Queridos irmãos e irmãs!
A
Igreja vive nas pessoas e quem deseja conhecer a Igreja, compreender
o seu mistério, deve considerar as pessoas que viveram e vivem a sua
mensagem, o seu mistério. Por isso há muito tempo falo nas
catequeses da quarta-feira de pessoas das quais podemos aprender o
que é a Igreja. Começámos com os Apóstolos e com os Padres da Igreja
e, pouco a pouco, chegamos ao século VIII, o período de Carlos
Magno. Hoje gostaria de falar de Ambrósio Autperto, um autor
bastante desconhecido: as suas obras de facto foram atribuídas em
grande parte a outras personagens mais conhecidas, como Santo
Ambrósio de Milão e Santo Ildefonso, sem falar das que os monges de
Montecassino consideraram dever atribuir a um seu abade anónimo, que
viveu quase um século mais tarde. Prescindindo de breves menções
autobiográficas inseridas no seu grande comentário ao Apocalipse,
temos poucas notícias certas sobre a sua vida. A leitura atenta
das obras das quais a pouco e pouco a crítica lhe reconhece a
paternidade permite contudo descobrir no seu ensinamento um tesouro
teológico e espiritual precioso também para o nosso tempo.
Nasceu na Provença, numa família distinta, Ambrósio Autperto —
segundo o seu tardio biógrafo Giovanni — fez parte da corte do rei
dos francos Pepino o Breve onde, além do encargo oficial,
desempenhou de certa forma também o de preceptor do futuro imperador
Carlos Magno. Provavelmente no séquito do Papa Estêvão II, que em
753-54 fora à corte franca, Autperto veio à Itália e teve a ocasião
de visitar a famosa abadia beneditina de São Vicente, na nascente do
Volturno, no ducado de Benevento. Fundada no início daquele século
pelos três irmãos de Benevento Paldone, Tatone e Tasone, a abadia
era conhecida como oásis de cultura clássica e cristã. Pouco depois
da sua visita, Ambrósio Autperto decidiu abraçar a vida religiosa e
entrou naquele mosteiro, onde pôde formar-se de modo adequado,
sobretudo no campo da teologia e da espiritualidade, segundo a
tradição dos Padres. Por volta de 761 foi ordenado sacerdote e a 4
de Outubro de 777 foi eleito abade com o apoio dos monges francos,
enquanto que lhe eram contrários os longobardos, favoráveis ao
longobardo Potone. A tensão de inspiração nacionalista não se
apaziguou nos meses sucessivos, com a consequência que Autperto no
ano seguinte, 778, pensou em demitir-se e retirar-se com alguns
monges francos em Espoleto, onde podia contar com a protecção de
Carlos Magno. Mas mesmo assim o dissídio no mosteiro de S. Vicente
não foi aplainado, e alguns anos mais tarde, quando morreu o abade
que sucedeu a Autperto, foi eleito precisamente Potone (a. 782), o
contraste voltou a alastrar e chegou-se à denúncia do novo abade
junto de Carlos Magno. Ele remeteu os contendentes para o tribunal
do Pontífice, o qual os convocou em Roma. Chamou também como
testemunha Autperto o qual, durante a viagem faleceu improvisamente,
talvez assassinado, a 3o de Janeiro de 784.
Ambrósio Autperto foi monge e abade numa época marcada por fortes
tensões políticas, que se repercutiam também na vida dentro dos
mosteiros. Disto temos ecos frequentes e preocupados nos seus
escritos. Por exemplo, ele denuncia a contradição entre a
maravilhosa aparência externa dos mosteiros e a tibiez dos monges:
certamente esta crítica atingia também a própria abadia. Para ela
escreveu a Vita dos três fundadores com a clara intenção de
oferecer à nova geração de monges um ponto de referência com o qual
se confrontar. Uma finalidade semelhante perseguia também o pequeno
tratado ascético Conflictus vitiorum et virtutum ("Conflito
entre os vícios e as virtudes"), que teve grande sucesso na Idade
Média e foi publicado em 1473 em Utrecht com o nome de Gregório
Magno e um ano mais tarde em Estrasburgo com o de Santo Agostinho.
