, ele tinha recebido da mãe Mónica, à qual
permaneceu sempre muito ligado, uma educação cristã e, apesar de ter
vivido durante os anos juvenis uma vida desregrada, sentiu sempre
uma atracção profunda por Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do
Senhor com o leite materno, como ele mesmo ressalta (cf.
Confessiones, III, 4, 8). Mas também a filosofia, sobretudo de
índole platónica, tinha contribuído para o aproximar ulteriormente a
Cristo manifestando-lhe a existência do Logos, a razão
criadora. Os livros dos filósofos indicavam-lhe que há a razão, da
qual vem depois todo o mundo, mas não lhe diziam como alcançar este
Logos, que parecia tão distante. Só a leitura do epistolário
de São Paulo, na fé da Igreja católica, lhe revelou plenamente a
verdade. Esta experiência foi sintetizada por Agostinho numa das
páginas mais famosas das Confessiones: ele narra que, no
tormento das suas reflexões, tendo-se retirado num jardim, ouviu
improvisamente uma voz infantil que repetia uma cantilena que nunca
tinha ouvido: tolle, lege, tolle, lege, "toma, lê, toma, lê"
(VIII, 12, 29). Recordou-se então da conversão de António, pai do
monaquismo, e com solicitude voltou ao código paulino que até há
pouco tinha nas mãos, abriu-o e o seu olhar caiu na passagem da
epístola aos Romanos onde o Apóstolo exorta a abandonar as obras da
carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14). Tinha compreendido que
aquela palavra naquele momento se dirigia pessoalmente a ele, vinha
de Deus através do Apóstolo e indicava-lhe o que fazer naquele
momento. Sentiu assim dissipar-se as trevas da dúvida e encontrou-se
enfim livre de se doar totalmente a Cristo: "Tinhas convertido a ti
o meu ser", comenta ele (Confessiones, VIII, 12, 30). Foi
esta a primeira e decisiva conversão.
O
retórico africano chegou a esta etapa fundamental do seu longo
caminho graças à sua paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o
levou a procurar Deus, grande e inacessível. A fé em Cristo fez-lhe
compreender que Deus, aparentemente tão distante, na realidade não o
era. Ele, de facto, tinha-se feito próximo de nós, tornando-se um de
nós. Neste sentido a fé em Cristo levou a cumprimento a longa
pesquisa de Agostinho sobre o caminho da verdade. Só um Deus que se
fez "próximo", um de nós, era finalmente um Deus ao qual se podia
rezar, pelo qual e com o qual se podia viver. Este é um caminho a
percorrer com coragem e ao mesmo tempo com humildade, na abertura a
uma purificação permanente da qual cada um de nós tem sempre
necessidade. Mas com aquela Vigília pascal de 387, como dissemos, o
caminho de Agostinho não estava concluído. Tendo regressado à África
e fundado um pequeno mosteiro retirou-se aí com poucos amigos para
se dedicar à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho da sua
vida. Agora era chamado a viver totalmente pela verdade, com a
verdade, na amizade de Cristo que é a verdade. Um sonho agradável
que durou três anos, até quando foi consagrado sacerdote, a seu mau
grado, em Hipona e destinado a servir os fiéis, continuando a viver
com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isto era para ele
muito difícil, mas compreendeu desde o início que só vivendo para os
outros, e não simplesmente para a sua contemplação particular, podia
realmente viver com Cristo e por Cristo. Assim, renunciando a uma
vida apenas de meditação, Agostinho aprendeu, muitas vezes com
dificuldade, a pôr à disposição o fruto da sua inteligência em
benefício do próximo. Aprendeu a comunicar a sua fé ao povo simples
e a viver assim para ela naquela que se tornou a sua cidade,
desempenhando incansavelmente uma actividade generosa e difícil que
descreve do seguinte modo num dos seus belos sermões: "Continuamente
pregar, discutir, repreender, edificar, estar à disposição de todos
é uma grande tarefa, um grande peso, uma enorme fadiga" (Serm.
