AO EPISCOPADO, AO CLERO
ÀS PESSOAS CONSAGRADAS
E AOS FIÉIS LEIGOS
SOBRE
A PALAVRA DE DEUS
NA VIDA E NA MISSÃO DA IGREJA
INTRODUÇÃO
1. A palavra do senhor permanece
eternamente. E esta é a palavra do Evangelho que vos foi anunciada»
(1 Pd 1, 25; cf. Is 40, 8). Com esta citação da
Primeira Carta de São Pedro, que retoma as palavras do profeta
Isaías, vemo-nos colocados diante do mistério de Deus que Se
comunica a Si mesmo por meio do dom da sua Palavra. Esta Palavra,
que permanece eternamente, entrou no tempo. Deus pronunciou a sua
Palavra eterna de modo humano; o seu Verbo «fez-Se carne» (Jo
1, 14). Esta é a boa nova. Este é o anúncio que atravessa os séculos,
tendo chegado até aos nossos dias. A
XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, que se efectuou
no Vaticano de 5 a 26 de Outubro de 2008, teve como tema A
Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Foi uma
experiência profunda de encontro com Cristo, Verbo do Pai, que está
presente onde dois ou três se encontram reunidos em seu nome (cf.
Mt 18, 20). Com esta Exortação apostólica pós-sinodal, acolho de
bom grado o pedido que me fizeram os Padres de dar a conhecer a todo
o Povo de Deus a riqueza surgida naquela reunião vaticana e as
indicações emanadas do trabalho comum.[1]
Nesta linha, pretendo retomar tudo o que foi elaborado pelo Sínodo,
tendo em conta os documentos apresentados: os
Lineamenta, o
Instrumentum laboris, os Relatórios ante e post
disceptationem e os textos das intervenções, tanto os que foram
lidos na sala como os apresentados in scriptis, os Relatórios
dos Círculos Menores e os seus debates, a
Mensagem final ao Povo de Deus e sobretudo algumas propostas
específicas (Propositiones),
que os Padres consideraram de particular relevância. Desejo assim
indicar algumas linhas fundamentais para uma redescoberta, na vida
da Igreja, da Palavra divina, fonte de constante renovação, com a
esperança de que a mesma se torne cada vez mais o coração de toda a
actividade eclesial.
Para que a
nossa alegria seja perfeita
2. Quero, antes de mais
nada, recordar a beleza e o fascínio do renovado encontro com o
Senhor Jesus que se experimentou nos dias da assembleia sinodal. Por
isso, fazendo-me eco dos Padres, dirijo-me a todos os fiéis com as
palavras de São João na sua primeira carta: «Nós vos anunciamos a
vida eterna, que estava no Pai e que nos foi manifestada – o que
vimos e ouvimos, isso vos anunciamos, para que também vós tenhais
comunhão connosco. Quanto à nossa comunhão, ela é com o Pai e com
seu Filho Jesus Cristo» (1 Jo 1, 2-3). O Apóstolo fala-nos de
ouvir, ver, tocar e contemplar (cf. 1 Jo 1, 1) o Verbo
da Vida, já que a Vida mesma se manifestou em Cristo. E nós,
chamados à comunhão com Deus e entre nós, devemos ser anunciadores
deste dom. Nesta perspectiva querigmática, a assembleia sinodal foi
um testemunho para a Igreja e para o mundo de como é belo o encontro
com a Palavra de Deus na comunhão eclesial. Portanto, exorto todos
os fiéis a redescobrirem o encontro pessoal e comunitário com Cristo,
Verbo da Vida que Se tornou visível, a fazerem-se seus anunciadores
para que o dom da vida divina, a comunhão, se dilate cada vez mais
pelo mundo inteiro. Com efeito, participar na vida de Deus, Trindade
de Amor, é a alegria completa (cf. 1 Jo 1, 4). E é dom
e dever imprescindível da Igreja comunicar a alegria que deriva do
encontro com a Pessoa de Cristo, Palavra de Deus presente no meio de
nós. Num mundo que frequentemente sente Deus como supérfluo ou
alheio, confessamos como Pedro que só Ele tem «palavras de vida
eterna» (Jo 6, 68). Não existe prioridade maior do que esta:
reabrir ao homem actual o acesso a Deus, a Deus que fala e nos
comunica o seu amor para que tenhamos vida em abundância (cf. Jo
10, 10).
Da «Dei
Verbum» ao Sínodo sobre a Palavra de
Deus
3. Com a
XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Palavra
de Deus, estamos conscientes de nos termos debruçado de certo
modo sobre o próprio coração da vida cristã, dando
continuidade à assembleia sinodal anterior sobre a Eucaristia
como fonte e ápice da vida e da missão da Igreja. De facto, a
Igreja funda-se sobre a Palavra de Deus, nasce e vive dela.[2]
Ao longo de todos os séculos da sua história, o Povo de Deus
encontrou sempre nela a sua força, e também hoje a comunidade
eclesial cresce na escuta, na celebração e no estudo da Palavra de
Deus. Há que reconhecer que, nas últimas décadas, a vida eclesial
aumentou a sua sensibilidade relativamente a este tema, com
particular referência à Revelação cristã, à Tradição viva e à
Sagrada Escritura. Pode-se afirmar que, a partir do pontificado do
Papa Leão XIII, houve um crescendo de intervenções visando
suscitar maior consciência da importância da Palavra de Deus e dos
estudos bíblicos na vida da Igreja,[3]
que teve o seu ponto culminante no
Concílio Vaticano II, de modo especial com a promulgação da
Constituição dogmática sobre a Revelação divina
Dei Verbum. Esta representa um marco miliário no caminho da
Igreja. «Os Padres Sinodais (…) reconhecem, com ânimo agradecido, os
grandes benefícios que este documento trouxe à vida da Igreja a
nível exegético, teológico, espiritual, pastoral e ecuménico».[4]
De modo particular cresceu, nestes anos, a consciência do «horizonte
trinitário e histórico-salvífico da Revelação»[5]
em que se deve reconhecer Jesus Cristo como «o mediador e a
plenitude de toda a Revelação».[6]
A Igreja confessa, incessantemente, a cada geração que Ele, «com
toda a sua presença e manifestação da sua pessoa, com palavras e
obras, sinais e milagres, e sobretudo com a sua morte e gloriosa
ressurreição e, enfim, com o envio do Espírito de verdade, completa
totalmente e confirma com o testemunho divino a Revelação».[7]
É de conhecimento geral
o grande impulso dado pela Constituição dogmática
Dei Verbum à redescoberta da Palavra de Deus na vida da
Igreja, à reflexão teológica sobre a Revelação divina e ao estudo da
Sagrada Escritura. E numerosas foram também as intervenções do
Magistério eclesial sobre estas matérias nos últimos quarenta anos.[8]
A Igreja, ciente da continuidade do seu próprio caminho sob a guia
do Espírito Santo, com a celebração deste Sínodo sentiu-se chamada a
aprofundar ainda mais o tema da Palavra divina, seja para verificar
a realização das indicações conciliares seja para enfrentar os novos
desafios que o tempo presente coloca a quem acredita em Cristo.
O Sínodo
dos Bispos sobre a Palavra de Deus
4. Na
XII Assembleia sinodal, Pastores vindos de todo o mundo
congregaram-se ao redor da Palavra de Deus, colocando simbolicamente
no centro da Assembleia o texto da Bíblia, para redescobrirem algo
que nos arriscamos de dar por adquirido no dia-a-dia: o facto de
que Deus fale e responda às nossas perguntas.[9]
Juntos escutámos e celebrámos a Palavra do Senhor. Narrámos uns aos
outros aquilo que o Senhor está a realizar no Povo de Deus,
partilhando esperanças e preocupações. Tudo isto nos tornou
conscientes de que só podemos aprofundar a nossa relação com a
Palavra de Deus dentro do «nós» da Igreja, na escuta e no
acolhimento recíproco. Daqui nasce a gratidão pelos testemunhos
sobre a vida eclesial nas diversas partes do mundo, surgidos nas
várias intervenções feitas na sala. Ao mesmo tempo foi comovedor
também ouvir os Delegados Fraternos, que aceitaram o convite para
participar no encontro sinodal. Penso de modo particular na
meditação que nos ofereceu Sua Santidade Bartolomeu I, Patriarca
Ecuménico de Constantinopla, pela qual os Padres sinodais exprimiram
profunda gratidão.[10]
Além disso, pela primeira vez, o Sínodo dos Bispos quis convidar
também um Rabino, que nos deu um testemunho precioso sobre as
Sagradas Escrituras judaicas; estas são precisamente uma parte das
nossas Sagradas Escrituras.[11]
Pudemos assim
constatar, com alegria e gratidão, que «na Igreja há um Pentecostes
também hoje, ou seja, que ela fala em muitas línguas; e isto não só
no sentido externo de estarem nela representadas todas as grandes
línguas do mundo mas também, e mais profundamente, no sentido de que
nela estão presentes os variados modos da experiência de Deus e do
mundo, a riqueza das culturas, e só assim se manifesta a vastidão da
existência humana e, a partir dela, a vastidão da Palavra de Deus».[12]
Além disso, pudemos constatar também um Pentecostes ainda a caminho;
vários povos aguardam ainda que seja anunciada a Palavra de Deus na
sua própria língua e cultura.
Como não recordar
também que, durante todo o Sínodo, nos acompanhou o testemunho do
Apóstolo Paulo? De facto, foi providencial que a
XII Assembleia Geral Ordinária se tenha realizado precisamente
dentro do ano dedicado à figura do grande Apóstolo das Nações, por
ocasião do bimilenário do seu nascimento. A sua existência
caracterizou-se completamente pelo zelo em difundir a Palavra de
Deus. Como não sentir vibrar no nosso coração as palavras com que se
referia à sua missão de anunciador da Palavra divina: «Faço tudo por
causa do Evangelho» (1 Cor 9, 23); «pois eu – escreve na
Carta aos Romanos – não me envergonho do Evangelho, o qual é
poder de Deus para salvação de todo o crente» (1, 16)?! Quando
reflectimos sobre a Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja,
não podemos deixar de pensar em São Paulo e na sua vida entregue à
difusão do anúncio da salvação de Cristo a todos os povos.
O Prólogo
do Evangelho de João por guia
5. Desejo, através
desta Exortação apostólica, que as conclusões do Sínodo influam
eficazmente sobre a vida da Igreja: sobre a relação pessoal com as
Sagradas Escrituras, sobre a sua interpretação na liturgia e na
catequese bem como na investigação científica, para que a Bíblia não
permaneça uma Palavra do passado, mas uma Palavra viva e actual. Com
este objectivo, pretendo apresentar e aprofundar os resultados do
Sínodo, tomando por referência constante o Prólogo do Evangelho
de João (Jo 1, 1-18), que nos dá a conhecer o fundamento
da nossa vida: o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus,
fez-Se carne e veio habitar entre nós (cf. Jo 1, 14). Trata-se
de um texto admirável, que dá uma síntese de toda a fé cristã. A
partir da sua experiência pessoal do encontro e seguimento de Cristo,
João, que a tradição identifica com «o discípulo que Jesus amava» (Jo
13, 23; 20, 2; 21, 7.20), «chegou a esta certeza íntima: Jesus é a
Sabedoria de Deus encarnada, é a sua Palavra eterna feita homem
mortal».[13] Aquele que
«viu e acreditou» (Jo 20, 8) nos ajude também a apoiar a
cabeça sobre o peito de Cristo (cf. Jo 13, 25), donde brotou
sangue e água (cf. Jo 19, 34), símbolos dos Sacramentos da
Igreja. Seguindo o exemplo do Apóstolo João e dos outros autores
inspirados, deixemo-nos guiar pelo Espírito Santo para podermos
amar cada vez mais a Palavra de Deus.
I PARTE
VERBUM DEI
«No princípio já existia o Verbo,
e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (…)
e o Verbo fez-Se carne» (Jo 1, 1.14)
O Deus que fala
Deus em
diálogo
6. A novidade da
revelação bíblica consiste no facto de Deus Se dar a conhecer no
diálogo, que deseja ter connosco.[14]
A Constituição dogmática
Dei Verbum tinha exposto esta realidade, reconhecendo que
«Deus invisível na riqueza do seu amor fala aos homens como a amigos
e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele».[15]
Mas ainda não teríamos compreendido suficientemente a mensagem do
Prólogo de São João, se nos detivéssemos na constatação de que Deus
Se comunica amorosamente a nós. Na realidade, o Verbo de Deus, por
meio do Qual «tudo começou a existir» (Jo 1, 3) e que Se «fez
carne» (Jo 1, 14), é o mesmo que já existia «no princípio» (Jo
1, 1). Se aqui podemos descobrir uma alusão ao início do livro do
Génesis (cf. Gn 1, 1), na realidade vemo-nos colocados diante
de um princípio de carácter absoluto e que nos narra a
vida íntima de Deus. O Prólogo joanino apresenta-nos o facto de que
o Logos existe realmente desde sempre, e desde sempre
Ele mesmo é Deus. Por conseguinte, nunca houve em Deus um
tempo em que não existisse o Logos. O Verbo preexiste à
criação. Portanto, no coração da vida divina, há a comunhão, há o
dom absoluto. «Deus é amor» (1 Jo 4, 16) – dirá noutro
lugar o mesmo Apóstolo, indicando assim «a imagem cristã de Deus e
também a consequente imagem do homem e do seu caminho».[16]
Deus dá-Se-nos a conhecer como mistério de amor infinito, no qual,
desde toda a eternidade, o Pai exprime a sua Palavra no Espírito
Santo. Por isso o Verbo, que desde o princípio está junto de Deus e
é Deus, revela-nos o próprio Deus no diálogo de amor entre as
Pessoas divinas e convida-nos a participar nele. Portanto, feitos à
imagem e semelhança de Deus amor, só nos podemos compreender a nós
mesmos no acolhimento do Verbo e na docilidade à obra do Espírito
Santo. É à luz da revelação feita pelo Verbo divino que se esclarece
definitivamente o enigma da condição humana.
Analogia da
Palavra de Deus
7. A partir destas
considerações que brotam da meditação sobre o mistério cristão
expresso no Prólogo de João, é necessário agora pôr em evidência
aquilo que foi afirmado pelos Padres sinodais a propósito das
diversas modalidades com que usamos a expressão «Palavra de Deus».
Falou-se, justamente, de uma sinfonia da Palavra, de uma Palavra
única que se exprime de diversos modos: «um cântico a diversas vozes».[17]
A este propósito, os Padres sinodais falaram de um uso analógico da
linguagem humana na referência à Palavra de Deus. Com efeito, se
esta expressão, por um lado, diz respeito à comunicação que Deus faz
de Si mesmo, por outro assume significados diversos que devem ser
atentamente considerados e relacionados entre si, tanto do ponto de
vista da reflexão teológica como do uso pastoral. Como nos mostra
claramente o Prólogo de João, o Logos indica originariamente
o Verbo eterno, ou seja, o Filho unigénito, gerado pelo Pai antes de
todos os séculos e consubstancial a Ele: o Verbo estava junto de
Deus, o Verbo era Deus. Mas este mesmo Verbo – afirma São João –
«fez-Se carne» (Jo 1, 14); por isso Jesus Cristo, nascido da
Virgem Maria, é realmente o Verbo de Deus que Se fez consubstancial
a nós. Assim a expressão «Palavra de Deus» acaba por indicar aqui a
pessoa de Jesus Cristo, Filho eterno do Pai feito homem.
Além disso, se no
centro da revelação divina está o acontecimento de Cristo, é preciso
reconhecer que a própria criação, o liber naturae, constitui
também essencialmente parte desta sinfonia a diversas vozes na qual
Se exprime o único Verbo. Do mesmo modo confessamos que Deus
comunicou a sua Palavra na história da salvação, fez ouvir a sua voz;
com a força do seu Espírito, «falou pelos profetas».[18]
Por conseguinte, a Palavra divina exprime-se ao longo de toda a
história da salvação e tem a sua plenitude no mistério da encarnação,
morte e ressurreição do Filho de Deus. E Palavra de Deus é ainda
aquela pregada pelos Apóstolos, em obediência ao mandato de Jesus
Ressuscitado: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova a toda a
criatura» (Mc 16, 15). Assim a Palavra de Deus é transmitida
na Tradição viva da Igreja. Enfim, é Palavra de Deus, atestada e
divinamente inspirada, a Sagrada Escritura, Antigo e Novo Testamento.
Tudo isto nos faz compreender por que motivo, na Igreja, veneramos
extremamente as Sagradas Escrituras, apesar da fé cristã não ser uma
«religião do Livro»: o cristianismo é a «religião da Palavra de
Deus», não de «uma palavra escrita e muda, mas do Verbo encarnado e
vivo».[19] Por
conseguinte a Sagrada Escritura deve ser proclamada, escutada, lida,
acolhida e vivida como Palavra de Deus, no sulco da Tradição
Apostólica de que é inseparável.[20]
Como afirmaram os
Padres sinodais, encontramo-nos realmente perante um uso analógico
da expressão «Palavra de Deus», e disto mesmo devemos estar
conscientes. Por isso, é necessário que os fiéis sejam melhor
formados para identificar os seus diversos significados e
compreender o seu sentido unitário. E do ponto de vista teológico é
preciso também aprofundar a articulação dos vários significados
desta expressão, para que resplandeça melhor a unidade do plano
divino e, neste, a centralidade da pessoa de Cristo.[21]
Dimensão
cósmica da Palavra
8. Conscientes do
significado fundamental da Palavra de Deus referida ao Verbo eterno
de Deus feito carne, único salvador e mediador entre Deus e o homem,[22]
e escutando esta Palavra, somos levados pela revelação bíblica a
reconhecer que ela é o fundamento de toda a realidade. O Prólogo de
São João afirma, referindo-se ao Logos divino, que «tudo
começou a existir por meio d’Ele, e, sem Ele, nada foi criado» (Jo
1, 3); de igual modo na Carta aos Colossenses afirma-se,
aludindo a Cristo «primogénito de toda a criação» (1, 15), que «tudo
foi criado por Ele e para Ele» (1, 16). E o autor da Carta aos
Hebreus recorda que «pela fé conhecemos que o mundo foi formado
pela palavra de Deus, de tal modo que o que se vê não provém das
coisas sensíveis» (11, 3).
Este anúncio é, para
nós, uma palavra libertadora. De facto, as afirmações da Sagrada
Escritura indicam que tudo o que existe não é fruto de um acaso
irracional, mas é querido por Deus, está dentro do seu desígnio, em
cujo centro se encontra a oferta de participar na vida divina em
Cristo. A criação nasce do Logos e traz indelével o sinal da
Razão criadora que regula e guia. Esta feliz certeza é
cantada nos Salmos: «Pela palavra do Senhor foram feitos os
céus, pelo sopro da sua boca todos os seus exércitos» (Sl 33,
6); e ainda: «Ele falou e as coisas existiram. Ele mandou e as
coisas subsistiram» (Sl 33, 9). A realidade inteira exprime
este mistério: «Os céus proclamam a glória de Deus, o firmamento
anuncia as obras das suas mãos» (Sl 19, 2). É a própria
Sagrada Escritura que nos convida a conhecer o Criador, observando a
criação (cf. Sb 13, 5; Rm 1, 19-20). A tradição do
pensamento cristão soube aprofundar este elemento-chave da sinfonia
da Palavra, quando por exemplo São Boaventura – que, juntamente com
a grande tradição dos Padres Gregos, vê todas as possibilidades da
criação no Logos[23] –
afirma que «cada criatura é palavra de Deus, porque proclama Deus».[24]
A Constituição dogmática
Dei Verbum sintetizara este facto dizendo que «Deus, criando
e conservando todas as coisas pelo Verbo (cf. Jo 1, 3),
oferece aos homens um testemunho perene de Si mesmo na criação».[25]
A criação
do homem
9. Deste modo, a
realidade nasce da Palavra, como creatura Verbi, e tudo é
chamado a servir a Palavra. A criação é lugar onde se desenvolve
toda a história do amor entre Deus e a sua criatura; por conseguinte,
o movente de tudo é a salvação do homem. Contemplando o universo na
perspectiva da história da salvação, somos levados a descobrir a
posição única e singular que ocupa o homem na criação: «Deus criou o
homem à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e
mulher» (Gn 1, 27). Isto permite-nos reconhecer plenamente os
dons preciosos recebidos do Criador: o valor do próprio corpo, o dom
da razão, da liberdade e da consciência. Nisto encontramos também
tudo aquilo que a tradição filosófica chama «lei natural».[26]
Com efeito, «todo o ser humano que atinge a consciência e a
responsabilidade experimenta um chamamento interior para realizar o
bem»[27] e,
consequentemente, evitar o mal. Sobre este princípio, como recorda
São Tomás de Aquino, fundam-se também todos os outros preceitos da
lei natural.[28] A
escuta da Palavra de Deus leva-nos em primeiro lugar a prezar a
exigência de viver segundo esta lei «escrita no coração» (cf. Rm
2, 15; 7, 23).[29]
Depois, Jesus Cristo dá aos homens a Lei nova, a Lei do Evangelho,
que assume e realiza de modo sublime a lei natural, libertando-nos
da lei do pecado, por causa do qual, come diz São Paulo, «querer o
bem está ao meu alcance, mas realizá-lo não» (Rm 7, 18), e dá
aos homens, por meio da graça, a participação na vida divina e a
capacidade de superar o egoísmo.[30]
O realismo
da Palavra
10. Quem conhece a
Palavra divina conhece plenamente também o significado de cada
criatura. De facto, se todas as coisas «têm a sua subsistência»
n’Aquele que existe «antes de todas as coisas» (Cl 1, 17),
então quem constrói a própria vida sobre a sua Palavra edifica de
modo verdadeiramente sólido e duradouro. A Palavra de Deus
impele-nos a mudar o nosso conceito de realismo: realista é quem
reconhece o fundamento de tudo no Verbo de Deus.[31]
Isto revela-se particularmente necessário no nosso tempo, em que
manifestam o seu carácter efémero muitas coisas com as quais se
contava para construir a vida e sobre as quais se era tentado a
colocar a própria esperança. Mais cedo ou mais tarde, o ter, o
prazer e o poder manifestam-se incapazes de realizar as aspirações
mais profundas do coração do homem. De facto, para edificar a
própria vida, ele tem necessidade de alicerces sólidos, que
permaneçam mesmo quando falham as certezas humanas. Na realidade, já
que «para sempre, Senhor, como os céus, subsiste a vossa palavra» e
a fidelidade do Senhor «atravessa as gerações» (Sl 119,
89-90), quem constrói sobre esta palavra, edifica a casa da própria
vida sobre a rocha (cf. Mt 7, 24). Que o nosso coração possa
dizer a Deus cada dia: «Sois o meu abrigo, o meu escudo, na vossa
palavra pus a minha esperança» (Sl 119, 114), e possamos agir
cada dia confiando no Senhor Jesus como São Pedro: «Porque Tu o
dizes, lançarei as redes» (L c 5, 5).