Nele Ambrósio Autperto pretende ensinar os monges de modo concreto
como enfrentar o combate espiritual dia após dia. De modo
significativo ele aplica a afirmação de 2 Tm 3, 12: "Todos os
que aspiram a viver piedosamente em Jesus Cristo hão-de sofrer
perseguições" já não à perseguição externa, mas o assalto das forças
do mal que o cristão deve enfrentar dentro de si. São apresentadas
numa espécie de contenda 24 pares de combatentes: cada vício procura
cativar a alma com raciocínios subtis, enquanto a respectiva virtude
contesta tais insinuações servindo-se de preferência das palavras da
Escritura.
Neste tratado sobre conflito entre vícios e virtudes, Autperto
contrapõe à cupiditas (a avidez) o contemptus mundi (o
desprezo do mundo), que se torna uma figura importante na
espiritualidade dos monges. Este desprezo do mundo não é um desprezo
da criação, da beleza e da bondade da criação e do Criador, mas um
desprezo da falsa visão do mundo que nos foi apresentada e insinuada
precisamente pela avidez. Ela incute em nós que "ter" seria o máximo
valor do nosso ser, do nosso viver no mundo aparentando ser
importantes. Deste modo falsifica a criação do mundo e destrói o
mundo. Autperto observa depois que a avidez de lucro dos ricos e dos
poderosos na sociedade do seu tempo existe também no interior das
almas dos monges e portanto escreve um tratado intitulado De
cupiditate, no qual, com o apóstolo Paulo, denuncia desde o
início a avidez como raiz de todos os males. Escreve: "Do solo da
terra diversos espinhos agudos surgem de várias raízes; no coração
do homem, ao contrário, as picadas de todos os vícios provêm de uma
só raiz, a avidez" (De cupiditate 1: CCCM 27b, p. 963).
Realce, este, que à luz da actual crise económica mundial, revela
toda a sua actualidade. Vemos precisamente que esta crise nasceu
desta raiz da avidez. Ambrósio imagina a objecção que os ricos e os
poderosos poderiam aduzir dizendo: mas nós não somos monges, para
nós certas exigências ascéticas não são válidas. E ele responde: "É
verdade o que dizeis, mas também para vós, na maneira da vossa
categoria e segundo a medida das vossas forças, é válido o caminho
rípido e estreito, porque o Senhor propôs só duas portas e dois
caminhos (ou seja, a porta estreita e a larga, o caminho rípido e o
cómodo); não indicou uma terceira porta e um terceiro caminho"
(L.C., p. 978). Ele vê claramente que os modos de viver são muito
diversos. Mas também para o homem neste mundo, inclusive para o
rico, é válido o dever de combater contra a avidez, contra a vontade
de possuir, sobressair, contra o conceito falso de liberdade como
faculdade de dispor de tudo segundo o próprio arbítrio. Também o
rico deve encontrar o caminho autêntico da verdade, do amor e assim
da via recta. Portanto, Autperto, como prudente pastor de almas,
sabe depois dizer, no final da sua pregação penitencial, uma palavra
de conforto: "Não falei contra os ávidos, mas contra a avidez, não
contra a natureza, mas contra o vício" (L.C., p. 981).
A
obra mais importante de Ambrósio Autperto é certamente o seu
comentário ao Apocalipse em dez livros: ele constitui, depois
de séculos, o primeiro comentário amplo no mundo latino sobre o
último livro da Sagrada Escritura. Esta obra era fruto de um
trabalho plurianual, realizado em duas etapas entre 758 e 767,
portanto antes da sua eleição para abade. No preâmbulo, ele indica
com exactidão as suas fontes, o que não era absolutamente normal na
Idade Média. Através da sua fonte talvez mais significativa, o
comentário do Bispo Primásio Adrumetano, redigido a meados do séc.
vi, Autperto entra em contacto com a interpretação que tinha deixado
do Apocalipse o africano Ticonio, que viveu uma geração antes
de Santo Agostinho. Não era católico; pertencia à Igreja cismática
donatista; era contudo um grande teólogo. Neste seu comentário ele
vê reflectido sobretudo no Apocalipse o mistério da Igreja.
