Queridos irmãos e irmãs,
Com
Margarida de Oingt, de quem gostaria de vos falar hoje, somos
introduzidos na espiritualidade cartuxa, que se inspira na síntese
evangélica vivida e proposta por São Bruno. Não sabemos a data do
seu nascimento, embora alguns afirmem que ocorreu por volta de 1240.
Margarida provém de uma família poderosa de antiga nobreza da região
de Lião, os Oingt. Sabemos que também a mãe se chamava Margarida, e
que tinha dois irmãos — Guiscardo e Luís — e três irmãs: Catarina,
Isabel e Inês. Esta última segui-la-á no mosteiro, na Cartuxa,
sucedendo-lhe em seguida como priora.
Não
dispomos de notícias acerca da sua infância, mas dos seus escritos
podemos intuir que a transcorreu tranquilamente, num ambiente
familiar carinhoso. Com efeito, para manifestar o amor ilimitado de
Deus, ela valoriza muito as imagens ligadas à família, com
referência particular às figuras do pai e da mãe. Numa das suas
meditações, ela reza assim: «Bom e dócil Senhor, quando penso nas
graças especiais que me concedeste pela tua solicitude: em primeiro
lugar, como me conservaste desde a minha infância, e como me
subtraíste do perigo deste mundo e me chamaste para que eu me
dedicasse ao teu santo serviço, e como me ofereceste tudo o que me
era necessário para comer, beber, vestir e calçar (e fizeste-o), de
tal modo que eu não tive necessidade de pensar em tudo isto, a não
ser na tua grande misericórdia» (Margarida de Oingt, Scritti
spirituali, Meditação V, 100, Cinisello Balsamo 1997, pág. 74).
Das
suas meditações intuímos também que entrou na Cartuxa de Poleteins
em resposta à chamada do Senhor, deixando tudo e aceitando a severa
regra dos cartuxos, para ser totalmente do Senhor, para estar sempre
com Ele. Ela escreve: «Dócil Senhor, deixei meu pai, minha mãe, meus
irmãos e todas as coisas deste mundo por amor a ti; mas isto é
pouquíssimo, porque as riquezas deste mundo mais não são que
espinhos pungentes; e quem mais as possui, mais é desafortunado. E
por isso tenho a impressão que só deixei miséria e pobreza; mas Tu
sabes, dócil Senhor, que se eu possuísse mil mundos e pudesse dispor
deles a meu bem-prazer, abandonaria tudo por amor a ti; e ainda que
Tu me concedesses tudo quanto possuis no céu e na terra, eu não me
sentiria satisfeita, enquanto não te tivesse a ti, porque Tu és a
vida da minha alma, e não tenho nem quero ter um pai nem uma mãe
fora de ti» (Ibid., Meditação II, 32, pág. 59).
Também
da sua vida na Cartuxa possuímos poucos dados. Sabemos que em 1288
se tornou a sua quarta priora, cargo que desempenhou até à morte,
ocorrida a 11 de Fevereiro de 1310. De qualquer maneira, dos seus
escritos não sobressaem mudanças particulares no seu itinerário
espiritual. Ela concebe toda a sua vida como um caminho de
purificação, até à plena configuração com Cristo. Cristo é o Livro
que deve ser escrito, gravado quotidianamente no próprio coração e
na própria vida, de modo especial a sua Paixão salvífica. Na obra
Speculum Margarida, referindose a si mesma na terceira pessoa,
sublinha que pela graça do Senhor «tinha gravado no seu coração a
santa vida que Deus, Jesus Cristo, levou na terra, os seus bons
exemplos e a sua boa doutrina. Ela tinha inserido tão bem o dócil
Jesus Cristo no seu coração, que até lhe parecia que Ele estava
presente e segurasse um livro fechado na sua mão, para a instruir» (Ibid.,
I, 2-3, pág. 81). «Neste livro ela encontrava inscrita a vida
que Jesus Cristo levou na terra, desde o seu nascimento até à sua
elevação ao Céu» (Ibid., I, 12, pág. 83).