Cristologia
da Palavra
11. A partir deste
olhar sobre a realidade como obra da Santíssima Trindade, através do
Verbo divino, podemos compreender as palavras do autor da Carta
aos Hebreus: «Tendo Deus falado outrora aos nossos pais, muitas
vezes e de muitas maneiras, pelos Profetas, agora falou-nos nestes
últimos tempos pelo Filho, a Quem constituiu herdeiro de tudo e por
Quem igualmente criou o mundo» (Hb 1, 1-2). É estupendo
observar como todo o Antigo Testamento se nos apresenta já como
história na qual Deus comunica a sua Palavra: de facto, «tendo
estabelecido aliança com Abraão (cf. Gn 15, 18), e com o povo
de Israel por meio de Moisés (cf. Ex 24, 8), revelou-Se ao
Povo escolhido como único Deus verdadeiro e vivo, em palavras e
obras, de tal modo que Israel pudesse conhecer por experiência os
planos de Deus sobre os homens, os compreendesse cada vez mais
profunda e claramente, ouvindo o mesmo Deus falar por boca dos
profetas, e os difundisse mais amplamente entre os homens (cf. Sl
21, 28-29; 95, 1-3; Is 2, 1-4; Jr 3, 17)».[32]
Esta condescendência de
Deus realiza-se, de modo insuperável, na encarnação do Verbo. A
Palavra eterna que se exprime na criação e comunica na história da
salvação, tornou-se em Cristo um homem, «nascido de mulher» (Gl
4, 4). Aqui a Palavra não se exprime primariamente num discurso, em
conceitos ou regras; mas vemo-nos colocados diante da própria pessoa
de Jesus. A sua história, única e singular, é a palavra definitiva
que Deus diz à humanidade. Daqui se compreende por que motivo, «no
início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia,
mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um
novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».[33]
A renovação deste encontro e desta consciência gera no coração dos
fiéis a maravilha pela iniciativa divina, que o homem, com as suas
próprias capacidades racionais e imaginação, jamais teria podido
conceber. Trata-se de uma novidade inaudita e humanamente
inconcebível: «O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós» (Jo
1, 14a). Estas expressões não indicam uma figura retórica mas uma
experiência vivida. Quem a refere é São João, testemunha ocular:
«Nós vimos a sua glória, glória que Lhe vem do Pai, como Filho único
cheio de graça e de verdade» (Jo 1, 14b). A fé apostólica
testemunha que a Palavra eterna Se fez Um de nós. A Palavra
divina exprime-se verdadeiramente em palavras humanas.
12. A tradição
patrística e medieval, contemplando esta «Cristologia da Palavra»,
utilizou uma sugestiva expressão: O Verbo abreviou-Se.[34]
«Na sua tradução grega do Antigo Testamento, os Padres da Igreja
encontravam uma frase do profeta Isaías – que o próprio São Paulo
cita – para mostrar como os caminhos novos de Deus estivessem já
preanunciados no Antigo Testamento. Eis a frase: “O Senhor
compendiou a sua Palavra, abreviou--a” (Is 10, 23; Rm
9, 28). (…) O próprio Filho é a Palavra, é o Logos: a Palavra
eterna fez-Se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez--Se
criança, para que a Palavra possa ser compreendida por nós».[35]
Desde então a Palavra já não é apenas audível, não possui somente
uma voz; agora a Palavra tem um rosto, que por isso
mesmo podemos ver: Jesus de Nazaré.[36]
Repassando a narração
dos Evangelhos, notamos como a própria humanidade de Jesus se
manifesta em toda a sua singularidade precisamente quando referida à
Palavra de Deus. De facto, na sua humanidade perfeita, Ele realiza a
vontade do Pai a todo o momento; Jesus ouve a sua voz e obedece-Lhe
com todo o seu ser; conhece o Pai e observa a sua palavra (cf. Jo
8, 55); comunica-nos as coisas do Pai (cf. Jo 12, 50); «dei-lhes
as palavras que Tu Me deste» (Jo 17, 8). Assim Jesus mostra
que é o Logos divino que Se dá a nós, mas é também o novo
Adão, o homem verdadeiro, aquele que cumpre em cada momento não a
própria vontade mas a do Pai. Ele «crescia em sabedoria, em estatura
e em graça, diante de Deus e dos homens» (L c 2, 52). De
maneira perfeita, escuta, realiza em Si mesmo e comunica-nos a
Palavra divina (cf. L c 5, 1).
Por fim, a missão de
Jesus cumpre-se no Mistério Pascal: aqui vemo-nos colocados diante
da «Palavra da cruz» (cf. 1 Cor 1, 18). O Verbo emudece,
torna-se silêncio de morte, porque Se «disse» até calar, nada
retendo do que nos devia comunicar. Sugestivamente os Padres da
Igreja, ao contemplarem este mistério, colocam nos lábios da Mãe de
Deus esta expressão: «Está sem palavra a Palavra do Pai, que fez
toda a criatura que fala; sem vida estão os olhos apagados d’Aquele
a cuja palavra e aceno se move tudo o que tem vida».[37]
Aqui verdadeiramente comunica-se-nos o amor «maior», aquele que dá a
vida pelos próprios amigos (cf. Jo 15, 13).
Neste grande mistério,
Jesus manifesta-Se como a Palavra da Nova e Eterna Aliança: a
liberdade de Deus e a liberdade do homem encontraram--se
definitivamente na sua carne crucificada, num pacto indissolúvel,
válido para sempre. O próprio Jesus, na Última Ceia, ao instituir a
Eucaristia falara de «Nova e Eterna Aliança», estabelecida no seu
sangue derramado (cf. Mt 26, 28; Mc 14, 24; L c
22, 20), mostrando-Se como o verdadeiro Cordeiro imolado, no qual se
realiza a definitiva libertação da escravidão.[38]
No mistério refulgente
da ressurreição, este silêncio da Palavra manifesta-se com o seu
significado autêntico e definitivo. Cristo, Palavra de Deus
encarnada, crucificada e ressuscitada, é Senhor de todas as coisas;
é o Vencedor, o Pantocrator, e assim todas as coisas ficam
recapituladas n’Ele para sempre (cf. Ef 1, 10). Por isso,
Cristo é «a luz do mundo» (Jo 8, 12), aquela luz que
«resplandece nas trevas» (Jo 1, 5) mas as trevas não a
acolheram (cf. Jo 1, 5). Aqui se compreende plenamente o
significado do Salmo 119 quando a designa «farol para os meus
passos, e luz para os meus caminhos» (v. 105); esta luz decisiva na
nossa estrada é precisamente a Palavra que ressuscita. Desde o
início, os cristãos tiveram consciência de que, em Cristo, a Palavra
de Deus está presente como Pessoa. A Palavra de Deus é a luz
verdadeira, de que o homem tem necessidade. Sim, na ressurreição, o
Filho de Deus surgiu como Luz do mundo. Agora, vivendo com Ele e
para Ele, podemos viver na luz.
13. Chegados por assim
dizer ao coração da «Cristologia da Palavra», é importante sublinhar
a unidade do desígnio divino no Verbo encarnado: é por isso que o
Novo Testamento nos apresenta o Mistério Pascal de acordo com as
Sagradas Escrituras, como a sua íntima realização. São Paulo, na
Primeira Carta aos Coríntios, afirma que Jesus Cristo morreu
pelos nossos pecados, «segundo as Escrituras» (15, 3) e que
ressuscitou no terceiro dia «segundo as Escrituras» (15, 4). Deste
modo o Apóstolo põe o acontecimento da morte e ressurreição do
Senhor em relação com a história da Antiga Aliança de Deus com o seu
povo. Mais ainda, faz-nos compreender que esta história recebe de
tal acontecimento a sua lógica e o seu verdadeiro significado. No
Mistério Pascal, realizam-se «as palavras da Escritura, isto é, esta
morte realizada “segundo as Escrituras” é um acontecimento
que contém em si mesmo um logos, uma lógica: a morte de
Cristo testemunha que a Palavra de Deus Se fez totalmente “carne”,
“história” humana».[39]
Também a ressurreição de Jesus acontece «ao terceiro dia, segundo as
Escrituras»: dado que a corrupção, segundo a interpretação judaica,
começava depois do terceiro dia, a palavra da Escritura cumpre-se em
Jesus, que ressuscita antes de começar a corrupção. Deste modo São
Paulo, transmitindo fielmente o ensinamento dos Apóstolos (cf. 1
Cor 15, 3), sublinha que a vitória de Cristo sobre a morte se
verifica através da força criadora da Palavra de Deus. Esta força
divina proporciona esperança e alegria: tal é, em definitivo, o
conteúdo libertador da revelação pascal. Na Páscoa, Deus revela-Se a
Si mesmo juntamente com a força do Amor trinitário que aniquila as
forças destruidoras do mal e da morte.
Assim, recordando estes
elementos essenciais da nossa fé, podemos contemplar a unidade
profunda entre criação e nova criação e de toda a história da
salvação em Cristo. Recorrendo a uma imagem, podemos comparar o
universo com uma partitura, um «livro» – diria Galileu Galilei –
considerando-o como «a obra de um Autor que Se exprime através da
“sinfonia” da criação. Dentro desta sinfonia, a determinado ponto
aparece aquilo que, em linguagem musical, se chama um “solo”, um
tema confiado a um só instrumento ou a uma só voz; e é tão
importante que dele depende o significado da obra inteira. Este
“solo” é Jesus (…). O Filho do Homem compendia em Si mesmo a terra e
o céu, a criação e o Criador, a carne e o Espírito. É o centro do
universo e da história, porque n’Ele se unem sem se confundir o
Autor e a sua obra».[40]
Dimensão
escatológica da Palavra de Deus
14. Por meio de tudo
isto, a Igreja exprime a consciência de se encontrar, em Jesus
Cristo, com a Palavra definitiva de Deus; Ele é «o Primeiro e o
Último» (Ap 1, 17). Deu à criação e à história o seu sentido
definitivo; por isso somos chamados a viver o tempo, a habitar na
criação de Deus dentro deste ritmo escatológico da Palavra. «Portanto,
a economia cristã, como nova e definitiva aliança, jamais passará, e
não se há-de esperar nenhuma outra revelação pública antes da
gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo (cf. 1 Tm
6, 14; Tt 2, 13)».[41]
De facto, como recordaram os Padres durante o Sínodo, a «especificidade
do cristianismo manifesta-se no acontecimento que é Jesus Cristo,
ápice da Revelação, cumprimento das promessas de Deus e mediador do
encontro entre o homem e Deus. Ele, “que nos deu a conhecer Deus” (Jo
1, 18), é a Palavra única e definitiva confiada à humanidade».[42]
São João da Cruz exprimiu esta verdade de modo admirável: «Ao
dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra – e não tem
outra – Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta
Palavra única e já nada mais tem para dizer (…). Porque o que antes
disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o
Todo que é o seu Filho. E por isso, quem agora quisesse consultar a
Deus ou pedir-Lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um
disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente
em Cristo e buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade».[43]
Consequentemente, o
Sínodo recomendou que «se ajudassem os fiéis a bem distinguir a
Palavra de Deus das revelações privadas»,[44]
cujo «papel não é (…) “completar” a Revelação definitiva de Cristo,
mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época
histórica».[45] O valor
das revelações privadas é essencialmente diverso do da única
revelação pública: esta exige a nossa fé; de facto nela, por meio de
palavras humanas e da mediação da comunidade viva da Igreja,
fala-nos o próprio Deus. O critério da verdade de uma revelação
privada é a sua orientação para o próprio Cristo. Quando aquela nos
afasta d’Ele, certamente não vem do Espírito Santo, que nos guia no
âmbito do Evangelho e não fora dele. A revelação privada é uma ajuda
para a fé, e manifesta-se como credível precisamente porque orienta
para a única revelação pública. Por isso, a aprovação eclesiástica
de uma revelação privada indica essencialmente que a respectiva
mensagem não contém nada que contradiga a fé e os bons costumes; é
lícito torná-la pública, e os fiéis são autorizados a prestar-lhe de
forma prudente a sua adesão. Uma revelação privada pode introduzir
novas acentuações, fazer surgir novas formas de piedade ou
aprofundar antigas. Pode revestir-se de um certo carácter profético
(cf. 1 Ts 5, 19-21) e ser uma válida ajuda para compreender e
viver melhor o Evangelho na hora actual; por isso não se deve
desprezá-la. É uma ajuda, que é oferecida, mas da qual não é
obrigatório fazer uso. Em todo o caso, deve tratar-se de um alimento
para a fé, a esperança e a caridade, que são o caminho permanente da
salvação para todos.[46]
A Palavra
de Deus e o Espírito Santo
15. Depois de nos
termos detido sobre a Palavra última e definitiva de Deus ao mundo,
é necessário recordar agora a missão do Espírito Santo relativamente
à Palavra divina. De facto, não é possível uma compreensão autêntica
da revelação cristã fora da acção do Paráclito. Isto deve-se ao
facto de a comunicação que Deus faz de Si mesmo implicar sempre a
relação entre o Filho e o Espírito Santo, a Quem Ireneu de Lião
realmente chama «as duas mãos do Pai».[47]
Aliás, é a Sagrada Escritura que nos indica a presença do Espírito
Santo na história da salvação e, particularmente, na vida de Jesus,
o Qual é concebido no seio da Virgem Maria por obra do Espírito
Santo (cf. Mt 1, 18; L c 1, 35); ao iniciar a sua
missão pública nas margens do Jordão, vê-O descer sobre Si em forma
de pomba (cf. Mt 3, 16); neste mesmo Espírito, Jesus age,
fala e exulta (cf. L c 10, 21); é no Espírito que Se oferece
a Si mesmo (cf. Hb 9, 14). Quando está para terminar a sua
missão – segundo narra o evangelista São João –, o próprio Jesus
relaciona claramente o dom da sua vida com o envio do Espírito aos
Seus (cf. Jo 16, 7). Depois Jesus ressuscitado, trazendo na
sua carne os sinais da paixão, derrama o Espírito (cf. Jo 20,
22), tornando os discípulos participantes da sua própria missão (cf.
Jo 20, 21). O Espírito Santo ensinará aos discípulos todas as
coisas, recordando-lhes tudo o que Cristo disse (cf. Jo 14,
26), porque será Ele, o Espírito de Verdade (cf. Jo 15, 26),
a guiar os discípulos para a Verdade inteira (cf. Jo 16, 13).
Por fim, como se lê nos Actos dos Apóstolos, o Espírito desce
sobre os Doze reunidos em oração com Maria no dia de Pentecostes
(cf. 2, 1-4) e anima-os na missão de anunciar a Boa Nova a todos os
povos.[48]
Por conseguinte, a
Palavra de Deus exprime-se em palavras humanas graças à obra do
Espírito Santo. A missão do Filho e a do Espírito Santo são
inseparáveis e constituem uma única economia da salvação. O mesmo
Espírito, que actua na encarnação do Verbo no seio da Virgem Maria,
guia Jesus ao longo de toda a sua missão e é prometido aos
discípulos. O mesmo Espírito que falou por meio dos profetas,
sustenta e inspira a Igreja no dever de anunciar a Palavra de Deus e
na pregação dos Apóstolos; e, enfim, é este Espírito que inspira os
autores das Sagradas Escrituras.
16. Conscientes deste
horizonte pneumatológico, os Padres sinodais quiseram lembrar a
importância da acção do Espírito Santo na vida da Igreja e no
coração dos fiéis relativamente à Sagrada Escritura:[49]
sem a acção eficaz do «Espírito da Verdade» (Jo 14, 16), não
se podem compreender as palavras do Senhor. Como recorda ainda Santo
Ireneu: «Aqueles que não participam do Espírito não recebem do peito
da sua mãe [a Igreja] o alimento da vida; nada recebem da fonte mais
pura que brota do corpo de Cristo».[50]
Tal como a Palavra de Deus vem até nós no corpo de Cristo, no corpo
eucarístico e no corpo das Escrituras por meio do Espírito Santo,
assim também só pode ser acolhida e compreendida verdadeiramente
graças ao mesmo Espírito.
Os grandes escritores
da tradição cristã são unânimes ao considerar o papel do Espírito
Santo na relação que os fiéis devem ter com as Escrituras. São João
Crisóstomo afirma que a Escritura «tem necessidade da revelação do
Espírito, a fim de que, descobrindo o verdadeiro sentido das coisas
que nela se encerram, disso mesmo tiremos abundante proveito».[51]
Também São Jerónimo está firmemente convencido de que «não podemos
chegar a compreender a Escritura sem a ajuda do Espírito Santo que a
inspirou».[52] Depois,
São Gregório Magno sublinha, de modo sugestivo, a obra do mesmo
Espírito na formação e na interpretação da Bíblia: «Ele mesmo criou
as palavras dos Testamentos Sagrados, Ele mesmo as desvendou».[53]
Ricardo de São Víctor recorda que são necessários «olhos de pomba»,
iluminados e instruídos pelo Espírito, para compreender o texto
sagrado.[54]
Desejaria ainda
sublinhar como é significativo o testemunho a respeito da relação
entre o Espírito Santo e a Escritura que encontramos nos textos
litúrgicos, onde a Palavra de Deus é proclamada, escutada e
explicada aos fiéis. É o caso de antigas orações que, em forma de
epiclese, invocam o Espírito antes da proclamação das leituras:
«Mandai o vosso Espírito Santo Paráclito às nossas almas e fazei-nos
compreender as Escrituras por Ele inspiradas; e concedei-me
interpretá-las de maneira digna, para que os fiéis aqui reunidos
delas tirem proveito». De igual modo, encontramos orações que, no
fim da homilia, novamente invocam de Deus o dom do Espírito sobre os
fiéis: «Deus salvador (…), nós Vos pedimos por este povo: Mandai
sobre ele o Espírito Santo; o Senhor Jesus venha visitá-lo, fale à
mente de todos e abra os corações à fé e conduza para Vós as nossas
almas, Deus das Misericórdias».[55]
Por tudo isto bem podemos compreender que não é possível alcançar o
sentido da Palavra, se não se acolhe a acção do Paráclito na Igreja
e nos corações dos fiéis.
Tradição e
Escritura
17. Reafirmando o
vínculo profundo entre o Espírito Santo e a Palavra de Deus,
lançamos também as bases para compreender o sentido e o valor
decisivo da Tradição viva e das Sagradas Escrituras na Igreja. De
facto, uma vez que Deus «amou de tal modo o mundo que lhe deu o seu
Filho único» (Jo 3, 16), a Palavra divina, pronunciada no
tempo, deu-Se e «entregou-Se» à Igreja definitivamente para que o
anúncio da salvação possa ser eficazmente comunicado em todos os
tempos e lugares. Como nos recorda a Constituição dogmática
Dei Verbum, o próprio Jesus Cristo «mandou aos Apóstolos que
pregassem a todos, como fonte de toda a verdade salutar e de toda a
disciplina de costumes, o Evangelho prometido antes pelos profetas e
por Ele cumprido e promulgado pessoalmente, comunicando-lhes assim
os dons divinos. Isto foi realizado com fidelidade tanto pelos
Apóstolos que, na sua pregação oral, exemplos e instituições,
transmitiram aquilo que tinham recebido dos lábios, trato e obras de
Cristo, e o que tinham aprendido por inspiração do Espírito Santo,
como por aqueles Apóstolos e varões apostólicos que, sob a
inspiração do Espírito Santo, escreveram a mensagem da salvação».[56]
Além disso o
Concílio Vaticano II recorda que esta Tradição de origem
apostólica é realidade viva e dinâmica: ela «progride na Igreja sob
a assistência do Espírito Santo»; não no sentido de mudar na sua
verdade, que é perene, mas «progride a percepção tanto das coisas
como das palavras transmitidas», com a contemplação e o estudo, com
a inteligência dada por uma experiência espiritual mais profunda, e
por meio da «pregação daqueles que, com a sucessão do episcopado,
receberam o carisma da verdade».[57]
A Tradição viva é
essencial para que a Igreja, no tempo, possa crescer na compreensão
da verdade revelada nas Escrituras; de facto, «mediante a mesma
Tradição, conhece a Igreja o cânon inteiro dos livros sagrados, e a
própria Sagrada Escritura entende-se nela mais profundamente e
torna-se incessantemente operante».[58]
Em última análise, é a Tradição viva da Igreja que nos faz
compreender adequadamente a Sagrada Escritura como Palavra de Deus.