339, 4). Mas ele assumiu sobre si este peso, compreendendo que
precisamente assim podia estar mais próximo de Cristo. Compreender
que se chega aos outros com simplicidade e humildade, foi esta a sua
verdadeira e segunda conversão.
Mas há
uma última etapa do caminho agostiniano, uma terceira conversão: a
que o levou todos os dias da sua vida a pedir perdão a Deus.
Inicialmente tinha pensado que quando fosse baptizado, na vida de
comunhão com Cristo, nos Sacramentos, na celebração da Eucaristia,
teria alcançado a vida proposta pelo Sermão da montanha: a perfeição
doada no baptismo e reconfirmada na Eucaristia. Na última parte da
sua vida compreendeu que o que tinha dito nas suas primeiras
pregações sobre o Sermão da montanha isto é, que agora nós como
cristãos vivemos este ideal permanentemente era errado. Só Cristo
realiza verdadeira e completamente o Sermão da montanha. Nós temos
sempre necessidade de ser lavados por Cristo, que nos lava os pés, e
por Ele renovados. Temos necessidade de uma conversão permanente.
Até ao fim temos necessidade desta humildade que reconhece que somos
pecadores a caminho, enquanto o Senhor nos dá a mão definitivamente
e nos introduz na vida eterna. Agostinho faleceu com esta última
atitude de humildade, vivida dia após dia.
Esta
atitude de humildade profunda diante do único Senhor Jesus
introduziu-o na experiência de humildade também intelectual. De
facto, Agostinho, que é uma das maiores figuras na história do
pensamento, quis nos últimos anos da sua vida submeter a um lúcido
exame crítico as suas numerosas obras. Tiveram assim origem as
Retractationes ("revisões"), que deste modo inserem o seu
pensamento teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e santa
daquela a que chama simplesmente com o nome de Catholica,
isto é, da Igreja. "Compreendi escreve precisamente neste livro
muito original (I, 19, 1-3) que um só é verdadeiramente perfeito e
que as palavras do Sermão da montanha estão totalmente realizadas
num só: no próprio Jesus Cristo. Toda a Igreja, ao contrário todos
nós, inclusive os apóstolos devemos rezar todos os dias: perdoai-nos
os nossos pecados assim como nós os perdoamos a quem nos tem
ofendido".
Convertido a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho seguiu-o toda a
vida e tornou-se um modelo para cada ser humano, para nós todos em
busca de Deus. Por isto quis concluir a minha peregrinação a Pavia
recomendando idealmente à Igreja e ao mundo, diante do túmulo deste
grande apaixonado de Deus, a minha primeira Encíclica, intitulada
Deus caritas est. De
facto, ela deve muito, sobretudo na sua primeira parte, ao
pensamento de Santo Agostinho. Também hoje, como no seu tempo, a
humanidade precisa de conhecer e sobretudo viver esta realidade
fundamental: Deus é amor e o encontro com ele é a única resposta às
inquietações do coração humano. Um coração habitado pela esperança,
talvez ainda obscura e inconsciente em muitos dos nossos
contemporâneos, mas que para nós cristãos abre já hoje ao futuro, a
ponto que São Paulo escreveu que "na esperança somos salvos" (Rm
8, 24). Quis dedicar à esperança a minha segunda Encíclica,
Spe salvi, e também
ela é amplamente devedora a Agostinho e ao seu encontro com Deus.
Num
bonito texto Santo Agostinho define a oração como expressão do
desejo e afirma que Deus responde alargando a Ele o nosso coração.
Por nosso lado, devemos purificar os nossos desejos e as nossas
esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. In I Ioannis,
4, 6). De facto, só ela, abrindo-nos também aos outros, nos salva.
Rezemos portanto para que na nossa vida nos seja concedido todos os
dias seguir o exemplo deste grande convertido, encontrando como ele
em cada momento da nossa vida o Senhor Jesus, o único que nos salva,
purifica e concede a verdadeira alegria, a verdadeira vida.
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