Diariamente, desde a manhã, Margarida aplica-se ao estudo deste
livro. E, depois de o observar atentamente, começa a ler no livro da
sua consciência, que revela as falsidades e as mentiras da sua vida
(cf. ibid., I, 6-7, pág. 82); escreve de si mesma para
beneficiar os outros e para fixar mais profundamente no próprio
coração a graça da presença de Deus, ou seja, para fazer com que
todos os dias a sua existência seja marcada pelo confronto com as
palavras e as obras de Jesus, com o Livro da sua vida. E isto para
que a vida de Cristo seja impressa na alma de modo estável e
profundo, a ponto de poder ver o Livro no seu interior, ou seja, até
contemplar o mistério de Deus Trindade (cf. ibid., II, 14-22;
III, 23-40, págs. 84-90).
Através
dos seus escritos, Margarida oferece-nos alguns indícios sobre a sua
espiritualidade, permitindo-nos compreender algumas características
da sua personalidade e dos seus dotes de governo. É uma mulher muito
culta; escreve habitualmente em latim, a língua dos eruditos, mas
escreve inclusive em franco provençal, e também esta é uma raridade:
assim os seus escritos são os primeiros, dos quais se conserva a
memória, redigidos nesta língua. Ela vive uma existência rica de
experiências místicas, descritas com simplicidade, deixando intuir o
mistério inefável de Deus, sublinhando os limites da mente na sua
compreensão e na inadequação da língua humana para o manifestar. Ela
tem uma personalidade linear, simples, aberta, de dócil carga
afectiva, de grande equilíbrio e de discernimento perspicaz, capaz
de penetrar nas profundidades do espírito humano, de compreender os
seus limites, as suas ambiguidades, mas também as suas aspirações e
a tensão da alma para Deus. Demonstra uma acentuada disposição para
o governo, unindo a sua profunda vida espiritual e mística, com o
serviço às irmãs e à comunidade. Neste sentido, é significativo um
trecho de uma carta escrita a seu pai: «Meu dócil pai, comunico-lhe
que me encontro muito ocupada por causa das necessidades da nossa
casa, que não me é possível aplicar o espírito em bons pensamentos;
com efeito, tenho tantas coisas para fazer que não sei por onde
começar. Não recolhemos o trigo no sétimo mês do ano, e os nossos
vinhedos foram destruídos pela tempestade. Além disso, a nossa
igreja encontra-se em condições tão precárias, que somos obrigadas a
reconstruí-la parcialmente» (Ibid., Cartas, III, 14, pág.
127).
Uma
monja cartuxa delineia assim a figura de Margarida: «Através da sua
obra, revela-nos uma personalidade fascinante, uma inteligência
viva, orientada para a especulação e, ao mesmo tempo, favorecida por
graças místicas, em síntese, uma mulher santa e sábia que sabe
expressar com um certo humorismo uma afectividade inteiramente
espiritual» (Una Monaca Certosina, Certosine, em
Dizionario degli Istituti di Perfezione, Roma 1975, col. 777).
No dinamismo da vida mística, Margarida valoriza a experiência dos
afectos naturais, purificados pela graça, como meio privilegiado
para compreender mais profundamente e favorecer a acção divina com
mais prontidão e ardor. O motivo reside no facto de que a pessoa
humana é criada à imagem de Deus, e por isso é chamada a construir
com Deus uma maravilhosa história de amor, deixando-se envolver
totalmente pela sua iniciativa.