Embora o Verbo de Deus preceda e exceda a Sagrada Escritura,
todavia, enquanto inspirada por Deus, esta contém a Palavra divina
(cf. 2 Tm 3, 16) «de modo totalmente singular».[59]
18. Disto conclui-se
como é importante que o Povo de Deus seja educado e formado
claramente para se abeirar das Sagradas Escrituras na sua relação
com a Tradição viva da Igreja, reconhecendo nelas a própria Palavra
de Deus. É muito importante, do ponto de vista da vida espiritual,
fazer crescer esta atitude nos fiéis. A este respeito pode ajudar a
recordação de uma analogia desenvolvida pelos Padres da Igreja entre
o Verbo de Deus que Se faz «carne» e a Palavra que se faz «livro».[60]
A Constituição dogmática
Dei Verbum, ao recolher esta tradição antiga segundo a qual
«o corpo do Filho é a Escritura que nos foi transmitida» – como
afirma Santo Ambrósio[61]
–, declara: «As palavras de Deus, com efeito, expressas por línguas
humanas, tornaram-se intimamente semelhantes à linguagem humana,
como outrora o Verbo do eterno Pai Se assemelhou aos homens tomando
a carne da fraqueza humana».[62]
Vista assim, a Sagrada Escritura, apesar da multiplicidade das suas
formas e conteúdos, aparece-nos como uma realidade unitária. De
facto, «através de todas as palavras da Sagrada Escritura, Deus não
diz mais que uma só palavra, o seu Verbo único, em quem totalmente
Se diz (cf. Hb 1, 1-3)»,[63]
como claramente afirmava já Santo Agostinho: «Lembrai-vos de que o
discurso de Deus que se desenvolve em todas as Escrituras é um só, e
um só é o Verbo que Se faz ouvir na boca de todos os escritores
sagrados».[64]
Em última análise,
através da obra do Espírito Santo e sob a guia do Magistério, a
Igreja transmite a todas as gerações aquilo que foi revelado em
Cristo. A Igreja vive na certeza de que o seu Senhor, tendo falado
outrora, não cessa de comunicar hoje a sua Palavra na Tradição viva
da Igreja e na Sagrada Escritura. De facto, a Palavra de Deus dá-se
a nós na Sagrada Escritura, enquanto testemunho inspirado da
revelação, que, juntamente com a Tradição viva da Igreja, constitui
a regra suprema da fé.[65]
Sagrada
Escritura, inspiração e verdade
19. Um conceito-chave
para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em palavras
humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode
sugerir uma analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por
obra do Espírito Santo no seio da Virgem Maria, assim também a
Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do mesmo Espírito.
A Sagrada Escritura é «Palavra de Deus enquanto foi escrita por
inspiração do Espírito de Deus».[66]
Deste modo se reconhece toda a importância do autor humano que
escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus
como verdadeiro autor.
Daqui se vê com toda a
clareza – lembraram os Padres sinodais – como o tema da inspiração é
decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua
correcta hermenêutica,[67]
que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi
escrita.[68] Quando
esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler
a Escritura como objecto de curiosidade histórica e não como obra do
Espírito Santo, na qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e
conhecer a sua presença na história.
Além disso, os Padres
sinodais puseram em evidência como ligado com o tema da inspiração
esteja também o tema da verdade das Escrituras.[69]
Por isso, um aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem
dúvida, também a uma maior compreensão da verdade contida nos livros
sagrados. Como indica a doutrina conciliar sobre o tema, os livros
inspirados ensinam a verdade: «E assim, como tudo quanto afirmam os
autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo
Espírito Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que
Deus, para nossa salvação, quis que fosse consi-gnada nas sagradas
Letras. Por isso, “toda a Escri-tura é divinamente inspirada e útil
para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o
homem de Deus seja perfeito, experimentado em todas as boas obras (2
Tm 3, 16-17 gr.)”».[70]
Não há dúvida que a
reflexão teológica sempre considerou inspiração e verdade como dois
conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas
Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade actual de
um condigno aprofundamento destas realidades, para se responder
melhor às exigências relativas à interpretação dos textos sagrados
segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo vivamente que a
investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência
bíblica e para a vida espiritual dos fiéis.
Deus Pai,
fonte e origem da Palavra
20. A economia da
revelação tem o seu início e a sua origem em Deus Pai. Pela sua
palavra «foram feitos os céus, pelo sopro da sua boca todos os seus
exércitos» (Sl 33, 6). É Ele que faz resplandecer «o
conhecimento da glória de Deus, que se reflecte na face de Cristo» (2
Cor 4, 6; cf. Mt 16, 17; L c 9, 29).
No Filho, «Logos
feito carne» (cf. Jo 1, 14), que veio para cumprir a vontade
d’Aquele que O enviou (cf. Jo 4, 34), Deus, fonte da
revelação, manifesta-Se como Pai e leva à perfeição a educação
divina do homem, já anteriormente animada pela palavra dos profetas
e pelas maravilhas realizadas na criação e na história do seu povo e
de todos os homens. O apogeu da revelação de Deus Pai é oferecido
pelo Filho com o dom do Paráclito (cf. Jo 14, 16), Espírito
do Pai e do Filho, que nos «guiará para a verdade total» (Jo
16, 13).
Deste modo, todas as
promessas de Deus se tornam «sim» em Jesus Cristo (cf. 2 Cor
1, 20). Abre-se assim, para o homem, a possibilidade de percorrer o
caminho que o conduz ao Pai (cf. Jo 14, 6), para que no fim
«Deus seja tudo em todos» (1 Cor 15, 28).
21. Como mostra a cruz
de Cristo, Deus fala também por meio do seu silêncio. O silêncio de
Deus, a experiência da distância do Omnipotente e Pai é etapa
decisiva no caminho terreno do Filho de Deus, Palavra encarnada.
Suspenso no madeiro da cruz, o sofrimento que Lhe causou tal
silêncio fê-Lo lamentar: «Meu Deus, meu Deus, porque Me
abandonaste?» (Mc 15, 34; Mt 27, 46). Avançando na
obediência até ao último respiro, na obscuridade da morte, Jesus
invocou o Pai. A Ele Se entregou no momento da passagem, através da
morte, para a vida eterna: «Pai, nas tuas mãos, entrego o meu
espírito» (L c 23, 46).
Esta experiência de
Jesus é sintomática da situação do homem que, depois de ter escutado
e reconhecido a Palavra de Deus, deve confrontar-se também com o seu
silêncio. É uma experiência vivida por muitos Santos e místicos, e
que ainda hoje faz parte do caminho de muitos fiéis. O silêncio de
Deus prolonga as suas palavras anteriores. Nestes momentos obscuros,
Ele fala no mistério do seu silêncio. Portanto, na dinâmica da
revelação cristã, o silêncio aparece como uma expressão importante
da Palavra de Deus.
A resposta do homem a
Deus que fala
Chamados a
entrar na Aliança com Deus
22. Ao sublinhar a
pluralidade de formas da Palavra, pudemos ver através de quantas
modalidades Deus fala e vem ao encontro do homem, dando-Se a
conhecer no diálogo. É certo que o diálogo, como afirmaram os Padres
sinodais, «quando se refere à Revelação comporta o primado da
Palavra de Deus dirigida ao homem».[71]
O mistério da Aliança exprime esta relação entre Deus que chama
através da sua Palavra e o homem que responde, sabendo claramente
que não se trata de um encontro entre dois contraentes iguais;
aquilo que designamos por Antiga e Nova Aliança não é um acto de
entendimento entre duas partes iguais, mas puro dom de Deus. Por
meio deste dom do seu amor, Ele, superando toda a distância,
torna--nos verdadeiramente seus «parceiros», de modo a realizar o
mistério nupcial do amor entre Cristo e a Igreja. Nesta perspectiva,
todo o homem aparece como o destinatário da Palavra, interpelado e
chamado a entrar, por uma resposta livre, em tal diálogo de amor.
Assim Deus torna cada um de nós capaz de escutar e responder
à Palavra divina. O homem é criado na Palavra e vive nela; e não se
pode compreender a si mesmo, se não se abre a este diálogo. A
Palavra de Deus revela a natureza filial e relacional da nossa vida.
Por graça, somos verdadeiramente chamados a configurar-nos com
Cristo, o Filho do Pai, e a ser transformados n’Ele.
Deus escuta
o homem e responde às suas perguntas
23. Neste diálogo com
Deus, compreendemo-nos a nós mesmos e encontramos resposta para as
perguntas mais profundas que habitam no nosso coração. De facto, a
Palavra de Deus não se contrapõe ao homem, nem mortifica os seus
anseios verdadeiros; pelo contrário, ilumina-os, purifica-os e
realiza-os. Como é importante, para o nosso tempo, descobrir que só
Deus responde à sede que está no coração de cada homem!
Infelizmente na nossa época, sobretudo no Ocidente, difundiu-se a
ideia de que Deus é alheio à vida e aos problemas do homem; pior
ainda, de que a sua presença pode até ser uma ameaça à autonomia
humana. Na realidade, toda a economia da salvação mostra-nos que
Deus fala e intervém na história a favor do homem e da sua salvação
integral. Por conseguinte é decisivo, do ponto de vista pastoral,
apresentar a Palavra de Deus na sua capacidade de dialogar com os
problemas que o homem deve enfrentar na vida diária. Jesus apresenta-Se-nos
precisamente como Aquele que veio para que pudéssemos ter a vida em
abundância (cf. Jo 10, 10). Por isso, devemos fazer todo o
esforço para mostrar a Palavra de Deus precisamente como abertura
aos próprios problemas, como resposta às próprias perguntas, uma
dilatação dos próprios valores e, conjuntamente, uma satisfação das
próprias aspirações. A pastoral da Igreja deve ilustrar claramente
como Deus ouve a necessidade do homem e o seu apelo. São Boaventura
afirma no Breviloquium: «O fruto da Sagrada Escritura não é
um fruto qualquer, mas a plenitude da felicidade eterna. De facto, a
Sagrada Escritura é precisamente o livro no qual estão escritas
palavras de vida eterna, porque não só acreditamos mas também
possuímos a vida eterna, em que veremos, amaremos e serão realizados
todos os nossos desejos».[72]
Dialogar
com Deus através das suas palavras
24. A Palavra divina
introduz cada um de nós no diálogo com o Senhor: o Deus que fala,
ensina-nos como podemos falar com Ele. Espontaneamente o pensamento
detém-se no Livro dos Salmos, onde Ele nos fornece as
palavras com que podemos dirigir-nos a Ele, levar a nossa vida para
o colóquio com Ele, transformando assim a própria vida num movimento
para Deus.[73] De
facto, nos Salmos, encontramos articulada toda a gama de sentimentos
que o homem pode ter na sua própria existência e que são
sapientemente colocados diante de Deus; alegria e sofrimento,
angústia e esperança, medo e perplexidade encontram lá a sua
expressão. E, juntamente com os Salmos, pensamos também em numerosos
textos da Sagrada Escritura que apresentam o homem a dirigir-se a
Deus sob a forma de oração de intercessão (cf. Ex 33, 12-16),
de canto de júbilo pela vitória (cf. Ex 15), ou de lamento no
desempenho da própria missão (cf. Jr 20, 7-18). Deste modo, a
palavra que o homem dirige a Deus torna-se também Palavra de Deus,
como confirmação do carácter dialógico de toda a revelação cristã,[74]
e a existência inteira do homem torna-se um diálogo com Deus que
fala e escuta, que chama e dinamiza a nossa vida. Aqui a Palavra de
Deus revela que toda a existência do homem está sob o chamamento
divino.[75]
A Palavra
de Deus e a fé
25. «A Deus que Se
revela é devida “a obediência da fé” (Rm 16, 26; cf. Rm
1, 5; 2 Cor 10, 5-6); pela fé, o homem entrega-se total e
livremente a Deus oferecendo a Deus revelador “o obséquio pleno da
inteligência e da vontade” e prestando voluntário assentimento à sua
revelação».[76] Com
estas palavras, a Constituição dogmática
Dei Verbum exprimiu de modo claro a atitude do homem diante
de Deus. A resposta própria do homem a Deus, que fala, é a fé.
Isto coloca em evidência que, «para acolher a Revelação, o homem
deve abrir a mente e o coração à acção do Espírito Santo que lhe faz
compreender a Palavra de Deus presente nas Sagradas Escrituras».[77]
De facto, é precisamente a pregação da Palavra divina que faz surgir
a fé, pela qual aderimos de coração à verdade que nos foi revelada e
entregamos todo o nosso ser a Cristo: «A fé vem da pregação, e a
pregação pela palavra de Cristo» (Rm 10, 17). Toda a história
da salvação nos mostra progressivamente esta ligação íntima entre a
Palavra de Deus e a fé que se realiza no encontro com Cristo. De
facto, com Ele a fé toma a forma de encontro com uma Pessoa à qual
se confia a própria vida. Cristo Jesus continua hoje presente, na
história, no seu corpo que é a Igreja; por isso, o acto da nossa fé
é um acto simultaneamente pessoal e eclesial.
O pecado
como não escuta da Palavra de Deus
26. A Palavra de Deus
revela inevitavelmente também a dramática possibilidade que tem a
liberdade do homem de subtrair-se a este diálogo de aliança com
Deus, para o qual fomos criados. De facto, a Palavra divina desvenda
também o pecado que habita no coração do homem. Muitas vezes
encontramos, tanto no Antigo como no Novo Testamento, a descrição do
pecado como não escuta da Palavra, como ruptura da Aliança
e, consequentemente, como fechar-se a Deus que chama à comunhão com
Ele.[78] Com efeito, a
Sagrada Escritura mostra-nos como o pecado do homem é essencialmente
desobediência e «não escuta». Precisamente a obediência radical de
Jesus até à morte de Cruz (cf. Fl 2, 8) desmascara totalmente
este pecado. Na sua obediência, realiza-se a Nova Aliança entre Deus
e o homem e é-nos concedida a possibilidade da reconciliação. De
facto, Jesus foi mandado pelo Pai como vítima de expiação pelos
nossos pecados e pelos do mundo inteiro (cf. 1 Jo 2, 2; 4,
10; Hb 7, 27). Assim, é-nos oferecida misericordiosamente a
possibilidade da redenção e o início de uma vida nova em Cristo. Por
isso, é importante que os fiéis sejam educados a reconhecer a raiz
do pecado na não escuta da Palavra do Senhor e a acolher em Jesus,
Verbo de Deus, o perdão que nos abre à salvação.
Maria
«Mater Verbi Dei» e «Mater fidei»
27. Os Padres sinodais
declararam que o objectivo fundamental da
XII Assembleia foi «renovar a fé da Igreja na Palavra de Deus»;
por isso é necessário olhar para uma pessoa em Quem a reciprocidade
entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou seja, para a Virgem
Maria, «que, com o seu sim à Palavra da Aliança e à sua missão,
realiza perfeitamente a vocação divina da humanidade».[79]
A realidade humana, criada por meio do Verbo, encontra a sua figura
perfeita precisamente na fé obediente de Maria. Desde a Anunciação
ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente disponível à vontade
de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é «cheia de graça» de
Deus (cf. L c 1, 28), incondicionalmente dócil à Palavra
divina (cf. L c 1, 38). A sua fé obediente face à iniciativa
de Deus plasma cada instante da sua vida. Virgem à escuta, vive em
plena sintonia com a Palavra divina; conserva no seu coração os
acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim dizer num único
mosaico (cf. L c 2, 19.51).[80]
No nosso tempo, é
preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a ligação
entre Maria de Nazaré e a escuta crente da Palavra divina. Exorto
também os estudiosos a aprofundarem ainda mais a relação entre
mariologia e teologia da Palavra. Daí poderá vir grande
benefício tanto para a vida espiritual como para os estudos
teológicos e bíblicos. De facto, quando a inteligência da fé olha um
tema à luz de Maria, coloca-se no centro mais íntimo da verdade
cristã. Na realidade, a encarnação do Verbo não pode ser pensada
prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu
assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no
tempo. Ela é a figura da Igreja à escuta da Palavra de Deus que nela
Se fez carne. Maria é também símbolo da abertura a Deus e aos
outros; escuta activa, que interioriza, assimila, na qual a Palavra
se torna forma de vida.
28. Nesta ocasião,
desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a Palavra
de Deus. Isto transparece com particular vigor no Magnificat.
Aqui, em certa medida, vê-se como Ela Se identifica com a Palavra, e
nela entra; neste maravilhoso cântico de fé, a Virgem exalta o
Senhor com a sua própria Palavra: «O Magnificat – um retrato,
por assim dizer, da sua alma – é inteiramente tecido de fios da
Sagrada Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta
maneira se manifesta que Ela Se sente verdadeiramente em casa na
Palavra de Deus, dela sai e a ela volta com naturalidade. Fala e
pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se Palavra d’Ela, e a sua
palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que
os seus pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o d’Ela é
um querer juntamente com Deus. Vivendo intimamente permeada pela
Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se mãe da Palavra encarnada».[81]
Além disso, a
referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no mundo
envolve sempre a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina
transforma-nos. Também a nossa acção apostólica e pastoral não
poderá jamais ser eficaz, se não aprendermos de Maria a deixar-nos
plasmar pela acção de Deus em nós: «A atenção devota e amorosa à
figura de Maria, como modelo e arquétipo da fé da Igreja, é de
importância capital para efectuar também nos nossos dias uma mudança
concreta de paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na
atitude de escuta orante como na generosidade do compromisso em prol
da missão e do anúncio».[82]
Contemplando na Mãe de
Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra, descobrimo-nos
também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela qual Cristo vem
habitar na nossa vida. Como nos recorda Santo Ambrósio, cada cristão
que crê, em certo sentido, concebe e gera em si mesmo o Verbo de
Deus: se há uma só Mãe de Cristo segundo a carne, segundo a fé,
porém, Cristo é o fruto de todos.[83]
Portanto, o que aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em cada
um de nós diariamente na escuta da Palavra e na celebração dos
Sacramentos.
A
hermenêutica da Sagrada Escritura na Igreja
A Igreja,
lugar originário da hermenêutica da Bíblia
29. Outro grande tema
surgido durante o Sínodo, sobre o qual quero debruçar-me agora, é
a interpretação da Sagrada Escritura na Igreja. E precisamente a
ligação intrínseca entre Palavra e fé põe em evidência que a
autêntica hermenêutica da Bíblia só pode ser feita na fé eclesial,
que tem o seu paradigma no sim de Maria. A este respeito, São
Boaventura afirma que, sem a fé, não há chave de acesso ao texto
sagrado: «Esta é o conhecimento de Jesus Cristo, do qual têm origem,
como de uma fonte, a segurança e a inteligência de toda a Sagrada
Escritura. Por isso é impossível que alguém possa entrar para a
conhecer, se antes não tiver a fé infusa de Cristo que é lanterna,
porta e também fundamento de toda a Escritura».[84]
E São Tomás de Aquino, mencionando Santo Agostinho, insiste
vigorosamente: «A letra do Evangelho também mata, se faltar a graça
interior da fé que cura».[85]
Isto permite-nos
assinalar um critério fundamental da hermenêutica bíblica: o
lugar originário da interpretação da Escritura é a vida da Igreja.
Esta afirmação não indica a referência eclesial como um critério
extrínseco ao qual se devem submeter os exegetas, mas é uma
exigência da própria realidade das Escrituras e do modo como se
formaram ao longo do tempo. De facto, «as tradições de fé formavam o
ambiente vital onde se inseriu a actividade literária dos autores da
Sagrada Escritura. Esta inserção englobava também a participação na
vida litúrgica e na actividade externa das comunidades, no seu mundo
espiritual, na sua cultura e nas vicissitudes do seu destino
histórico. Por isso, de modo semelhante, a interpretação da Sagrada
Escritura exige a participação dos exegetas em toda a vida e em toda
a fé da comunidade crente do seu tempo».[86]
Por conseguinte, «devendo a Sagrada Escritura ser lida e
interpretada com o mesmo Espírito com que foi escrita»,[87]
é preciso que os exegetas, os teólogos e todo o Povo de Deus se
abeirem dela por aquilo que realmente é: como Palavra de Deus que Se
nos comunica através de palavras humanas (cf. 1 Ts 2, 13).
Trata-se de um dado constante e implícito na própria Bíblia: «Nenhuma
profecia da Escritura é de interpretação particular, porque jamais
uma profecia foi proferida pela vontade dos homens. Inspirados pelo
Espírito Santo é que os homens santos falaram em nome de Deus» (2
Pd 1, 20-21). Aliás, é precisamente a fé da Igreja que reconhece
na Bíblia a Palavra de Deus; como admiravelmente diz Santo Agostinho,
«não acreditaria no Evangelho se não me movesse a isso a autoridade
da Igreja Católica».[88]
O Espírito Santo, que anima a vida da Igreja, é que torna capaz de
interpretar autenticamente as Escrituras. A Bíblia é o livro da
Igreja e, a partir da imanência dela na vida eclesial, brota também
a sua verdadeira hermenêutica.