Ticonio tinha chegado à convicção de que a Igreja fosse um corpo
bipartido: uma parte, diz ele, pertence a Cristo, mas há outra parte
da Igreja que pertence ao diabo. Agostinho leu este comentário e
dele tirou vantagem, mas ressaltou fortemente que a Igreja está nas
mãos de Cristo, permanece o seu Corpo, formando com Ele um só
elemento, partícipe da mediação da graça. Por isso realça que a
Igreja nunca pode ser separada de Jesus Cristo. Na sua leitura do
Apocalipse, semelhante à de Ticonio, Autperto não se interessa
tanto pela segunda vinda de Cristo no fim dos tempos, mas antes
pelas consequências que derivam para a Igreja do presente desde a
sua primeira vinda, a encarnação no seio da Virgem Maria. E diz-nos
uma palavra muito importante: na realidade Cristo "deve nascer,
morrer e ressuscitar quotidianamente em nós, seu Corpo" (In Apoc.
III: CCCM 27, p. 205). No contexto da dimensão mística que investe
cada cristão, ele olha para Maria como modelo da Igreja, modelo para
todos nós, porque também em nós e entre nós deve nascer Cristo.
Sobre a multidão de Padres que viam na "mulher revestida de sol" de
Ap 12, 1 a imagem da Igreja, Autperto argumenta: "A
bem-aventurada e piedosa Virgem... quotidianamente dá à luz novos
povos, dos quais se forma o Corpo geral do Mediador. Portanto não
surpreende se aquela, em cujo seio abençoado a própria Igreja
mereceu ser unida à sua cabeça, representa o tipo da Igreja". Neste
sentido Autperto vê um papel decisivo da Virgem Maria na obra da
Redenção (cf. também as suas homilias In purificatione S. Mariae
e In adsumptione S. Mariae). A sua grande veneração e o
seu profundo amor pela Mãe de Deus inspiram-lhe por vezes
formulações que de certa forma antecipam as de São Bernardo e da
mística franciscana, sem contudo se desviar para formas discutíveis
de sentimentalismo, porque ele nunca separa Maria do mistério da
Igreja. Portanto, com razão Ambrósio Autperto é considerado o maior
mariólogo no Ocidente. À piedade que, na sua opinião, deve libertar
a alma do apego aos prazeres terrenos e passageiros, ele considera
que se deve unir o estudo profundo das ciências sagradas, sobretudo
a meditação das Sagradas Escrituras, que qualifica "céu profundo,
abismo insondável" (In Apoc. IX). Na bonita oração com a qual
conclui o seu comentário ao Apocalipse ressaltando a
prioridade que em cada busca teológica da verdade compete ao amor,
ele dirige-se a Deus com estas palavras: "Quando por nós és
perscrutado intelectualmente, não és descoberto como és realmente;
quando és amado, és alcançado".
Podemos hoje ver em Ambrósio Autperto uma personalidade que viveu
numa época de forte instrumentalização política da Igreja, na qual
nacionalismos e tribalismos tinham desfigurado o rosto da Igreja.
Mas ele, entre tantas dificuldades que também nós conhecemos, soube
descobrir o verdadeiro rosto da Igreja em Maria, nos Santos. E soube
assim compreender o que significa ser católico, ser cristão, viver
da Palavra de Deus, entrar neste abismo e viver assim o mistério da
Mãe de Deus: dar de novo vida à Palavra de Deus, oferecer à Palavra
de Deus a própria carne no tempo actual. E com todo o seu
conhecimento teológico, a profundidade da sua ciência, Autperto
soube compreender que com a simples busca teológica Deus não pode
ser conhecido realmente como é. Só o amor o alcança. Ouçamos esta
mensagem e rezemos ao Senhor para que nos ajude a viver o mistério
da Igreja hoje, neste nosso tempo. |