O Deus
Trindade, o Deus amor que se revela em Cristo fascina-a, e Margarida
vive uma relação de amor profunda pelo Senhor e, em contrapartida,
vê a ingratidão humana até à pusilanimidade, até ao paradoxo da
cruz. Ela afirma que a cruz de Cristo é semelhante ao leito do
parto. A dor de Jesus na cruz é comparada com a de uma mãe. Ela
escreve: «A mãe que me trouxe no ventre sofreu enormemente ao dar-me
à luz, por um dia ou por uma noite, mas Tu, bom e dócil Senhor, por
mim foste atormentado não apenas por uma noite ou por um dia, mas
por mais de trinta anos (...) como padeceste amargamente por causa
de mim, durante toda a tua vida! E quando chegou o momento do parto,
o seu sofrimento foi tão doloroso que o teu santo suor se
transformou como que em gotas de sangue que desciam por todo o teu
corpo até ao chão» (Ibid., Meditação I, 33, pág. 59).
Evocando as narrações da Paixão de Jesus, Margarida contempla estas
dores com profunda compaixão: «Tu foste depositado no duro leito da
cruz, de tal modo que não te podias mover, nem virar ou agitar os
teus membros, como costuma fazer um homem que padece uma grande dor,
porque foste completamente estendido e te foram cravados os pregos
(...) e (...) foram dilacerados todos os teus músculos e as tuas
veias (...) Mas todas estas dores (...) ainda não te bastavam, e por
isso quiseste que o teu lado fosse trespassado pela lança, com tanta
crueldade a ponto de fazer com que o teu dócil corpo fosse
totalmente arado e lacerado; e o teu precioso sangue jorrava com
tanta violência, que formou um longo percurso, como se fosse um
grande regato». Referindo-se a Maria, ela afirma: «Não surpreende
que a espada que trespassou o teu corpo tenha penetrado também o
Coração da sua gloriosa Mãe, que tanto amava sustentar-te (...)
porque o teu amor foi superior a todos os outros amores» (Ibid.,
Meditação II, 36-39.42, pág. 60 s.).
Caros
amigos, Margarida de Oingt convida-nos a meditar quotidianamente
sobre a vida de dor e de amor de Jesus, e da sua Mãe, Maria. É nisto
que consiste a nossa esperança, o sentido da nossa existência. Da
contemplação do amor de Cristo por nós brotam a força e a alegria de
responder com igual amor, colocando a nossa vida ao serviço de Deus
e do próximo. Com Margarida, digamos também nós: «Dócil Senhor, tudo
quanto realizaste, por amor a mim e a todo o género humano,
estimula-me a amar-te, mas a recordação da tua santíssima Paixão
infunde um vigor inaudito no meu poder de afecto para te amar. É por
isso que me parece (...) que encontrei aquilo que eu tanto desejava:
amar unicamente a ti, ou em ti ou por amor a ti» (Ibid.,
Meditação II, 46, pág. 62).
À
primeira vista, esta figura de cartuxa medieval, assim como toda a
sua vida e o seu pensamento parecem muito distantes de nós, da nossa
vida e do nosso modo de pensar e de agir. Contudo, se considerarmos
o essencial desta vida, vemos que diz respeito também a nós e
deveria tornar-se fundamental inclusive na nossa existência.
Ouvimos
que Margarida considerava o Senhor como um livro, fixava o olhar no
Senhor, considerava-a como um espelho onde aparece também a própria
consciência. E foi deste espelho que a luz entrou na sua alma:
deixou entrar a palavra, a vida de Cristo no seu próprio ser e assim
foi transformada; a consciência foi iluminada, encontrou critérios,
luz, e foi purificada. É precisamente disto que também nós temos
necessidade: deixar que as palavras, a vida e a luz de Cristo entrem
na nossa consciência, para que ela seja iluminada e compreenda o que
é verdadeiro e bom, e o que é mau; que a nossa consciência seja
iluminada e purificada. Não há imundície apenas nas diversas
estradas do mundo. Há imundície também nas nossas consciências e nas
nossas almas. Só a luz do Senhor, a sua força e o seu amor nos
limpa, purifica e indica o caminho recto. Portanto, sigamos Santa
Margarida neste olhar para Jesus. Leiamos no livro da sua vida,
deixemo-nos iluminar e purificar, para aprender a vida autêntica.
Obrigado! |