30. São Jerónimo
recorda que, sozinhos, nunca poderemos ler a Escritura. Encontramos
demasiadas portas fechadas e caímos facilmente em erro. A Bíblia foi
escrita pelo Povo de Deus e para o Povo de Deus, sob a inspiração do
Espírito Santo. Somente com o «nós», isto é, nesta comunhão com o
Povo de Deus, podemos realmente entrar no núcleo da verdade que o
próprio Deus nos quer dizer.[89]
Aquele grande estudioso, para quem «a ignorância das Escrituras é
ignorância de Cristo»,[90]
afirma que o carácter eclesial da interpretação bíblica não é uma
exigência imposta do exterior; o Livro é precisamente a voz do Povo
de Deus peregrino, e só na fé deste Povo é que estamos, por assim
dizer, na tonalidade justa para compreender a Sagrada Escritura. Uma
autêntica interpretação da Bíblia deve estar sempre em harmónica
concordância com a fé da Igreja Católica. Jerónimo escrevia assim a
um sacerdote: «Permanece firmemente apegado à doutrina tradicional
que te foi ensinada, para que possas exortar segundo a sã doutrina e
rebater aqueles que a contradizem».[91]
Abordagens do texto
sagrado que prescindam da fé podem sugerir elementos interessantes
ao deterem-se sobre a estrutura do texto e as suas formas;
inevitavelmente, porém, tal tentativa seria apenas preliminar e
estruturalmente incompleta. De facto, como foi afirmado pela
Pontifícia Comissão Bíblica, repercutindo um princípio compartilhado
na hermenêutica moderna, «o justo conhecimento do texto bíblico só é
acessível a quem tem uma afinidade vital com aquilo de que fala o
texto».[92] Tudo isto
põe em relevo a relação entre a vida espiritual e a hermenêutica da
Escritura. De facto, «com o crescimento da vida no Espírito, cresce
também no leitor a compreensão das realidades de que fala o texto
bíblico».[93] Uma
intensa e verdadeira experiência eclesial não pode deixar de
incrementar a inteligência da fé autêntica a respeito da Palavra de
Deus; e, vice-versa, a leitura na fé das Escrituras faz crescer a
própria vida eclesial. Daqui podemos compreender de um modo novo a
conhecida afirmação de São Gregório Magno: «As palavras divinas
crescem juntamente com quem as lê».[94]
Assim, a escuta da Palavra de Deus introduz e incrementa a comunhão
eclesial com todos os que caminham na fé.
«A alma da
sagrada teologia»
31. «O estudo destes
sagrados livros deve ser como que a alma da sagrada teologia»:[95]
esta afirmação da Constituição dogmática
Dei Verbum foi-se-nos tornando ao longo destes anos cada vez
mais familiar. Podemos dizer que o período sucessivo ao
Concílio Vaticano II, no que se refere aos estudos teológicos e
exegéticos, citou frequentemente esta frase como símbolo do renovado
interesse pela Sagrada Escritura. Também a
XII Assembleia do Sínodo dos Bispos se referiu várias vezes a
esta conhecida afirmação, para indicar a relação entre investigação
histórica e hermenêutica da fé aplicadas ao texto sagrado. Nesta
perspectiva, os Padres reconheceram, com alegria, o crescimento do
estudo da Palavra de Deus na Igreja ao longo dos últimos decénios e
exprimiram um vivo agradecimento aos numerosos exegetas e
teólogos que, com a sua dedicação, empenho e competência, deram
e ainda dão uma contribuição essencial para o aprofundamento do
sentido das Escrituras, enfrentando os problemas complexos que o
nosso tempo coloca à investigação bíblica.[96]
Expressaram sentimentos de sincera gratidão também aos membros da
Pontifícia Comissão Bíblica que se sucederam nestes últimos
anos e que, em estreita relação com a Congregação para a Doutrina da
Fé, continuam a dar o seu qualificado contributo para enfrentar
questões peculiares inerentes ao estudo da Sagrada Escritura. Além
disso, o Sínodo sentiu a necessidade de se interrogar sobre o estado
dos estudos bíblicos actuais e sobre a sua relevância no âmbito
teológico. De facto, da relação fecunda entre exegese e teologia
depende, em grande parte, a eficácia pastoral da acção da Igreja e
da vida espiritual dos fiéis. Por isso, considero importante retomar
algumas reflexões surgidas no debate havido sobre este tema nos
trabalhos do Sínodo.
Desenvolvimento da investigação bíblica e Magistério eclesial
32. Em primeiro lugar,
é preciso reconhecer os benefícios que a exegese histórico-crítica e
os outros métodos de análise do texto, desenvolvidos em tempos mais
recentes, trouxeram para a vida da Igreja.[97]
Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a estes
métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da encarnação: «Esta
necessidade é a consequência do princípio cristão formulado no
Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O facto
histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da
salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por
isso, deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica
séria».[98] Por isso, o
estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado destes
métodos de pesquisa. Se é verdade que esta sensibilidade no âmbito
dos estudos se desenvolveu mais intensamente na época moderna,
embora não de igual modo por toda a parte, todavia na sã tradição
eclesial sempre houve amor pelo estudo da «letra». Basta recordar
aqui a cultura monástica, à qual em última análise devemos o
fundamento da cultura europeia: na sua raiz, está o interesse pela
palavra. O desejo de Deus inclui o amor pela palavra em todas as
suas dimensões: «Visto que, na Palavra bíblica, Deus caminha para
nós e nós para Ele, é preciso aprender a penetrar no segredo da
língua, compreendê--la na sua estrutura e no seu modo de se exprimir.
Assim, devido precisamente à procura de Deus, tornam-se importantes
as ciências profanas que nos indicam as vias rumo à língua».[99]
33. O Magistério vivo
da Igreja, ao qual compete «o encargo de interpretar autenticamente
a Palavra de Deus escrita ou contida na Tradição»,[100]
interveio com sapiente equilíbrio relativamente à justa posição a
tomar face à introdução dos novos métodos de análise histórica.
Refiro-me, de modo particular, às encíclicas
Providentissimus Deus do
Papa Leão XIII e
Divino afflante Spiritu do
Papa Pio XII. O meu venerável predecessor
João Paulo II recordou a importância destes documentos para a
exegese e a teologia, por ocasião da celebração do centenário e
cinquentenário respectivamente da sua publicação.[101]
A intervenção do
Papa Leão XIII teve o mérito de proteger a interpretação
católica da Bíblia dos ataques do racionalismo, sem contudo se
refugiar num sentido espiritual separado da história. Não desprezava
a crítica científica; desconfiava-se somente «das opiniões
preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a ciência mas, na
realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu campo».[102]
Por sua vez, o
Papa Pio XII encontrava-se perante os ataques dos adeptos duma
exegese chamada mística, que recusava qualquer abordagem científica.
Com grande sensibilidade, a Encíclica
Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia
de uma dicotomia entre a «exegese científica» para o uso apologético
e a «interpretação espiritual reservada ao uso interno», afirmando,
pelo contrário, quer o «alcance teológico do sentido literal
metodicamente definido», quer a pertença da «determinação do sentido
espiritual (…) ao campo da ciência exegética».[103]
De tal modo ambos os documentos recusam «a ruptura entre o humano e
o divino, entre a pesquisa científica e a visão da fé, entre o
sentido literal e o sentido espiritual».[104]
Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no documento de 1993
da Pontifícia Comissão Bíblica: «No seu trabalho de interpretação,
os exegetas católicos jamais devem esquecer que interpretam a
Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que distinguiram as
fontes, definiram as formas ou explicaram os processos literários. O
objectivo do seu trabalho só está alcançado quando tiverem
esclarecido o significado do texto bíblico como Palavra actual de
Deus».[105]
A
hermenêutica bíblica conciliar: uma indicação a acolher
34. A partir deste
horizonte, podem-se apreciar melhor os grandes princípios da
interpretação próprios da exegese católica expressos pelo
Concílio Vaticano II, particularmente na Constituição dogmática
Dei Verbum: «Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou
por meio dos homens e à maneira humana, o intérprete da Sagrada
Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos, deve investigar
com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que
aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras».[106]
O Concílio, por um lado, sublinha, como elementos fundamentais para
identificar o significado pretendido pelo hagiógrafo, o estudo dos
géneros literários e a contextualização; por outro, devendo a
Escritura ser interpretada no mesmo Espírito em que foi escrita, a
Constituição dogmática indica três critérios de base para se
respeitar a dimensão divina da Bíblia: 1) interpretar o texto tendo
presente a unidade de toda a Escritura; isto hoje chama-se
exegese canónica; 2) ter presente a Tradição viva de toda a
Igreja; 3) observar a analogia da fé. «Somente quando se
observam os dois níveis metodológicos, histórico-crítico e
teológico, é que se pode falar de uma exegese teológica, de uma
exegese adequada a este Livro».[107]
Os Padres sinodais
afirmaram, justamente, que o fruto positivo produzido pelo uso da
investigação histórico-crítica moderna é inegável. Mas, enquanto a
exegese académica actual, mesmo católica, trabalha a alto nível no
que se refere à metodologia histórico-crítica, incluindo as suas
mais recentes integrações, é forçoso exigir um estudo análogo da
dimensão teológica dos textos bíblicos, para que progrida o
aprofundamento segundo os três elementos indicados pela Constituição
dogmática
Dei Verbum.[108]
O perigo do
dualismo e a hermenêutica secularizada
35. A este propósito, é
preciso sublinhar hoje o grave risco de um dualismo que se gera ao
abordar as Sagradas Escrituras. De facto, distinguindo os dois
níveis da abordagem bíblica, não se pretende de modo algum separá-los,
contrapô-los, ou simplesmente justapô-los. Só funcionam em
reciprocidade. Infelizmente, não raro uma infrutífera separação dos
mesmos leva a exegese e a teologia a comportarem-se como estranhas;
e isto «acontece mesmo aos níveis académicos mais altos».[109]
Desejo aqui lembrar as consequências mais preocupantes que se devem
evitar.
a) Antes de mais
nada, se a actividade exegética se reduz só ao primeiro nível,
consequentemente a própria Escritura torna-se um texto só do
passado: «Daí podem-se tirar consequências morais, pode-se
aprender a história, mas o Livro como tal fala só do passado e a
exegese já não é realmente teológica, mas torna-se pura
historiografia, história da literatura».[110]
É claro que, numa tal redução, não é possível de modo algum
compreender o acontecimento da revelação de Deus através da sua
Palavra que nos é transmitida na Tradição viva e na Escritura.
b) A falta de
uma hermenêutica da fé na abordagem da Escritura não se apresenta
apenas em termos de uma ausência; o seu lugar acaba inevitavelmente
ocupado por outra hermenêutica, uma hermenêutica secularizada,
positivista, cuja chave fundamental é a convicção de que o Divino
não aparece na história humana. Segundo esta hermenêutica, quando
parecer que há um elemento divino, isso deve-se explicar de outro
modo, reduzindo tudo ao elemento humano. Consequentemente propõem-se
interpretações que negam a historicidade dos elementos divinos.[111]
c) Uma tal
posição não pode deixar de danificar a vida da Igreja, fazendo
surgir dúvidas sobre mistérios fundamentais do cristianismo e sobre
o seu valor histórico, como, por exemplo, a instituição da
Eucaristia e a ressurreição de Cristo. De facto, assim impõe-se uma
hermenêutica filosófica, que nega a possibilidade de ingresso e
presença do Divino na história. A assunção de tal hermenêutica no
âmbito dos estudos teológicos introduz, inevitavelmente, um gravoso
dualismo entre a exegese, que se situa unicamente no primeiro nível,
e a teologia que leva a uma espiritualização do sentido das
Escrituras não respeitadora do carácter histórico da revelação.
Tudo isto não pode
deixar de resultar negativo também para a vida espiritual e a
actividade pastoral; «a consequência da ausência do segundo nível
metodológico é que se criou um fosso profundo entre exegese
científica e lectio divina. E precisamente daqui nasce às
vezes uma forma de perplexidade na própria preparação das homilias».[112]
Além disso, há que assinalar que tal dualismo produz às vezes
incerteza e pouca solidez no caminho de formação intelectual mesmo
de alguns candidatos aos ministérios eclesiais.[113]
Enfim, «onde a exegese não é teologia, a Escritura não pode ser a
alma da teologia e, vice-versa, onde a teologia não é essencialmente
interpretação da Escritura na Igreja, esta teologia já não tem
fundamento».[114]
Portanto, é necessário voltar decididamente a considerar com mais
atenção as indicações dadas pela Constituição dogmática
Dei Verbum a este propósito.
Fé e razão
na abordagem da Escritura
36. Creio que pode
contribuir para uma compreensão mais completa da exegese e,
consequentemente, da sua relação com a teologia inteira aquilo que
escreveu o
João Paulo II na Encíclica
Fides et
ratio a este respeito. Afirmava ele que não se deve
subestimar «o perigo que existe quando se quer individuar a verdade
da Sagrada Escritura com a aplicação de uma única metodologia,
esquecendo a necessidade de uma exegese mais ampla que permita o
acesso, em união com toda a Igreja, ao sentido pleno dos textos. Os
que se dedicam ao estudo da Sagrada Escritura nunca devem esquecer
que as diversas metodologias hermenêuticas têm também na sua base
uma concepção filosófica: é preciso examiná-las com grande
discernimento, antes de as aplicar aos textos sagrados».[115]
Esta clarividente
reflexão permite-nos ver como, na abordagem hermenêutica da Sagrada
Escritura, está em jogo inevitavelmente a relação correcta entre fé
e razão. De facto, a hermenêutica secularizada da Sagrada Escritura
é actuada por uma razão que quer estruturalmente fechar-se à
possibilidade de Deus entrar na vida dos homens e falar aos homens
com palavras humanas. Por isso é necessário, também neste caso,
convidar a alargar os espaços da própria racionalidade.[116]
Na utilização dos métodos de análise histórica, dever-se-á evitar de
assumir, sempre que aparecem, critérios que preconceituosamente se
fechem à revelação de Deus na vida dos homens. A unidade dos dois
níveis do trabalho interpretativo da Sagrada Escritura pressupõe, em
última análise, uma harmonia entre a fé e a razão. Por um
lado, é necessária uma fé que, mantendo uma adequada relação com a
recta razão, nunca degenere em fideísmo, que se tornaria, a respeito
da Escritura, fautor de leituras fundamentalistas. Por outro, é
necessária uma razão que, investigando os elementos históricos
presentes na Bíblia, se mostre aberta e não recuse aprioristicamente
tudo o que excede a própria medida. Aliás, a religião do Logos
encarnado não poderá deixar de apresentar-se profundamente razoável
ao homem que sinceramente procura a verdade e o sentido último da
própria vida e da história.
Sentido
literal e sentido espiritual
37. Como foi afirmado
na assembleia sinodal, um significativo contributo para a
recuperação de uma adequada hermenêutica da Escritura provém de uma
renovada escuta dos Padres da Igreja e da sua abordagem exegética.[117]
Com efeito, os Padres da Igreja oferecem-nos, ainda hoje, uma
teologia de grande valor, porque no centro está o estudo da Sagrada
Escritura na sua integridade. De facto, os Padres são primária e
essencialmente «comentadores da Sagrada Escritura».[118]
O seu exemplo pode «ensinar aos exegetas modernos uma abordagem
verdadeiramente religiosa da Sagrada Escritura, e também uma
interpretação que se atém constantemente ao critério de comunhão com
a experiência da Igreja, que caminha através da história sob a guia
do Espírito Santo».[119]
Apesar de não conhecer,
obviamente, os recursos de ordem filológica e histórica à disposição
da exegese moderna, a tradição patrística e medieval sabia
reconhecer os vários sentidos da Escritura, a começar pelo literal,
isto é, «o expresso pelas palavras da Escritura e descoberto pela
exegese segundo as regras da recta interpretação».[120]
Por exemplo, São Tomás de Aquino afirma: «Todos os sentidos da
Sagrada Escritura se fundamentam no literal».[121]
É preciso, porém, recordar-se de que, no período patrístico e
medieval, toda a forma de exegese, incluindo a literal, era feita
com base na fé, não havendo necessariamente distinção entre
sentido literal e sentido espiritual. A propósito,
recorde-se o dístico clássico que traduz a relação entre os diversos
sentidos da Escritura:
«Littera gesta
docet, quid credas allegoria,
Moralis quid agas, quo tendas anagogia.
A letra ensina-te os factos [passados], a alegoria o que deves
crer,
A moral o que deves fazer, a anagogia para onde deves tender».[122]
Sobressai aqui a
unidade e a articulação entre sentido literal e sentido
espiritual, o qual, por sua vez, se subdivide em três sentidos
que descrevem os conteúdos da fé, da moral e da tensão escatológica.
Em suma, reconhecendo o
valor e a necessidade – apesar dos seus limites – do método
histórico-crítico, pela exegese patrística, aprendemos que «só se é
fiel à intencionalidade dos textos bíblicos na medida em que se
procura encontrar, no coração da sua formulação, a realidade de fé
que os mesmos exprimem e em que se liga esta realidade com a
experiência crente do nosso mundo».[123]
Somente nesta perspectiva se pode reconhecer que a Palavra de Deus é
viva e se dirige a cada um de nós no momento presente da nossa vida.
Continua assim plenamente válida a afirmação da Pontifícia Comissão
Bíblica que define o sentido espiritual, segundo a fé cristã, como
«o sentido expresso pelos textos bíblicos quando são lidos sob o
influxo do Espírito Santo no contexto do mistério pascal de Cristo e
da vida nova que dele resulta. Este contexto existe efectivamente. O
Novo Testamento reconhece nele o cumprimento das Escrituras. Por
isso, é normal reler as Escrituras à luz deste novo contexto, o da
vida no Espírito».[124]
A
necessária superação da «letra»
38. Para se recuperar a
articulação entre os diversos sentidos da Escritura, torna-se então
decisivo identificar a passagem entre letra e espírito. Não
se trata de uma passagem automática e espontânea; antes, é preciso
transcender a letra: «de facto, a Palavra do próprio Deus nunca se
apresenta na simples literalidade do texto. Para alcançá-la, é
preciso transcender a literalidade num processo de compreensão, que
se deixa guiar pelo movimento interior do conjunto e, portanto, deve
tornar-se também um processo de vida».[125]
Descobrimos assim o motivo por que um autêntico processo
interpretativo nunca é apenas intelectual, mas também vital, que
requer o pleno envolvimento na vida eclesial enquanto vida «segundo
o Espírito» (Gl 5, 16). Deste modo tornam-se mais claros os
critérios evidenciados pelo número 12 da Constituição dogmática
Dei Verbum: a referida superação não pode verificar-se no
fragmento literário individual mas em relação com a totalidade da
Escritura. De facto, é uma única Palavra aquela para a qual somos
chamados a transcender. Este processo possui uma íntima
dramaticidade, porque, no processo de superação, a passagem que
acontece em virtude do Espírito tem inevitavelmente a ver também com
a liberdade de cada um. São Paulo viveu plenamente na sua própria
vida esta passagem. O que significa transcender a letra e a sua
compreensão unicamente a partir do conjunto, expressou-o ele de modo
radical nesta frase: «A letra mata, mas o Espírito vivifica»
(2 Cor 3, 6). São Paulo descobre que «o Espírito libertador
tem um nome e que a liberdade tem, consequentemente, uma medida
interior: “O Senhor é Espírito, e onde está o Espírito do Senhor há
liberdade” (2 Cor 3, 17). O Espírito libertador não é
simplesmente a própria ideia, a visão pessoal de quem interpreta. O
Espírito é Cristo, e Cristo é o Senhor que nos indica a estrada».[126]
Sabemos como esta passagem foi dramática e simultaneamente
libertadora em Santo Agostinho; ele acreditou nas Escrituras, que
antes se lhe apresentavam muito diversificadas em si mesmas e às
vezes indelicadas, precisamente por esta superação que aprendeu de
Santo Ambrósio mediante a interpretação tipológica, segundo a qual
todo o Antigo Testamento é um caminho para Jesus Cristo. Para Santo
Agostinho, transcender a letra tornou credível a própria letra e
permitiu-lhe encontrar finalmente a resposta às profundas
inquietações do seu espírito, sedento da verdade.[127]
A unidade
intrínseca da Bíblia
39. Na escola da grande
tradição da Igreja, aprendemos na passagem da letra ao espírito a
identificar também a unidade de toda a Escritura, pois única é a
Palavra de Deus que interpela a nossa vida, chamando-a
constantemente à conversão.[128]
Continuam a ser para nós uma guia segura as expressões de Hugo de
São Víctor: «Toda a Escritura divina constitui um único livro e este
único livro é Cristo, fala de Cristo e encontra em Cristo a sua
realização».[129] É
certo que a Bíblia, vista sob o aspecto puramente histórico ou
literário, não é simplesmente um livro, mas uma colectânea de textos
literários, cuja redacção se estende por mais de um milénio e cujos
diversos livros não são facilmente reconhecíveis como partes duma
unidade interior; antes, há tensões palpáveis entre eles. Se isto já
se verifica no interior da Bíblia de Israel, que nós, cristãos,
chamamos Antigo Testamento, muito mais quando nós, como cristãos,
ligamos o Novo Testamento e os seus escritos – como se fosse a chave
hermenêutica – com a Bíblia de Israel interpretando-a como caminho
para Cristo. No Novo Testamento, aparece menos a expressão «a
Escritura» (cf. Rm 4, 3; 1 Pd 1, 6), do que «as
Escrituras» (cf. Mt 21, 43; Jo 5, 39; Rm 1, 2;
2 Pd 3, 16), que porém, no seu conjunto, são depois
consideradas como a única Palavra de Deus dirigida a nós.[130]
Por isso se vê claramente como é a pessoa de Cristo que dá unidade a
todas as «Escrituras» postas em relação com a única «Palavra».
Compreende-se assim a afirmação do número 12 da Constituição
dogmática
Dei Verbum, quando indica a unidade interna de toda a Bíblia
como critério decisivo para uma correcta hermenêutica da fé.
A relação
entre Antigo e Novo Testamento
40. Na perspectiva da
unidade das Escrituras em Cristo, tanto os teólogos como os pastores
necessitam de estar conscientes das relações entre o Antigo e o Novo
Testamento. Em primeiro lugar, é evidente que o próprio Novo
Testamento reconhece o Antigo Testamento como Palavra de Deus e,
por conseguinte, admite a autoridade das Sagradas Escrituras do povo
judeu.[131] Reconhece-as
implicitamente, quando usa a mesma linguagem e frequentemente alude
a trechos destas Escrituras; reconhece-as explicitamente, porque
cita muitas partes servindo-se delas para argumentar. Uma
argumentação baseada nos textos do Antigo Testamento reveste-se
assim, no Novo Testamento, de um valor decisivo, superior ao de
raciocínios simplesmente humanos. No quarto Evangelho, a este
propósito Jesus declara que «a Escritura não pode ser anulada» (Jo
10, 35) e São Paulo especifica de modo particular que a revelação do
Antigo Testamento continua a valer para nós, cristãos (cf. Rm
15, 4; 1 Cor 10, 11).[132]
Além disso, afirmamos que «Jesus de Nazaré foi um judeu e a Terra
Santa é terra-mãe da Igreja»;[133]
a raiz do cristianismo encontra-se no Antigo Testamento e sempre se
nutre desta raiz. Por isso a sã doutrina cristã sempre recusou
qualquer forma emergente de marcionismo, que tende de diversos modos
a contrapor entre si o Antigo e o Novo Testamento.[134]
Além disso, o próprio
Novo Testamento se diz em conformidade com o Antigo e proclama que,
no mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, encontraram o
seu perfeito cumprimento as Escrituras Sagradas do povo judeu. Mas é
preciso notar que o conceito de cumprimento das Escrituras é
complexo, porque comporta uma tríplice dimensão: um aspecto
fundamental de continuidade com a revelação do Antigo
Testamento, um aspecto de ruptura e um aspecto de
cumprimento e superação. O mistério de Cristo está em
continuidade de intenção com o culto sacrificial do Antigo
Testamento; mas realizou-se de um modo muito diferente, que
corresponde a muitos oráculos dos profetas, e alcançou assim uma
perfeição nunca antes obtida. De facto, o Antigo Testamento está
cheio de tensões entre os seus aspectos institucionais e os seus
aspectos proféticos. O mistério pascal de Cristo está plenamente de
acordo – embora de uma forma que era imprevisível – com as profecias
e o aspecto prefigurativo das Escrituras; mas apresenta evidentes
aspectos de descontinuidade relativamente às instituições do Antigo
Testamento.
41. Estas considerações
mostram assim a importância insubstituível do Antigo Testamento para
os cristãos, mas ao mesmo tempo evidenciam a originalidade da
leitura cristológica. Desde os tempos apostólicos e
depois na Tradição viva, a Igreja deixou clara a unidade do plano
divino nos dois Testamentos graças à tipologia, que não tem carácter
arbitrário mas é intrínseca aos acontecimentos narrados pelo texto
sagrado e, por conseguinte, diz respeito a toda a Escritura. A
tipologia «descobre nas obras de Deus, na Antiga Aliança,
prefigurações do que o mesmo Deus realizou, na plenitude dos tempos,
na pessoa do seu Filho encarnado».[135]
Por isso os cristãos lêem o Antigo Testamento à luz de Cristo morto
e ressuscitado. Se a leitura tipológica revela o conteúdo
inesgotável do Antigo Testamento relativamente ao Novo, não deve
todavia fazer-nos esquecer que aquele mantém o seu próprio valor de
Revelação que Nosso Senhor veio reafirmar (cf. Mc 12, 29-31).
Por isso «também o Novo Testamento requer ser lido à luz do Antigo.
A catequese cristã primitiva recorreu constantemente a este método
(cf. 1 Cor 5, 6-8; 10, 1-11)».[136]
Por este motivo, os Padres sinodais afirmaram que «a compreensão
judaica da Bíblia pode ajudar a inteligência e o estudo das
Escrituras por parte dos cristãos».[137]
Assim se exprimia, com
aguda sabedoria, Santo Agostinho sobre este tema: «O Novo Testamento
está oculto no Antigo e o Antigo está patente no Novo».[138]
Deste modo, tanto em âmbito pastoral como em âmbito académico,
importa que seja colocada bem em evidência a relação íntima entre os
dois Testamentos, recordando com São Gregório Magno que aquilo que
«o Antigo Testamento prometeu, o Novo Testamento fê-lo ver; o que
aquele anuncia de maneira oculta, este proclama abertamente como
presente. Por isso, o Antigo Testamento é profecia do Novo
Testamento; e o melhor comentário do Antigo Testamento é o Novo
Testamento».[139]
As páginas
«obscuras» da Bíblia
42. No contexto da
relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou também o
caso de páginas da Bíblia que às vezes se apresentam obscuras e
difíceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em
relação a isto, deve-se ter presente antes de mais nada que a
revelação bíblica está profundamente radicada na história. Nela
se vai progressivamente manifestando o desígnio de Deus,
actuando-se lentamente ao longo de etapas sucessivas, não
obstante a resistência dos homens. Deus escolhe um povo e,
pacientemente, realiza a sua educação. A revelação adapta-se ao
nível cultural e moral de épocas antigas, referindo consequentemente
factos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções
violentas, extermínio de populações, sem denunciar explicitamente a
sua imoralidade. Isto explica-se a partir do contexto histórico, mas
pode surpreender o leitor moderno, sobretudo quando se esquecem
tantos comportamentos «obscuros» que os homens sempre tiveram ao
longo dos séculos, inclusive nos nossos dias. No Antigo Testamento,
a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra todo o tipo de
injustiça e de violência, colectiva ou individual, tornando-se assim
o instrumento da educação dada por Deus ao seu povo como preparação
para o Evangelho. Seria, pois, errado não considerar aqueles passos
da Escritura que nos aparecem problemáticos. Entretanto deve-se ter
consciência de que a leitura destas páginas requer a aquisição de
uma adequada competência, através duma formação que leia os textos
no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã, que tem
como chave hermenêutica última «o Evangelho e o mandamento novo de
Jesus Cristo realizado no mistério pascal».[140]
Por isso exorto os estudiosos e os pastores a ajudarem todos os
fiéis a abeirar-se também destas páginas por meio de uma leitura que
leve a descobrir o seu significado à luz do mistério de Cristo.
Cristãos e
judeus, relativamente às Sagradas Escrituras
43. Depois de
considerar a íntima relação que une o Novo Testamento ao Antigo, é
espontâneo fixar a atenção no vínculo peculiar que isso cria entre
cristãos e judeus, um vínculo que não deveria jamais ser esquecido.
Aos judeus, o Papa
João Paulo II declarou: sois «os nossos “irmãos predilectos” na
fé de Abraão, nosso patriarca».[141]
Por certo, estas afirmações não significam ignorar as rupturas
atestadas no Novo Testamento relativamente às instituições do Antigo
Testamento e menos ainda o cumprimento das Escrituras no mistério de
Jesus Cristo, reconhecido Messias e Filho de Deus. Mas esta
diferença profunda e radical não implica de modo algum hostilidade
recíproca. Pelo contrário, o exemplo de São Paulo (cf. Rm
9–11) demonstra que «uma atitude de respeito, estima e amor pelo
povo judeu é a única atitude verdadeiramente cristã nesta situação
que, misteriosamente, faz parte do desígnio totalmente positivo de
Deus».[142] De facto,
o Apóstolo afirma que os judeus, «quanto à escolha divina, são
amados por causa dos Patriarcas, pois os dons e o chamamento de Deus
são irrevogáveis» (Rm 11, 28-29).
Além disso, usa a bela
imagem da oliveira para descrever as relações muito estreitas entre
cristãos e judeus: a Igreja dos gentios é como um rebento de
oliveira brava enxertado na oliveira boa que é o povo da Aliança
(cf. Rm 11, 17-24). Alimentamo-nos, pois, das mesmas raízes
espirituais. Encontramo-nos como irmãos; irmãos que em certos
momentos da sua história tiveram um relacionamento tenso, mas agora
estão firmemente comprometidos na construção de pontes de amizade
duradoura.[143] Como
disse o Papa
João Paulo II noutra ocasião: «Temos muito em comum. Juntos
podemos fazer muito pela paz, pela justiça e por um mundo mais
fraterno e mais humano».[144]
Desejo afirmar uma vez
mais quão precioso é para a Igreja o diálogo com os judeus.
É bom que, onde isto se apresentar como oportuno, se criem
possibilidades mesmo públicas de encontro e diálogo, que favoreçam o
crescimento do conhecimento mútuo, da estima recíproca e da
colaboração inclusive no próprio estudo das Sagradas Escrituras.
A
interpretação fundamentalista da Sagrada Escritura
44. A atenção que
quisemos dar até agora ao tema da hermenêutica bíblica, nos seus
diversos aspectos, permite-nos abordar o tema – muitas vezes
aflorado no debate sinodal – da interpretação fundamentalista da
Sagrada Escritura.[145]
Sobre este tema, a Pontifícia Comissão Bíblica, no documento
A interpretação da Bíblia na Igreja, formulou indicações
importantes. Neste contexto, desejo chamar a atenção sobretudo para
aquelas leituras que não respeitam o texto sagrado na sua natureza
autêntica, promovendo interpretações subjectivistas e arbitrárias.
Na realidade, o «literalismo» propugnado pela leitura
fundamentalista constitui uma traição tanto do sentido literal como
do espiritual, abrindo caminho a instrumentalizações de variada
natureza, difundindo por exemplo interpretações anti-eclesiais das
próprias Escrituras. O aspecto problemático da «leitura
fundamentalista é que, recusando ter em conta o carácter histórico
da revelação bíblica, torna-se incapaz de aceitar plenamente a
verdade da própria Encarnação. O fundamentalismo evita a íntima
ligação do divino e do humano nas relações com Deus. (…) Por este
motivo, tende a tratar o texto bíblico como se fosse ditado palavra
por palavra pelo Espírito e não chega a reconhecer que a Palavra de
Deus foi formulada numa linguagem e numa fraseologia condicionadas
por uma dada época».[146]
Ao contrário, o cristianismo divisa nas palavras a
Palavra, o próprio Logos, que estende o seu mistério através
de tal multiplicidade e da realidade de uma história humana.[147]
A verdadeira resposta a uma leitura fundamentalista é «a leitura
crente da Sagrada Escritura, praticada desde a antiguidade na
Tradição da Igreja. [Tal leitura] procura a verdade salvífica para a
vida do indivíduo fiel e para a Igreja. Esta leitura reconhece o
valor histórico da tradição bíblica. Precisamente por este valor de
testemunho histórico é que ela quer descobrir o significado vivo das
Sagradas Escrituras destinadas também à vida do fiel de hoje»,[148]
sem ignorar, portanto, a mediação humana do texto inspirado e os
seus géneros literários.
Diálogo
entre Pastores, teólogos e exegetas
45. A autêntica
hermenêutica da fé acarreta algumas consequências importantes no
âmbito da actividade pastoral da Igreja. Precisamente a este
respeito, os Padres sinodais recomendaram, por exemplo, um
relacionamento mais assíduo entre Pastores, exegetas e teólogos. É
bom que as Conferências Episcopais favoreçam estes encontros com o
«fim de promover uma maior comunhão no serviço da Palavra de Deus».[149]
Tal cooperação ajudará a todos a realizarem melhor o próprio
trabalho em benefício da Igreja inteira. De facto, situar-se no
horizonte do trabalho pastoral quer dizer, mesmo para os estudiosos,
olhar o texto sagrado na sua natureza de comunicação que o Senhor
faz aos homens para a salvação. Portanto, como afirmou a
Constituição dogmática
Dei Verbum, «é preciso que os exegetas católicos e demais
estudiosos da sagrada teologia trabalhem em íntima colaboração de
esforços, para que, sob a vigilância do sagrado magistério, lançando
mão de meios aptos, estudem e expliquem as divinas Letras, de modo
que o maior número possível de ministros da Palavra de Deus possa
oferecer com fruto ao Povo de Deus o alimento das Escrituras, que
ilumine o espírito, robusteça as vontades e inflame os corações dos
homens no amor de Deus».[150]
Bíblia e
ecumenismo
46. Na certeza de que a
Igreja tem o seu fundamento em Cristo, Verbo de Deus feito carne, o
Sínodo quis sublinhar a centralidade dos estudos bíblicos no diálogo
ecuménico, que visa a plena expressão da unidade de todos os crentes
em Cristo.[151] De
facto, na própria Escritura, encontramos a comovente súplica de
Jesus ao Pai pelos seus discípulos para que sejam um só a fim de que
o mundo creia (cf. Jo 17, 21). Tudo isto nos fortalece na
convicção de que escutar e meditar juntos as Escrituras nos faz
viver uma comunhão real, embora ainda não plena;[152]
pois «a escuta comum das Escrituras impele ao diálogo da caridade e
faz crescer o da verdade».[153]
De facto, ouvir juntos a Palavra de Deus, praticar a lectio
divina da Bíblia, deixar-se surpreender pela novidade que nunca
envelhece e jamais se esgota da Palavra de Deus, superar a nossa
surdez àquelas palavras que não estão de acordo com as nossas
opiniões ou preconceitos, escutar e estudar na comunhão dos fiéis de
todos os tempos: tudo isto constitui um caminho a percorrer para
alcançar a unidade da fé, como resposta à escuta da Palavra.[154]
Verdadeiramente esclarecedoras eram estas palavras do
Concílio Vaticano II: «No próprio diálogo [ecuménico], a Sagrada
Escritura é um exímio instrumento da poderosa mão de Deus para a
consecução daquela unidade que o Salvador oferece a todos os homens».[155]
Por isso, é bom incrementar o estudo, o diálogo e as celebrações
ecuménicas da Palavra de Deus, no respeito das regras vigentes e das
diversas tradições.[156]
Estas celebrações são úteis à causa ecuménica e, se vividas no seu
verdadeiro significado, constituem momentos intensos de autêntica
oração nos quais se pede a Deus para apressar o suspirado dia em que
será possível abeirar-nos todos da mesma mesa e beber do único
cálice. Entretanto, na justa e louvável promoção destes momentos,
faça-se de modo que os mesmos não sejam propostos aos fiéis em
substituição da participação na Santa Missa nos dias de preceito.
Neste trabalho de
estudo e de oração, reconhecemos com serenidade também os aspectos
que requerem ser aprofundados e que nos mantêm ainda distantes,
como, por exemplo, a compreensão do sujeito da interpretação com
autoridade na Igreja e o papel decisivo do Magistério.[157]
Além disso queria
sublinhar o que os Padres sinodais disseram da importância que têm,
neste trabalho ecuménico, as traduções da Bíblia nas diversas
línguas. De facto, sabemos que traduzir um texto não é trabalho
meramente mecânico, mas faz parte em certo sentido do trabalho
interpretativo. A este respeito, o Venerável
João Paulo II afirmou: «Quem recorda como influíram nas
divisões, especialmente no Ocidente, os debates em torno da
Escritura, pode compreender quanto seja notável o passo em frente
representado por tais traduções comuns».[158]
Por isso, a promoção das traduções comuns da Bíblia faz parte do
trabalho ecuménico. Desejo aqui agradecer a todos os que estão
comprometidos nesta importante tarefa e encorajá-los a continuarem
na sua obra.
Consequências sobre a organização dos estudos teológicos
47. Outra consequência
que deriva de uma adequada hermenêutica da fé diz respeito à
necessidade de mostrar as suas implicações na formação exegética e
teológica, particularmente dos candidatos ao sacerdócio. Faça-se com
que o estudo da Sagrada Escritura seja verdadeiramente a alma da
teologia, enquanto se reconhece nela a Palavra que Deus hoje dirige
ao mundo, à Igreja e a cada um pessoalmente. É importante que os
critérios indicados pelo número 12 da Constituição dogmática
Dei Verbum sejam efectivamente tomados em consideração e se
tornem objecto de aprofundamento. Evite-se cultivar uma noção de
pesquisa científica, que se considera neutral face à Escritura. Por
isso, juntamente com o estudo das línguas próprias em que foi
escrita a Bíblia e dos métodos interpretativos adequados, é
necessário que os estudantes tenham uma profunda vida espiritual,
para se aperceberem de que só é possível compreender a Escritura se
a viverem.
Nesta perspectiva,
recomendo que o estudo da Palavra de Deus, transmitida e escrita, se
verifique sempre em profundo espírito eclesial, tendo em devida
conta, na formação académica, as intervenções sobre estas temáticas
feitas pelo Magistério, o qual «não está acima da palavra de Deus,
mas sim ao seu serviço, ensinando apenas o que foi transmitido,
enquanto, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo,
a ouve piamente, a guarda religiosamente e a expõe fielmente».[159]
Portanto tenha-se o cuidado de que os estudos se realizem
reconhecendo que «a sagrada Tradição, a sagrada Escritura e o
magistério da Igreja, segundo o sapientíssimo desígnio de Deus, de
tal maneira se unem e associam que um sem os outros não se mantém».[160]
Desejo pois que, segundo a doutrina do
Concílio Vaticano II, o estudo da Sagrada Escritura, lida na
comunhão da Igreja universal, seja realmente como que a alma do
estudo teológico.[161]
Os Santos e
a interpretação da Escritura
48. A interpretação da
Sagrada Escritura ficaria incompleta se não se ouvisse também
quem viveu verdadeiramente a Palavra de Deus, ou seja, os Santos.[162]
De facto, «viva lectio est vita bonorum».[163]
Realmente a interpretação mais profunda da Escritura provém
precisamente daqueles que se deixaram plasmar pela Palavra de Deus,
através da sua escuta, leitura e meditação assídua.
Certamente não é por
acaso que as grandes espiritualidades, que marcaram a história da
Igreja, nasceram de uma explícita referência à Escritura. Penso, por
exemplo, em Santo Antão Abade, que se decide ao ouvir esta palavra
de Cristo: «Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que possuíres,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no céus; depois, vem e
segue-Me» (Mt 19, 21).[164]
Igualmente sugestivo é São Basílio Magno, quando, na sua obra
Moralia, se interroga: «O que é próprio da fé? Certeza plena e
segura da verdade das palavras inspiradas por Deus. (…) O que é
próprio do fiel? Com tal certeza plena, conformar-se com o
significado das palavras da Escritura, sem ousar tirar nem
acrescentar seja o que for».[165]
São Bento, na sua Regra, remete para a Escritura como «norma
rectíssima para a vida do homem».[166]
São Francisco de Assis – escreve Tomás de Celano – «ao ouvir que os
discípulos de Cristo não devem possuir ouro, nem prata, nem dinheiro,
não devem trazer alforge, nem pão, nem cajado para o caminho, não
devem ter vários pares de calçado, nem duas túnicas, (…) logo
exclamou, transbordando de Espírito Santo: Com todo o coração isto
quero, isto peço, isto anseio realizar!».[167]
E Santa Clara de Assis reproduz plenamente a experiência de São
Francisco: «A forma de vida da Ordem das Irmãs pobres (…) é esta:
observar o santo Evangelho do Senhor nosso Jesus Cristo».[168]
Por sua vez, São Domingos de Gusmão «em toda a parte se manifestava
como um homem evangélico, tanto nas palavras como nas obras»,[169]
e tais queria que fossem também os seus padres pregadores: «homens
evangélicos».[170]
Santa Teresa de Ávila, nos seus escritos, recorre continuamente a
imagens bíblicas para explicar a sua experiência mística, e lembra
que o próprio Jesus lhe manifesta que «todo o mal do mundo deriva de
não se conhecer claramente a verdade da Sagrada Escritura».[171]
Santa Teresa do Menino Jesus encontra o Amor como sua vocação
pessoal, quando perscruta as Escrituras, em particular os capítulos
12 e 13 da Primeira Carta aos Coríntios;[172]
e a mesma Santa assim nos descreve o fascínio das Escrituras: «Apenas
lanço o olhar sobre o Evangelho, imediatamente respiro os perfumes
da vida de Jesus e sei para onde correr».[173]
Cada Santo constitui uma espécie de raio de luz que brota da Palavra
de Deus: assim o vemos também em Santo Inácio de Loyola na sua busca
da verdade e no discernimento espiritual, em São João Bosco na sua
paixão pela educação dos jovens, em São João Maria Vianney na sua
consciência da grandeza do sacerdócio como dom e dever; em São Pio
de Pietrelcina no seu ser instrumento da misericórdia divina; em São
Josemaria Escrivá na sua pregação sobre a vocação universal à
santidade; na Beata Teresa de Calcutá missionária da caridade de
Deus pelos últimos; e nos mártires do nazismo e do comunismo
representados, os primeiros, por Santa Teresa Benedita da Cruz
(Edith Stein), monja carmelita, e os segundos pelo Beato Aloísio
Stepinac, Cardeal Arcebispo de Zagrábia.
49. Assim a santidade
relacionada com a Palavra de Deus inscreve-se de certo modo na
tradição profética, na qual a Palavra de Deus se serve da própria
vida do profeta. Neste sentido, a santidade na Igreja representa uma
hermenêutica da Escritura da qual ninguém pode prescindir. O
Espírito Santo que inspirou os autores sagrados é o mesmo que anima
os Santos a darem a vida pelo Evangelho. Entrar na sua escola
constitui um caminho seguro para efectuar uma hermenêutica viva e
eficaz da Palavra de Deus.
Tivemos um testemunho
directo desta ligação entre Palavra de Deus e santidade durante a
XII Assembleia do Sínodo quando, a 12 de Outubro na Praça de São
Pedro, se realizou a
canonização de quatro novos Santos: o sacerdote Caetano Errico,
fundador da Congregação dos Missionários dos Sagrados Corações de
Jesus e de Maria; a Irmã Maria Bernarda Bütler, nascida na Suíça e
missionária no Equador e na Colômbia; a Irmã Afonsa da Imaculada
Conceição, primeira santa canonizada nascida na Índia; a jovem leiga
equatoriana Narcisa de Jesus Martillo Morán. Com a sua vida, deram
testemunho ao mundo e à Igreja da perene fecundidade do Evangelho de
Cristo. Pedimos ao Senhor que, por intercessão destes Santos
canonizados precisamente nos dias da assembleia sinodal sobre a
Palavra de Deus, a nossa vida seja aquele «terreno bom» onde o
Semeador divino possa semear a Palavra para que produza em nós
frutos de santidade, a «trinta, sessenta, e cem por um» (Mc
4, 20).
II PARTE
VERBUM IN ECCLESIA
«A todos os que O receberam, deu-lhes o poder
de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12)
A palavra de Deus e a Igreja
A Igreja
acolhe a Palavra
50. O Senhor pronuncia
a sua Palavra para que seja acolhida por aqueles que foram criados
precisamente «por meio» do Verbo. «Veio ao que era Seu» (Jo
1, 11): desde as origens, a Palavra tem a ver connosco e a criação
foi desejada numa relação de familiaridade com a vida divina. O
Prólogo do quarto Evangelho apresenta-nos também a rejeição da
Palavra divina por parte dos «Seus» que «não O receberam» (Jo
1, 11). Não recebê-Lo quer dizer não ouvir a sua voz, não se
configurar ao Logos. Mas, quando o homem, apesar de frágil e
pecador, se abre sinceramente ao encontro com Cristo, começa uma
transformação radical: «A todos os que O receberam, (…) deu-lhes o
poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo 1, 12). Receber o
Verbo significa deixar-se plasmar por Ele, para se tornar, pelo
poder do Espírito Santo, conforme a Cristo, ao «Filho Único que vem
do Pai» (Jo 1, 14). É o início de uma nova criação: nasce a
criatura nova, um povo novo. Aqueles que crêem, ou seja, aqueles que
vivem a obediência da fé «nasceram de Deus» (Jo 1, 13), são
feitos participantes da vida divina: filhos no Filho (cf.
Gl 4, 5-6; Rm 8, 14-17). Santo Agostinho, comentando este
trecho do Evangelho de João, afirma de modo sugestivo: «Por
meio do Verbo foste feito, mas é necessário que por meio do Verbo
sejas refeito».[174]
Vemos esboçar-se aqui o rosto da Igreja como realidade que se define
pelo acolhimento do Verbo de Deus, que, encarnando, colocou a sua
tenda entre nós (cf. Jo 1, 14). Esta morada de Deus entre
os homens – a shekinah (cf. Ex 26, 1) –, prefigurada
no Antigo Testamento, realiza-se agora com a presença definitiva de
Deus no meio dos homens em Cristo.
Contemporaneidade de Cristo na vida da Igreja
51. A relação entre
Cristo, Palavra do Pai, e a Igreja não pode ser compreendida em
termos de um acontecimento simplesmente passado, mas trata-se de uma
relação vital na qual cada fiel, pessoalmente, é chamado a entrar.
Realmente, falamos da Palavra de Deus que está hoje presente
connosco: «Eu estarei sempre convosco, até ao fim do mundo» (Mt
28, 20). Como afirmou o Papa
João Paulo II, «a contemporaneidade de Cristo com o homem de
cada época realiza-se no seu corpo, que é a Igreja. Por esta razão,
o Senhor prometeu aos seus discípulos o Espírito Santo, que lhes
haveria de “lembrar” e fazer compreender os seus mandamentos (cf.
Jo 14, 26) e seria o princípio fontal de uma nova vida no mundo
(cf. Jo 3, 5-8; Rm 8, 1-13)».[175]
A Constituição dogmática
Dei Verbum expressa este mistério com os termos bíblicos de
um diálogo nupcial: «Deus, que outrora falou, dialoga sem
interrupção com a esposa do seu amado Filho; e o Espírito Santo –
por quem ressoa a voz do Evangelho na Igreja e, pela Igreja, no
mundo – introduz os crentes na verdade plena e faz com que a palavra
de Cristo neles habite em toda a sua riqueza (cf. Cl 3, 16)».[176]
Mestra de escuta, a
Esposa de Cristo repete, com fé, também hoje: «Falai, Senhor, que a
vossa Igreja Vos escuta».[177]
Por isso, a Constituição dogmática
Dei Verbum começa com estes termos: «O sagrado Concílio,
ouvindo religiosamente a Palavra de Deus e proclamando-a com
confiança…».[178] Com
efeito, trata-se de uma definição dinâmica da vida da Igreja: «São
palavras com as quais o Concílio indica um aspecto qualificante da
Igreja: esta é uma comunidade que escuta e anuncia a Palavra de
Deus. A Igreja não vive de si mesma, mas do Evangelho; e do
Evangelho tira, sem cessar, orientação para o seu caminho. Temos
aqui uma advertência que cada cristão deve acolher e aplicar a si
mesmo: só quem se coloca primeiro à escuta da Palavra é que pode
depois tornar-se seu anunciador».[179]
Na Palavra de Deus proclamada e ouvida e nos Sacramentos, Jesus
hoje, aqui e agora, diz a cada um: «Eu sou teu, dou-Me a ti», para
que o homem O possa acolher e responder-Lhe dizendo por sua vez: «Eu
sou teu».[180] Assim
a Igreja apresenta-se como o âmbito onde podemos, por graça,
experimentar o que diz o Prólogo de João: «A todos os que O
receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus» (Jo
1, 12).
Liturgia,
lugar privilegiado da Palavra de Deus
A Palavra
de Deus na sagrada Liturgia
52. Considerando a
Igreja como «casa da Palavra»,[181]
deve-se antes de tudo dar atenção à Liturgia sagrada. Esta constitui,
efectivamente, o âmbito privilegiado onde Deus nos fala no momento
presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde.
Cada acção litúrgica está, por sua natureza, impregnada da Sagrada
Escritura. Como afirma a Constituição
Sacrosanctum Concilium, «é enorme a importância da Sagrada
Escritura na celebração da Liturgia. Porque é a ela que se vão
buscar as leituras que se explicam na homilia e os salmos para
cantar; com o seu espírito e da sua inspiração nasceram as preces,
as orações e os hinos litúrgicos; dela tiram a sua capacidade de
significação as acções e os sinais».[182]
Mais ainda, deve-se afirmar que o próprio Cristo «está presente na
sua palavra, pois é Ele que fala ao ser lida na Igreja a Sagrada
Escritura».[183] Com
efeito, «a celebração litúrgica torna-se uma contínua, plena e
eficaz proclamação da Palavra de Deus. Por isso, constantemente
anunciada na liturgia, a Palavra de Deus permanece viva e eficaz
pela força do Espírito Santo, e manifesta aquele amor operante do
Pai que não cessa jamais de agir em favor de todos os homens».[184]
De facto, a Igreja sempre mostrou ter consciência de que, na acção
litúrgica, a Palavra de Deus é acompanhada pela acção íntima do
Espírito Santo que a torna operante no coração dos fiéis. Na
realidade, graças ao Paráclito é que «a Palavra de Deus se torna
fundamento da acção litúrgica, norma e sustentáculo da vida inteira.
A acção do próprio Espírito Santo (…) sugere a cada um, no íntimo do
coração, tudo aquilo que, na proclamação da Palavra de Deus, é dito
para a assembleia inteira dos fiéis e, enquanto reforça a unidade de
todos, favorece também a diversidade dos carismas e valoriza a acção
multiforme».[185]
Por isso, para a
compreensão da Palavra de Deus, é necessário entender e viver o
valor essencial da acção litúrgica. Em certo sentido, a
hermenêutica da fé relativamente à Sagrada Escritura deve ter sempre
como ponto de referência a liturgia, onde a Palavra de Deus é
celebrada como palavra actual e viva: «A Igreja, na liturgia, segue
fielmente o modo de ler e interpretar as Sagradas Escrituras seguido
pelo próprio Cristo, quando, a partir do “hoje” do seu evento,
exorta a perscrutar todas as Escrituras».[186]
Aqui se vê também a
sábia pedagogia da Igreja que proclama e escuta a Sagrada Escritura
seguindo o ritmo do ano litúrgico. Vemos a Palavra de Deus
distribuída ao longo do tempo, particularmente na celebração
eucarística e na Liturgia das Horas. No centro de tudo, refulge o
Mistério Pascal, ao qual se unem todos os mistérios de Cristo e da
história da salvação actualizados sacramentalmente: «Com esta
recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as
riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os
tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em
contacto com eles, se encham de graça».[187]
Por isso exorto os Pastores da Igreja e os agentes pastorais a fazer
com que todos os fiéis sejam educados para saborear o sentido
profundo da Palavra de Deus que está distribuída ao longo do ano na
liturgia, mostrando os mistérios fundamentais da nossa fé. Também
disto depende a correcta abordagem da Sagrada Escritura.
Sagrada
Escritura e Sacramentos
53. Ocupando-se do tema
do valor da liturgia para a compreensão da Palavra de Deus, o Sínodo
dos Bispos quis sublinhar também a relação entre a Sagrada Escritura
e a acção sacramental. É muito oportuno aprofundar o vínculo entre
Palavra e Sacramento, tanto na acção pastoral da Igreja como na
investigação teológica.[188]
Certamente, «a liturgia da Palavra é um elemento decisivo na
celebração de cada um dos sacramentos da Igreja»;[189]
na prática pastoral, porém, nem sempre os fiéis estão conscientes
deste vínculo, vendo a unidade entre o gesto e a palavra. É «dever
dos sacerdotes e diáconos, sobretudo quando
administram os sacramentos, evidenciar a unidade que formam Palavra
e Sacramento no ministério da Igreja».[190]
De facto, na relação entre Palavra e gesto sacramental, mostra-se de
forma litúrgica o agir próprio de Deus na história, por meio do
carácter performativo da Palavra. Com efeito, na história da
salvação, não há separação entre o que Deus diz e faz;
a sua própria Palavra apresenta-se como viva e eficaz (cf. Hb
4, 12), como aliás indica o significado do termo hebraico dabar.
Do mesmo modo, na acção litúrgica, vemo-nos colocados diante da sua
Palavra que realiza aquilo que diz. Quando se educa o Povo de Deus
para descobrir o carácter performativo da Palavra de Deus na
liturgia, ajudamo-lo também a perceber o agir de Deus na história da
salvação e na vida pessoal de cada um dos seus membros.
Palavra de
Deus e Eucaristia
54. Quanto foi dito de
modo geral a respeito da relação entre Palavra e Sacramentos, ganha
maior profundidade aplicado à celebração eucarística. Aliás a
unidade íntima entre Palavra e Eucaristia está radicada no
testemunho da Escritura (cf. Jo 6; L c 24), é atestada
pelos Padres da Igreja e reafirmada pelo
Concílio Vaticano II.[191]
A este propósito, pensemos no grande discurso de Jesus sobre o pão
da vida na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6, 22-69), que tem
como pano de fundo o confronto entre Moisés e Jesus, entre aquele
que falou face a face com Deus (cf. Ex 33, 11) e aquele que
revelou Deus (cf. Jo 1, 18). De facto, o discurso sobre o pão
evoca o dom de Deus que Moisés obteve para o seu povo com o maná no
deserto, que na realidade é a Torah, a Palavra de Deus que
faz viver (cf. Sl 119; Pr 9, 5). Em Si mesmo, Jesus
torna realidade esta figura antiga: «O pão de Deus é o que desce do
Céu e dá a vida ao mundo. (...) Eu sou o pão da vida» (Jo 6,
33.35). Aqui, «a Lei tornou-se Pessoa. Encontrando Jesus,
alimentamo-nos por assim dizer do próprio Deus vivo, comemos
verdadeiramente o pão do céu».[192]
No discurso de Cafarnaum, aprofunda-se o Prólogo de João: se neste o
Logos de Deus Se faz carne, naquele a carne faz-Se «pão»
dado para a vida do mundo (cf. Jo 6, 51), aludindo assim ao
dom que Jesus fará de Si mesmo no mistério da cruz, confirmado pela
afirmação acerca do seu sangue dado a «beber» (cf. Jo
6, 53). Assim, no mistério da Eucaristia, mostra-se qual é o
verdadeiro maná, o verdadeiro pão do céu: é o Logos de Deus
que Se fez carne, que Se entregou a Si mesmo por nós no Mistério
Pascal.
A narração de Lucas
sobre os discípulos de Emaús permite-nos uma reflexão subsequente
acerca do vínculo entre a escuta da Palavra e a fracção do pão (cf.
L c 24, 13-35). Jesus foi ter com eles no dia depois do
sábado, escutou as expressões da sua esperança desiludida e,
acompanhando-os ao longo do caminho, «explicou-lhes, em todas as
Escrituras, tudo o que Lhe dizia respeito» (24, 27). Juntamente com
este viajante que inesperadamente se manifesta tão familiar às suas
vidas, os dois discípulos começam a ver as Escrituras de um novo
modo. O que acontecera naqueles dias já não aparece como um
fracasso, mas cumprimento e novo início. Todavia, mesmo estas
palavras não parecem ainda suficientes para os dois discípulos. O
Evangelho de Lucas diz que «abriram-se-lhes os olhos e
reconheceram-No» (24, 31) somente quando Jesus tomou o pão,
abençoou-o, partiu-o e lho deu; antes, «os seus olhos estavam
impedidos de O reconhecerem» (24, 16). A presença de Jesus, primeiro
com as palavras e depois com o gesto de partir o pão, tornou
possível aos discípulos reconhecê-Lo e apreciar de modo novo tudo o
que tinham vivido anteriormente com Ele: «Não estava o nosso coração
a arder cá dentro, quando Ele nos explicava as Escrituras?» (24,
32).
55. Vê-se a partir
destas narrações como a própria Escritura leva a descobrir o seu
nexo indissolúvel com a Eucaristia. «Por conseguinte, deve-se ter
sempre presente que a Palavra de Deus, lida e proclamada na liturgia
pela Igreja, conduz, como se de alguma forma se tratasse da sua
própria finalidade, ao sacrifício da aliança e ao banquete da
graça, ou seja, à Eucaristia».[193]
Palavra e Eucaristia correspondem-se tão intimamente que não podem
ser compreendidas uma sem a outra: a Palavra de Deus faz-Se carne,
sacramentalmente, no evento eucarístico. A Eucaristia abre-nos à
inteligência da Sagrada Escritura, como esta, por sua vez, ilumina e
explica o Mistério eucarístico. Com efeito, sem o reconhecimento da
presença real do Senhor na Eucaristia, permanece incompleta a
compreensão da Escritura. Por isso, «à palavra de Deus e ao mistério
eucarístico a Igreja tributou e quis e estabeleceu que, sempre e em
todo o lugar, se tributasse a mesma veneração embora não o mesmo
culto. Movida pelo exemplo do seu fundador, nunca cessou de celebrar
o mistério pascal, reunindo-se num mesmo lugar para ler, “em todas
as Escrituras, aquilo que Lhe dizia respeito” (L c 24, 27) e
actualizar, com o memorial do Senhor e os sacramentos, a obra da
salvação».[194]
A
sacramentalidade da Palavra
56. Com o apelo ao
carácter performativo da Palavra de Deus na acção sacramental e o
aprofundamento da relação entre Palavra e Eucaristia, somos
introduzidos num tema significativo, referido durante a Assembleia
do Sínodo: a sacramentalidade da Palavra.[195]
A este respeito é útil recordar que o Papa
João Paulo II já aludira «ao horizonte sacramental da
Revelação e, de forma particular, ao sinal eucarístico, onde a união
indivisível entre a realidade e o respectivo significado permite
identificar a profundidade do mistério».[196]
Daqui se compreende que, na origem da sacramentalidade da Palavra de
Deus, esteja precisamente o mistério da encarnação: «o Verbo fez-Se
carne» (Jo 1, 14), a realidade do mistério revelado oferece-se
a nós na «carne» do Filho. A Palavra de Deus torna-se perceptível à
fé através do «sinal» de palavras e gestos humanos. A fé reconhece o
Verbo de Deus, acolhendo os gestos e as palavras com que Ele mesmo
se nos apresenta. Portanto, o horizonte sacramental da revelação
indica a modalidade histórico-salvífica com que o Verbo de Deus
entra no tempo e no espaço, tornando-Se interlocutor do homem,
chamado a acolher na fé o seu dom.
Assim é possível
compreender a sacramentalidade da Palavra através da analogia com a
presença real de Cristo sob as espécies do pão e do vinho
consagrados.[197]
Aproximando-nos do altar e participando no banquete eucarístico,
comungamos realmente o corpo e o sangue de Cristo. A proclamação da
Palavra de Deus na celebração comporta reconhecer que é o próprio
Cristo que Se faz presente e Se dirige a nós[198]
para ser acolhido. Referindo-se à atitude que se deve adoptar tanto
em relação à Eucaristia como à Palavra de Deus, São Jerónimo afirma:
«Lemos as Sagradas Escrituras. Eu penso que o Evangelho é o Corpo de
Cristo; penso que as santas Escrituras são o seu ensinamento. E
quando Ele fala em “comer a minha carne e beber o meu
sangue” (Jo 6, 53), embora estas palavras se possam
entender do Mistério [eucarístico], todavia também a palavra da
Escritura, o ensinamento de Deus, é verdadeiramente o corpo de
Cristo e o seu sangue. Quando vamos receber o Mistério
[eucarístico], se cair uma migalha sentimo-nos perdidos. E, quando
estamos a escutar a Palavra de Deus e nos é derramada nos ouvidos a
Palavra de Deus que é carne de Cristo e seu sangue, se nos
distrairmos com outra coisa, não incorremos em grande perigo?».[199]
Realmente presente nas espécies do pão e do vinho, Cristo está
presente, de modo análogo, também na Palavra proclamada na liturgia.
Por isso, aprofundar o sentido da sacramentalidade da Palavra de
Deus pode favorecer uma maior compreensão unitária do mistério da
revelação em «acções e palavras intimamente relacionadas»,[200]
sendo de proveito à vida espiritual dos fiéis e à acção pastoral da
Igreja.
A Sagrada
Escritura e o Leccionário
57. Ao acentuar o nexo
entre Palavra e Eucaristia, o Sínodo quis justamente evocar também
alguns aspectos da celebração inerentes ao serviço da Palavra. Quero
mencionar, em primeiro lugar, a importância do Leccionário. A
reforma desejada pelo
Concílio Vaticano II[201]
mostrou os seus frutos, tornando mais rico o acesso à Sagrada
Escritura que é oferecida abundantemente sobretudo nas liturgias do
domingo. A estrutura actual, além de apresentar com frequência os
textos mais importantes da Escritura, favorece a compreensão da
unidade do plano divino, através da correlação entre as leituras do
Antigo e do Novo Testamento, «centrada em Cristo e no seu mistério
pascal».[202] Certas
dificuldades que se sentem ao querer identificar as relações entre
as leituras dos dois Testamentos devem ser consideradas à luz da
leitura canónica, ou seja, da unidade intrínseca da Bíblia inteira.
Onde se sentir a necessidade, os organismos competentes podem prover
à publicação de subsídios que tornem mais fácil compreender o nexo
entre as leituras propostas pelo Leccionário, que devem ser todas
proclamadas na assembleia litúrgica, como previsto pela liturgia do
dia. Eventuais problemas e dificuldades sejam assinalados à
Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.
Além disso, não devemos
esquecer que o Leccionário actual do rito latino tem também um
significado ecuménico, visto que é utilizado e apreciado mesmo por
confissões em comunhão ainda não plena com a Igreja Católica. De
modo diverso se apresenta o problema do Leccionário nas liturgias
das Igrejas Católicas Orientais, que o Sínodo pede para ser
«examinado com autoridade»[203]
segundo a tradição própria e as competências das Igrejas sui
iuris e tendo em conta também o contexto ecuménico.
Proclamação
da Palavra e ministério do leitorado
58. Na assembleia
sinodal sobre a Eucaristia, já se tinha pedido maior cuidado com a
proclamação da Palavra de Deus.[204]
Como é sabido, enquanto o Evangelho é proclamado pelo sacerdote ou
pelo diácono, a primeira e a segunda leitura na tradição latina são
proclamadas pelo leitor encarregado, homem ou mulher. Quero aqui
fazer-me eco dos Padres sinodais que sublinharam, também naquela
circunstância, a necessidade de cuidar, com uma adequada formação,[205]
o exercício da função de leitor na celebração litúrgica[206]
e de modo particular o ministério do leitorado que enquanto tal, no
rito latino, é ministério laical. É necessário que os leitores
encarregados de tal serviço, ainda que não tenham recebido a
instituição no mesmo, sejam verdadeiramente idóneos e preparados com
empenho. Tal preparação deve ser não apenas bíblica e litúrgica mas
também técnica: «A formação bíblica deve levar os leitores a saberem
enquadrar as leituras no seu contexto e a identificarem o centro do
anúncio revelado à luz da fé. A formação litúrgica deve comunicar
aos leitores uma certa facilidade em perceber o sentido e a
estrutura da liturgia da Palavra e os motivos da relação entre a
liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A preparação técnica
deve tornar os leitores cada vez mais idóneos na arte de lerem em
público tanto com a simples voz natural, como com a ajuda dos
instrumentos modernos de amplificação sonora».[207]
A
importância da homilia
59. «As tarefas e
funções que competem a cada um relativamente à Palavra de Deus são
diversas: aos fiéis compete ouvi-la e meditá-la, enquanto a sua
exposição cabe somente àqueles que, em virtude da Ordem sacra,
receberam a tarefa do magistério, ou àqueles a quem é confiado o
exercício deste ministério»,[208]
ou seja, bispos, presbíteros e diáconos. Daqui se compreende a
atenção particular que, no Sínodo, foi dispensada ao tema da homilia.
Já na Exortação apostólica pós-sinodal
Sacramentum caritatis, recordei como, «pensando na
importância da palavra de Deus, surge a necessidade de melhorar a
qualidade da homilia; de facto, “esta constitui parte integrante da
acção litúrgica”, cuja função é favorecer uma compreensão e eficácia
mais ampla da Palavra de Deus na vida dos fiéis».[209]
A homilia constitui uma actualização da mensagem da Sagrada
Escritura, de tal modo que os fiéis sejam levados a descobrir a
presença e a eficácia da Palavra de Deus no momento actual da sua
vida. Aquela deve levar à compreensão do mistério que se celebra;
convidar para a missão, preparando a assembleia para a profissão de
fé, a oração universal e a liturgia eucarística. Consequentemente
aqueles que, por ministério específico, estão incumbidos da pregação
tenham verdadeiramente a peito esta tarefa. Devem-se evitar tanto
homilias genéricas e abstractas que ocultam a simplicidade da
Palavra de Deus, como inúteis divagações que ameaçam atrair a
atenção mais para o pregador do que para o coração da mensagem
evangélica. Deve resultar claramente aos fiéis que aquilo que o
pregador tem a peito é mostrar Cristo, que deve estar no centro de
cada homilia. Por isso, é preciso que os pregadores tenham
familiaridade e contacto assíduo com o texto sagrado;[210]
preparem-se para a homilia na meditação e na oração, a fim de
pregarem com convicção e paixão. A assembleia sinodal exortou a ter
presente as seguintes perguntas: «O que dizem as leituras
proclamadas? O que dizem a mim pessoalmente? O que devo dizer à
comunidade, tendo em conta a sua situação concreta?».[211]
O pregador deve deixar-se «interpelar primeiro pela Palavra de Deus
que anuncia»,[212]
porque – como diz Santo Agostinho – «seguramente fica sem fruto
aquele que prega exteriormente a Palavra de Deus sem a escutar no
seu íntimo».[213]
Cuide-se, com atenção particular, a homilia dos domingos e
solenidades; e mesmo durante a semana nas Missas cum populo,
quando possível, não se deixe de oferecer breves reflexões,
apropriadas à situação, para ajudar os fiéis a acolherem e tornarem
fecunda a Palavra escutada.
Conveniência de um Directório homilético
60. Pregar de modo
adequado referindo-se ao Leccionário é verdadeiramente uma arte que
deve ser cultivada. Por isso, dando continuidade à solicitação feita
no Sínodo anterior,[214]
peço às autoridades competentes que, correlativamente ao Compêndio
Eucarístico,[215] se
pense também em instrumentos e subsídios adequados para ajudar os
ministros a desempenhar da melhor forma possível a sua tarefa, como,
por exemplo, um Directório sobre a homilia, de modo que os
pregadores possam encontrar nele uma ajuda útil a fim de se
prepararem no exercício do ministério. E depois, como nos lembra São
Jerónimo, a pregação deve ser acompanhada pelo testemunho da própria
vida: «Que as tuas acções não desmintam as tuas palavras, para que
não aconteça que, quando tu pregares na igreja, alguém comente no
seu íntimo: “Então porque é que tu não ages assim?” (…) No sacerdote
de Cristo, devem estar de acordo a mente e a palavra».[216]
Palavra de
Deus, Reconciliação e Unção dos Doentes
61. Embora no centro da
relação entre Palavra de Deus e Sacramentos esteja indubitavelmente
a Eucaristia, todavia é bom sublinhar a importância da Sagrada
Escritura também nos outros Sacramentos, particularmente nos
Sacramentos de cura: a Reconciliação ou Penitência e a Unção dos
Doentes. Nestes Sacramentos, muitas vezes é negligenciada a
referência à Sagrada Escritura, quando, ao contrário, é necessário
dar-lhe o espaço que lhe compete. De facto, nunca se deve esquecer
que «a Palavra de Deus é palavra de reconciliação, porque nela Deus
reconcilia consigo todas as coisas (cf. 2 Cor 5, 18-20; Ef
1, 10). O perdão misericordioso de Deus, encarnado em Jesus,
reabilita o pecador».[217]
Pela Palavra de Deus, «o fiel é iluminado para poder conhecer os
seus pecados e é chamado à conversão e à confiança na misericórdia
de Deus».[218] Para
que se aprofunde a força reconciliadora da Palavra de Deus,
recomenda-se que o indivíduo penitente se prepare para a confissão
meditando um trecho apropriado da Sagrada Escritura e possa começar
a confissão com a leitura ou a escuta de uma advertência bíblica,
como aliás está previsto no próprio ritual. Depois, ao manifestar a
sua contrição, é bom que o penitente utilize «uma oração composta de
palavras da Sagrada Escritura»,[219]
prevista pelo ritual. Sempre que possível, seria bom que, em
momentos particulares do ano ou quando houver oportunidade, a
confissão individual da multidão de penitentes tenha lugar no âmbito
de celebrações penitenciais, como previsto pelo ritual, no respeito
das várias tradições litúrgicas, para se poder dar amplo espaço à
celebração da Palavra com o uso de leituras apropriadas.
Passando ao sacramento
da Unção dos Doentes, não se esqueça que «a força salutar da Palavra
de Deus é apelo vivo a uma conversão pessoal constante do próprio
ouvinte».[220] A
Sagrada Escritura contém numerosas páginas de conforto, amparo e
cura, que se devem à intervenção de Deus. Em particular, recorde-se
a atenção dada por Jesus aos doentes e como Ele mesmo, Verbo de Deus
encarnado, carregou as nossas dores e sofreu por amor do homem,
dando assim sentido à doença e à morte. É bom que, nas paróquias e
sobretudo nos hospitais, se celebre – desde que as circunstâncias o
permitam – o Sacramento dos Doentes de forma comunitária. Em tais
ocasiões, seja dado amplo espaço à celebração da Palavra e ajudem-se
os fiéis doentes a viver com fé a própria condição de sofrimento, em
união com o Sacrifício redentor de Cristo que nos liberta do mal.
Palavra de
Deus e Liturgia das Horas
62. Entre as formas de
oração que exaltam a Sagrada Escritura, conta-se, sem dúvida, a
Liturgia das Horas. Os Padres sinodais afirmaram que esta constitui
«uma forma privilegiada de escuta da Palavra de Deus, porque põe os
fiéis em contacto com a Sagrada Escritura e com a Tradição viva da
Igreja».[221] Antes
de mais nada, há que lembrar a profunda dignidade teológica e
eclesial desta oração. De facto, «na Liturgia das Horas, a Igreja
exerce a função sacerdotal da sua Cabeça, “oferecendo
ininterruptamente (1 Ts 5, 17) a Deus o sacrifício de louvor,
ou seja, o fruto dos lábios que glorificam o seu nome (cf. Hb
13, 15)”. Esta oração é a “voz da Esposa a falar ao Esposo e também
a oração que o próprio Cristo, unido ao seu Corpo, eleva ao Pai”».[222]
A este propósito, o
Concílio Vaticano II afirmara: «Todos os que rezam assim,
cumprem, por um lado, a obrigação própria da Igreja, e, por outro,
participam na imensa honra da Esposa de Cristo, porque estão em nome
da Igreja, diante do trono de Deus, a louvar o Senhor».[223]
Na Liturgia das Horas, enquanto oração pública da Igreja,
manifesta-se o ideal cristão de santificação do dia inteiro, ritmado
pela escuta da Palavra de Deus e pela oração dos Salmos, de modo que
toda a actividade encontre o seu ponto de referência no louvor
prestado a Deus.
Aqueles que, em virtude
do próprio estado de vida, são obrigados a rezar a Liturgia das
Horas, vivam fielmente tal compromisso em benefício de toda a
Igreja. Os bispos, os sacerdotes e os diáconos aspirantes ao
sacerdócio, que receberam da Igreja o mandato de a celebrar, têm a
obrigação de rezar diariamente todas as Horas.[224]
Relativamente à obrigatoriedade desta liturgia nas Igrejas Orientais
Católicas sui iuris, siga-se o que está indicado no direito
próprio.[225] Além
disso, encorajo as comunidades de vida consagrada a serem exemplares
na celebração da Liturgia das Horas, a fim de poderem constituir um
ponto de referência e inspiração para a vida espiritual e pastoral
de toda a Igreja.
O Sínodo exprimiu o
desejo de uma maior difusão no Povo de Deus desta forma de oração,
especialmente a recitação de Laudes e Vésperas. Este incremento não
deixará de fazer crescer nos fiéis a familiaridade com a Palavra de
Deus. Saliente-se também o valor da Liturgia das Horas prevista para
as Primeiras Vésperas do domingo e das solenidades, particularmente
nas Igrejas Orientais Católicas. Com tal finalidade, recomendo que,
onde for possível, as paróquias e as comunidades de vida religiosa
favoreçam esta oração com a participação dos fiéis.
Palavra de
Deus e Cerimonial das Bênçãos
63. No uso do
Cerimonial das Bênçãos, preste-se atenção também ao espaço previsto
para a proclamação, a escuta e a explicação da Palavra de Deus,
através de breves advertências. Com efeito, o gesto da bênção, nos
casos previstos pela Igreja e quando pedido pelos fiéis, não deve
aparecer isolado em si mesmo, mas relacionado, no grau que lhe é
próprio, com a vida litúrgica do Povo de Deus. Neste sentido, a
bênção, como verdadeiro sinal sagrado, «adquire sentido e eficácia
da proclamação da Palavra de Deus».[226]
Por isso, é importante aproveitar também estas circunstâncias para
suscitar nos fiéis fome e sede de toda a palavra que sai da boca de
Deus (cf. Mt 4, 4).
Sugestões e
propostas concretas para a animação litúrgica
64. Depois de ter
lembrado alguns elementos fundamentais da relação entre Liturgia e
Palavra de Deus, quero agora assumir e valorizar algumas propostas e
sugestões que os Padres sinodais recomendaram para favorecer, no
Povo de Deus, uma crescente familiaridade com a Palavra de Deus no
âmbito das acções litúrgicas ou de algum modo relacionadas com elas.
a) Celebrações da Palavra de Deus
65. Os Padres sinodais
exortaram todos os Pastores a difundir, nas comunidades a eles
confiadas, os momentos de celebração da Palavra:[227]
são ocasiões privilegiadas de encontro com o Senhor. Por isso, tal
prática não pode deixar de trazer grande proveito aos fiéis, e deve
considerar-se um elemento importante da pastoral litúrgica. Estas
celebrações assumem particular relevância como preparação para a
Eucaristia dominical, de modo que os fiéis tenham possibilidade de
penetrar melhor na riqueza do Leccionário para meditar e rezar a
Sagrada Escritura, sobretudo nos tempos litúrgicos fortes do Advento
e Natal, da Quaresma e Páscoa. Entretanto a celebração da Palavra de
Deus é vivamente recomendada nas comunidades onde não é possível,
por causa da escassez de sacerdotes, celebrar o Sacrifício
Eucarístico nos dias festivos de preceito. Tendo em conta as
indicações já expressas na Exortação apostólica pós-sinodal
Sacramentum caritatis sobre as assembleias dominicais à
espera de sacerdote,[228]
recomendo que sejam redigidos pelas competentes autoridades
directórios rituais, valorizando a experiência das Igrejas
Particulares. Assim, em tais situações, hão-de favorecer-se
celebrações da Palavra que alimentem a fé dos fiéis, mas evitando
que as mesmas sejam confundidas com celebrações eucarísticas; «devem
antes tornar-se ocasiões privilegiadas de oração a Deus para que
mande sacerdotes santos segundo o seu Coração».[229]
Além disso, os Padres
sinodais convidaram a celebrar a Palavra de Deus também por ocasião
de peregrinações, festas particulares, missões populares, retiros
espirituais e dias especiais de penitência, reparação e perdão. No
que se refere às diversas formas de piedade popular, embora não
sejam actos litúrgicos nem se devam confundir com as celebrações
litúrgicas, todavia é bom que se inspirem nelas e sobretudo que dêem
espaço adequado à proclamação e escuta da Palavra de Deus; de facto,
«a piedade popular encontrará nas palavras da Bíblia uma fonte
inesgotável de inspiração, modelos insuperáveis de oração e fecundas
propostas de diversos temas».[230]
b) A
Palavra e o silêncio
66. Várias intervenções
dos Padres sinodais insistiram sobre o valor do silêncio para a
recepção da Palavra de Deus na vida dos fiéis.[231]
De facto, a palavra pode ser pronunciada e ouvida apenas no
silêncio, exterior e interior. O nosso tempo não favorece o
recolhimento e, às vezes, fica-se com a impressão de ter medo de se
separar, por um só momento, dos instrumentos de comunicação de
massa. Por isso, hoje é necessário educar o Povo de Deus para o
valor do silêncio. Redescobrir a centralidade da Palavra de Deus na
vida da Igreja significa também redescobrir o sentido do
recolhimento e da tranquilidade interior. A grande tradição
patrística ensina-nos que os mistérios de Cristo estão ligados ao
silêncio[232] e só
nele é que a Palavra pode encontrar morada em nós, como aconteceu em
Maria, mulher indivisivelmente da Palavra e do silêncio. As nossas
liturgias devem facilitar esta escuta autêntica: Verbo crescente,
verba deficiunt.[233]
Que este valor brilhe
particularmente na Liturgia da Palavra, que «deve ser celebrada de
modo a favorecer a meditação».[234]
O silêncio, quando previsto, deve ser considerado «como parte da
celebração».[235] Por
isso, exorto os Pastores a estimularem os momentos de recolhimento,
nos quais, com a ajuda do Espírito Santo, a Palavra de Deus é
acolhida no coração.
c) Proclamação
solene da Palavra de Deus
67. Outra sugestão
feita pelo Sínodo foi a de solenizar, sobretudo em ocorrências
litúrgicas relevantes, a proclamação da Palavra, especialmente do
Evangelho, utilizando o Evangeliário, conduzido processionalmente
durante os ritos iniciais e depois levado ao ambão pelo diácono ou
por um sacerdote para a proclamação. Deste modo ajuda-se o Povo de
Deus a reconhecer que «a leitura do Evangelho constitui o ápice da
própria liturgia da Palavra».[236]
Seguindo as indicações contidas no Ordenamento das Leituras da
Missa, é bom valorizar a proclamação da Palavra de Deus com o
canto, particularmente o Evangelho, de modo especial em determinadas
solenidades. A saudação, o anúncio inicial: «Evangelho de Nosso
Senhor…» e a exclamação final «Palavra da salvação», seria bom
proferi-los em canto para evidenciar a importância do que é lido.[237]
d) A
Palavra de Deus no templo cristão
68. Para favorecer a
escuta da Palavra de Deus, não se devem menosprezar os meios que
possam ajudar os fiéis a prestar maior atenção. Neste sentido, é
necessário que, nos edifícios sagrados, nunca se descuide a
acústica, no respeito das normas litúrgicas e arquitectónicas. «Na
construção das igrejas, os Bispos, valendo-se da devida ajuda,
procurem que sejam locais adequados à proclamação da Palavra, à
meditação e à celebração eucarística. Os espaços sagrados, mesmo
fora da acção litúrgica, revistam-se de eloquência, apresentando o
mistério cristão relacionado com a Palavra de Deus».[238]
Uma atenção especial
seja dada ao ambão, enquanto lugar litúrgico donde é
proclamada a Palavra de Deus. Deve estar colocado em lugar bem
visível, para onde se dirija espontaneamente a atenção dos fiéis
durante a liturgia da Palavra. É bom que seja fixo, esculturalmente
em harmonia estética com o altar, de modo a representar mesmo
visivelmente o sentido teológico da dupla mesa da Palavra e da
Eucaristia. A partir do ambão, são proclamadas as leituras, o
salmo responsorial e o Precónio pascal; de lá podem ser feitas
também a homilia e a leitura da oração dos fiéis.[239]
Além disso, os Padres
sinodais sugerem que, nas igrejas, haja um local de honra onde se
possa colocar a Sagrada Escritura mesmo fora da celebração.[240]
Realmente é bom que o livro onde está contida a Palavra de Deus
tenha dentro do templo cristão um lugar visível e de honra, mas sem
tirar a centralidade que compete ao Sacrário que contém o Santíssimo
Sacramento.[241]
e) Exclusividade dos textos bíblicos na liturgia
69. O Sínodo reafirmou
vivamente também aquilo que, aliás, já está estabelecido pela norma
litúrgica da Igreja,[242]
isto é, que as leituras tiradas da Sagrada Escritura nunca sejam
substituídas por outros textos, por mais significativos que
estes possam parecer do ponto de vista pastoral ou espiritual: «Nenhum
texto de espiritualidade ou de literatura pode atingir o valor e a
riqueza contida na Sagrada Escritura que é Palavra de Deus».[243]
Trata-se de uma disposição antiga da Igreja que se deve manter.[244]
Face a alguns abusos, já o Papa
João Paulo II lembrara a importância de nunca se substituir a
Sagrada Escritura por outras leituras.[245]
Recorde-se que também o Salmo Responsorial é Palavra de Deus,
pela qual respondemos à voz do Senhor e por isso não deve ser
substituído por outros textos; entretanto é muito oportuno poder
proclamá-lo de forma cantada.
f) Canto
litúrgico biblicamente inspirado
70. No âmbito da
valorização da Palavra de Deus durante a celebração litúrgica,
tenha-se presente também o canto nos momentos previstos pelo próprio
rito, favorecendo o canto de clara inspiração bíblica capaz de
exprimir a beleza da Palavra divina por meio de um harmonioso acordo
entre as palavras e a música. Neste sentido, é bom valorizar aqueles
cânticos que a tradição da Igreja nos legou e que respeitam este
critério; penso particularmente na importância do canto gregoriano.[246]
g) Particular atenção aos cegos e aos surdos
71. Neste contexto,
queria também recordar que o Sínodo recomendou uma atenção
particular àqueles que, por causa da própria condição, sentem
dificuldade em participar activamente na liturgia, como por exemplo
os cegos e os surdos. Na medida do possível, encorajo as comunidades
cristãs a providenciarem instrumentos adequados para ir ao encontro
da dificuldade que padecem estes irmãos e irmãs, para que lhes seja
possível também estabelecer um contacto vivo com a Palavra do Senhor.[247]
A palavra de Deus na
vida eclesial
Encontrar a
Palavra de Deus na Sagrada Escritura
72. Se é verdade que a
liturgia constitui o lugar privilegiado para a proclamação, escuta e
celebração da Palavra de Deus, é igualmente verdade que este
encontro deve ser preparado nos corações dos fiéis e sobretudo por
eles aprofundado e assimilado. De facto, a vida cristã caracteriza-se
essencialmente pelo encontro com Jesus Cristo que nos chama a segui-Lo.
Por isso, o Sínodo dos Bispos afirmou várias vezes a importância da
pastoral nas comunidades cristãs como âmbito apropriado onde
percorrer um itinerário pessoal e comunitário relativo à Palavra de
Deus, de modo que esta esteja verdadeiramente no fundamento da vida
espiritual. Juntamente com os Padres sinodais, expresso o vivo
desejo de que floresça «uma nova estação de maior amor pela Sagrada
Escritura da parte de todos os membros do Povo de Deus, de modo que,
a partir da sua leitura orante e fiel no tempo, se aprofunde a
ligação com a própria pessoa de Jesus».[248]
Na história da Igreja,
não faltam recomendações dos Santos sobre a necessidade de conhecer
a Escritura para crescer no amor de Cristo. Trata-se de um dado
particularmente evidente nos Padres da Igreja. São Jerónimo, grande
«enamorado» da Palavra de Deus, interrogava-se: «Como seria possível
viver sem o conhecimento das Escrituras, se é por elas que se
aprende a conhecer o próprio Cristo, que é a vida dos crentes?».[249]
Estava bem ciente de que a Bíblia é o instrumento «pelo qual
diariamente Deus fala aos crentes».[250]
Eis os conselhos que ele dava a Leta, uma matrona romana, para a
educação da filha: «Assegura-te de que ela estude diariamente alguma
passagem da Escritura. (…) À oração faça seguir a leitura, e à
leitura a oração. (…) Que em vez das jóias e dos vestidos de seda,
ame os Livros divinos».[251]
Permanece válido para nós aquilo que São Jerónimo escrevia ao
sacerdote Nepociano: «Lê com muita frequência as Escrituras divinas;
mais ainda, que as tuas mãos nunca abandonem o Livro sagrado.
Aprende nele o que deves ensinar».[252]
Seguindo o exemplo deste grande Santo que dedicou a sua vida ao
estudo da Bíblia, tendo dado à Igreja a tradução latina chamada
Vulgata, e de todos os Santos que colocaram no centro da sua
vida espiritual o encontro com Cristo, renovemos o nosso compromisso
de aprofundar a Palavra que Deus deu à Igreja; poderemos assim
tender para aquela «medida alta da vida cristã ordinária»,[253] desejada
pelo Papa
João Paulo II no início do terceiro milénio cristão, que se
alimenta constantemente na escuta da Palavra de Deus.
73. A
animação bíblica da pastoral
Nesta linha, o Sínodo
convidou a um esforço pastoral particular para que a Palavra de Deus
apareça em lugar central na vida da Igreja, recomendando que «se
incremente a “pastoral bíblica”, não em justaposição com outras
formas da pastoral mas como animação bíblica da pastoral inteira».[254]
Não se trata simplesmente de acrescentar qualquer encontro na
paróquia ou na diocese, mas de verificar que, nas actividades
habituais das comunidades cristãs, nas paróquias, nas associações e
nos movimentos, se tenha realmente a peito o encontro pessoal com
Cristo que Se comunica a nós na sua Palavra. Dado que «a ignorância
das Escrituras é a ignorância de Cristo»,[255]
então podemos esperar que a animação bíblica de toda a pastoral
ordinária e extraordinária levará a um maior conhecimento da Pessoa
de Cristo, Revelador do Pai e plenitude da Revelação divina.
Por isso exorto os
pastores e os fiéis a terem em conta a importância desta animação:
será o modo melhor também de enfrentar alguns problemas pastorais
referidos durante a assembleia sinodal, ligados por exemplo à
proliferação de seitas, que difundem uma leitura deformada e
instrumentalizada da Sagrada Escritura. Quando não se formam os
fiéis num conhecimento da Bíblia conforme à fé da Igreja no sulco da
sua Tradição viva, deixa-se efectivamente um vazio pastoral, onde
realidades como as seitas podem encontrar fácil terreno para lançar
raízes. Por isso é necessário prover também a uma preparação
adequada dos sacerdotes e dos leigos, para poderem instruir o Povo
de Deus na genuína abordagem das Escrituras.
Além disso, como foi
sublinhado durante os trabalhos sinodais, é bom que, na actividade
pastoral, se favoreça também a difusão de pequenas comunidades,
«formadas por famílias ou radicadas nas paróquias ou ainda ligadas
aos diversos movimentos eclesiais e novas comunidades»,[256]
nas quais se promova a formação, a oração e o conhecimento da Bíblia
segundo a fé da Igreja.
Dimensão
bíblica da catequese
74. Um momento
importante da animação pastoral da Igreja, onde se pode
sapientemente descobrir a centralidade da Palavra de Deus, é a
catequese, que, nas suas diversas formas e fases, sempre deve
acompanhar o Povo de Deus. O encontro dos discípulos de Emaús com
Jesus, descrito pelo evangelista Lucas (cf. L c 24, 13-35),
representa em certo sentido o modelo de uma catequese em cujo centro
está a «explicação das Escrituras», que somente Cristo é capaz de
dar (cf. L c 24, 27-28), mostrando o seu cumprimento em Si
mesmo.[257] Assim,
renasce a esperança, mais forte do que qualquer revés, que faz
daqueles discípulos testemunhas convictas e credíveis do
Ressuscitado.
No
Directório Geral da Catequese, encontramos válidas
indicações para animar biblicamente a catequese e, para elas, de bom
grado remeto.[258]
Neste momento, desejo principalmente sublinhar que a catequese «tem
de ser impregnada e embebida de pensamento, espírito e atitudes
bíblicas e evangélicas, mediante um contacto assíduo com os próprios
textos sagrados; e recordar que a catequese será tanto mais rica e
eficaz quanto mais ler os textos com a inteligência e o coração da
Igreja»[259] e quanto
mais se inspirar na reflexão e na vida bimilenária da mesma Igreja.
Por isso, deve-se encorajar o conhecimento das figuras,
acontecimentos e expressões fundamentais do texto sagrado; com tal
finalidade, pode ser útil a memorização inteligente de
algumas passagens bíblicas particularmente expressivas dos mistérios
cristãos. A actividade catequética implica sempre abeirar-se das
Escrituras na fé e na Tradição da Igreja, de modo que aquelas
palavras sejam sentidas vivas, como Cristo está vivo hoje onde duas
ou três pessoas se reúnem em seu nome (cf. Mt 18, 20). A
catequese deve comunicar com vitalidade a história da salvação e os
conteúdos da fé da Igreja, para que cada fiel reconheça que a sua
vida pessoal pertence também àquela história.
Nesta perspectiva, é
importante sublinhar a relação entre a Sagrada Escritura e o
Catecismo da Igreja Católica, como afirma o
Directório Geral da Catequese: «A Sagrada Escritura, como
“Palavra de Deus escrita sob a inspiração do Espírito Santo”, e o
Catecismo da Igreja Católica, enquanto importante expressão
actual da Tradição viva da Igreja e norma segura para o ensino da fé,
são chamados a fecundar a catequese na Igreja contemporânea, cada um
segundo o seu próprio modo e a sua autoridade específica».[260]
Formação
bíblica dos cristãos
75. Para se alcançar o
objectivo desejado pelo Sínodo de conferir maior carácter bíblico a
toda a pastoral da Igreja, é necessário que exista uma adequada
formação dos cristãos e, em particular, dos catequistas. A este
propósito, é preciso prestar atenção ao apostolado bíblico,
método muito válido para se atingir tal finalidade, como demonstra a
experiência eclesial. Além disso, os Padres sinodais recomendaram
que se estabeleçam, possivelmente através da valorização de
estruturas académicas já existentes, centros de formação para leigos
e missionários, nos quais se aprenda a compreender, viver e anunciar
a Palavra de Deus e, onde houver necessidade, constituam-se
Institutos especializados em estudos bíblicos a fim de dotarem os
exegetas de uma sólida compreensão teológica e uma adequada
sensibilidade para os ambientes da sua missão.[261]
76. A
Sagrada Escritura nos grandes encontros eclesiais
Entre as múltiplas
iniciativas que podem ser tomadas, o Sínodo sugere que nos
encontros, tanto a nível diocesano como nacional ou internacional,
se ponha em maior evidência a importância da Palavra de Deus, da sua
escuta e da leitura crente e orante da Bíblia. Por isso, no âmbito
dos Congressos Eucarísticos, nacionais e internacionais, das
Jornadas Mundiais da Juventude e de outros encontros poder-se-á
louvavelmente reservar maior espaço para celebrações da Palavra e
para momentos de formação de carácter bíblico.[262]
Palavra de
Deus e vocações
77. O Sínodo, quando
sublinhou a exigência intrínseca que tem a fé de aprofundar a
relação com Cristo, Palavra de Deus entre nós, quis também
evidenciar que esta Palavra chama cada um em termos pessoais,
revelando assim que a própria vida é vocação em relação a
Deus. Isto significa que quanto mais aprofundarmos a nossa relação
pessoal com o Senhor Jesus, tanto mais nos damos conta de que Ele
nos chama à santidade, através de opções definitivas, pelas quais a
nossa vida responde ao seu amor, assumindo funções e ministérios
para edificar a Igreja. É neste horizonte que se entendem os
convites feitos pelo Sínodo a todos os cristãos para aprofundarem a
relação com a Palavra de Deus, não só como baptizados mas também
enquanto chamados a viver segundo os diversos estados de vida. Aqui
tocamos um dos pontos fundamentais da doutrina do
Concílio Vaticano II, que sublinhou a vocação à santidade de
todo o fiel, cada um no seu próprio estado de vida.[263]
Na Sagrada Escritura, encontramos revelada a nossa vocação à
santidade: «Sede santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo»
(cf. Lv 11, 44; 19, 2; 20, 7). Depois São Paulo põe em
evidência a sua raiz cristológica: o Pai, em Cristo, «escolheu-nos,
antes da constituição do mundo, para sermos santos e imaculados
diante dos seus olhos» (Ef 1, 4). Deste modo podemos tomar
como dirigida a cada um de nós a saudação dele aos irmãos e irmãs da
comunidade de Roma: «A todos os amados de Deus (…), chamados à
santidade: Graça e paz vos sejam dadas da parte de Deus, nosso Pai,
e da do Senhor Jesus Cristo» (Rm 1, 7).
a) Palavra
de Deus e Ministros Ordenados
78. Dirigindo-me em
primeiro lugar aos Ministros Ordenados da Igreja, recordo-lhes o que
afirmou o Sínodo: «A Palavra de Deus é indispensável para formar o
coração de um bom pastor, ministro da Palavra».[264]
Bispos, presbíteros e diáconos não podem de forma alguma pensar
viver a sua vocação e missão sem um decidido e renovado compromisso
de santificação, que tem um dos seus pilares no contacto com a
Bíblia.
79. Àqueles que foram
chamados ao episcopado e que são os anunciadores primeiros e
com maior autoridade da Palavra, desejo reafirmar o que o Papa
João Paulo II deixou escrito na Exortação apostólica pós-sinodal
Pastores gregis: Para nutrir e fazer crescer a vida
espiritual, o Bispo deve colocar sempre em «primeiro lugar a leitura
e a meditação da Palavra de Deus. Cada Bispo deverá sempre
confiar-se e sentir-se confiado “a Deus e à palavra da sua graça que
tem o poder de construir o edifício e de conceder parte na herança
com todos os santificados” (Act 20, 32). Por isso, antes de
ser transmissor da Palavra, o Bispo, como os seus sacerdotes e como
qualquer fiel – mais ainda, como a própria Igreja – deve ser ouvinte
da Palavra. Deve de certo modo estar “dentro” da Palavra, para
deixar-se guardar e nutrir dela como de um ventre materno».[265]
À imitação de Maria, Virgo audiens e Rainha dos Apóstolos,
recomendo a todos os irmãos no episcopado a leitura pessoal
frequente e o estudo assíduo da Sagrada Escritura.
80. Quanto aos
sacerdotes, quero apontar-lhes as palavras do Papa
João Paulo II, quando, na Exortação apostólica pós-sinodal
Pastores dabo vobis, recordou que, «antes de mais, o
sacerdote é ministro da Palavra de Deus, é consagrado e
enviado a anunciar a todos o Evangelho do Reino, chamando cada homem
à obediência da fé e conduzindo os crentes a um conhecimento e
comunhão sempre mais profundos do mistério de Deus, revelado e
comunicado a nós em Cristo. Por isso, o próprio sacerdote deve ser o
primeiro a desenvolver uma grande familiaridade pessoal com a
Palavra de Deus: não basta conhecer o aspecto linguístico ou
exegético, sem dúvida necessário; é preciso abeirar-se da Palavra
com coração dócil e orante, a fim de que ela penetre a fundo nos
seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade – “o
pensamento de Cristo” (1 Cor 2, 16)».[266]
E consequentemente as suas palavras, as suas opções e atitudes devem
ser cada vez mais uma transparência, um anúncio e um testemunho do
Evangelho; «só “permanecendo” na Palavra, é que o presbítero se
tornará perfeito discípulo do Senhor, conhecerá a verdade e será
realmente livre».[267]
Em suma, a vocação ao
sacerdócio requer que sejam consagrados «na verdade».
O próprio Jesus formula esta exigência referindo-se aos seus
discípulos: «Consagra-os na verdade. A tua palavra é a verdade.
Assim como Tu Me enviaste ao mundo, também Eu os envio ao mundo» (Jo
17, 17-18). Os discípulos, de certo modo, «são atraídos para a
intimidade de Deus por meio da sua imersão na Palavra divina. Esta
é, por assim dizer, o banho que os purifica, o poder criador que os
transforma no ser de Deus».[268]
E visto que o próprio Cristo é a Palavra de Deus feita carne (cf.
Jo 1, 14), é «a Verdade» (Jo 14, 6), então a oração de
Jesus ao Pai «consagra-os na verdade» quer dizer fundamentalmente: «Torna-os
um só comigo. Une-os a Mim. Atrai-os para dentro de Mim. E de facto,
em última análise, há apenas um único sacerdote da Nova Aliança: o
próprio Jesus Cristo».[269]
É necessário, pois, que os sacerdotes renovem sempre mais
profundamente em si a consciência desta realidade.
81. Quero referir-me
também ao lugar da Palavra de Deus na vida daqueles que são chamados
ao diaconado, não só como grau prévio da Ordem do
Presbiterado, mas também enquanto serviço permanente. O
Directório para o diaconado permanente afirma que «da
identidade teológica do diácono derivam com clareza os traços da sua
espiritualidade específica, que se apresenta essencialmente como
espiritualidade de serviço. O modelo por excelência é Cristo servo,
que viveu totalmente ao serviço de Deus, para o bem dos homens».[270]
Nesta perspectiva, compreende-se como, nas várias dimensões do
ministério diaconal, um «elemento caracterizador da espiritualidade
diaconal seja a Palavra de Deus, que o diácono é chamado a anunciar
com autoridade, acreditando naquilo que proclama, ensinando aquilo
que acredita, vivendo aquilo que ensina».[271]
Por isso recomendo aos diáconos que incrementem uma leitura crente
da Sagrada Escritura na própria vida com o estudo e a oração. Sejam
iniciados na Sagrada Escritura e na sua recta interpretação, na
mútua relação entre a Escritura e a Tradição, e particularmente na
utilização da Escritura na pregação, na catequese e na actividade
pastoral em geral.[272]
b) Palavra
de Deus e candidatos às Ordens Sacras
82. O Sínodo deu
particular atenção ao papel decisivo da Palavra de Deus na vida
espiritual dos candidatos ao sacerdócio ministerial: «Os candidatos
ao sacerdócio devem aprender a amar a Palavra de Deus. Por isso,
seja a Escritura a alma da sua formação teológica, evidenciando a
circularidade indispensável entre exegese, teologia, espiritualidade
e missão».[273] Os
aspirantes ao sacerdócio ministerial são chamados a uma profunda
relação pessoal com a Palavra de Deus, particularmente na lectio
divina, porque é de tal relação que se alimenta a sua vocação: é
com a luz e a força da Palavra de Deus que pode ser descoberta,
compreendida, amada e seguida a respectiva vocação e levada a cabo a
própria missão, alimentando no coração os pensamentos de Deus, de
modo que a fé, como resposta à Palavra, se torne o novo critério de
juízo e avaliação dos homens e das coisas, dos acontecimentos e dos
problemas.[274]
Esta atenção à leitura
orante da Escritura não deve, de modo algum, alimentar uma dicotomia
com o estudo exegético que se requer durante o tempo da formação. O
Sínodo recomendou que os seminaristas sejam concretamente ajudados a
ver a relação entre o estudo bíblico e a oração com a Escritura.
O estudo das Escrituras deve torná-los mais conscientes do mistério
da revelação divina e alimentar uma atitude de resposta orante ao
Senhor que fala. Por sua vez, uma vida autêntica de oração não
poderá deixar de fazer crescer, na alma do candidato, o desejo de
conhecer cada vez mais a Deus que Se revelou na sua Palavra como
amor infinito. Por isso, dever-se-á procurar com o máximo cuidado
que, na vida dos seminaristas, se cultive esta reciprocidade
entre estudo e oração. Para tal objectivo, é útil que os
candidatos sejam iniciados no estudo da Sagrada Escritura segundo
métodos que favoreçam esta abordagem integral.
c) Palavra
de Deus e vida consagrada
83. Relativamente à
vida consagrada, o Sínodo lembrou em primeiro lugar que esta «nasce
da escuta da Palavra de Deus e acolhe o Evangelho como sua norma de
vida».[275] Deste
modo, viver no seguimento de Cristo casto, pobre e obediente é uma
«“exegese” viva da Palavra de Deus».[276]
O Espírito Santo, por cuja virtude foi escrita a Bíblia, é o mesmo
que ilumina «a Palavra de Deus, com nova luz, para os fundadores e
fundadoras. Dela brotou cada um dos carismas e dela cada regra quer
ser expressão»,[277]
dando origem a itinerários de vida cristã marcados pela radicalidade
evangélica.
Desejo lembrar que a
grande tradição monástica sempre teve como factor constitutivo da
própria espiritualidade a meditação da Sagrada Escritura,
particularmente na forma da lectio divina. De igual modo,
hoje, as realidades antigas e novas de especial consagração são
chamadas a ser verdadeiras escolas de vida espiritual onde se há-de
ler as Escrituras segundo o Espírito Santo na Igreja, de modo que
todo o Povo de Deus disso mesmo possa beneficiar. Por isso, o Sínodo
recomenda que nunca falte nas comunidades de vida consagrada uma
sólida formação para a leitura crente da Bíblia.[278]
Desejo fazer-me eco da
solicitude e gratidão que o Sínodo exprimiu pelas formas de vida
contemplativa, que, pelo seu carisma específico, dedicam boa
parte das suas jornadas a imitar a Mãe de Deus que meditava
assiduamente as palavras e os factos do seu Filho (cf. L c 2,
19.51) e Maria de Betânia que, sentada aos pés do Senhor, escutava a
sua palavra (cf. L c 10, 38). Penso de modo particular nos
monges e monjas de clausura que, sob a forma de separação do mundo,
se encontram mais intimamente unidos a Cristo, coração do mundo. A
Igreja tem extrema necessidade do testemunho de quem se compromete a
«nada antepor ao amor de Cristo».[279]
Com frequência, o mundo actual vive demasiadamente absorvido pelas
actividades exteriores, onde corre o risco de se perder. As mulheres
e os homens contemplativos, com a sua vida de oração, de escuta e
meditação da Palavra de Deus lembram-nos que não só de pão vive o
homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus (cf. Mt
4, 4). Por isso, todos os fiéis tenham bem presente que uma tal
forma de vida «indica ao mundo de hoje o que é mais importante e, no
fim de contas, a única coisa decisiva: existe uma razão última pela
qual vale a pena viver, isto é, Deus e o seu amor imperscrutável».[280]
d) Palavra
de Deus e fiéis leigos
84. O Sínodo concentrou
muitas vezes a sua atenção nos fiéis leigos, agradecendo-lhes o
generoso empenho com que difundem o Evangelho nos vários âmbitos da
vida diária: no trabalho, na escola, na família e na educação.[281]
Tal obrigação, que deriva do baptismo, deve poder desenrolar-se
através de uma vida cristã cada vez mais consciente e capaz de dar «razão
da esperança» que vive em nós (cf. 1 Pd 3, 15). Jesus, no
Evangelho de Mateus, indica que «o campo é o mundo, a boa
semente são os filhos do Reino» (13, 38). Estas palavras aplicam-se
de modo particular aos leigos cristãos, que realizam a própria
vocação à santidade com uma vida segundo o Espírito que se exprime
«de forma peculiar na sua inserção nas realidades temporais e
na sua participação nas actividades terrenas».[282]
Precisam de ser formados a discernir a vontade de Deus por meio de
uma familiaridade com a Palavra de Deus, lida e estudada na Igreja,
sob a guia dos legítimos Pastores. Possam eles beber esta formação
nas escolas das grandes espiritualidades eclesiais, em cuja raiz
está sempre a Sagrada Escritura. As próprias dioceses, na medida das
suas possibilidades, proporcionem oportunidades de uma tal formação
aos leigos com particulares responsabilidades eclesiais.[283]
e) Palavra
de Deus, matrimónio e família
85. O Sínodo sentiu
necessidade de sublinhar também a relação entre Palavra de Deus,
matrimónio e família cristã. Com efeito, «com o anúncio da Palavra
de Deus, a Igreja revela à família cristã a sua verdadeira
identidade, o que ela é e deve ser segundo o desígnio do Senhor».[284]
Por isso, nunca se perca de vista que a Palavra de Deus está na
origem do matrimónio (cf. Gn 2, 24) e que o próprio Jesus
quis incluir o matrimónio entre as instituições do seu Reino (cf.
Mt 19, 4-8), elevando a sacramento o que originalmente estava
inscrito na natureza humana. «Na celebração sacramental, o homem e a
mulher pronunciam uma palavra profética de doação recíproca: ser
“uma só carne”, sinal do mistério da união de Cristo e da Igreja
(cf. Ef 5, 31-32)».[285]
A fidelidade à Palavra de Deus leva também a evidenciar que hoje
esta instituição encontra-se, em muitos aspectos, sujeita a ataques
pela mentalidade corrente. Perante a difundida desordem dos
sentimentos e o despontar de modos de pensar que banalizam o corpo
humano e a diferença sexual, a Palavra de Deus reafirma a bondade
originária do ser humano, criado como homem e mulher e chamado ao
amor fiel, recíproco e fecundo.
Do grande mistério
nupcial deriva uma imprescindível responsabilidade dos pais em
relação aos seus filhos. De facto, pertence à autêntica
paternidade e maternidade a comunicação e o testemunho do sentido da
vida em Cristo: através da fidelidade e unidade da vida familiar, os
esposos são, para os seus filhos, os primeiros anunciadores da
Palavra de Deus. A comunidade eclesial deve sustentá-los e ajudá-los
a desenvolverem a oração em família, a escuta da Palavra, o
conhecimento da Bíblia. Por isso, o Sínodo deseja que cada casa
tenha a sua Bíblia e a conserve em lugar digno para poder lê-la
e utilizá-la na oração. A ajuda necessária pode ser fornecida por
sacerdotes, diáconos e leigos bem preparados. O Sínodo recomendou
também a formação de pequenas comunidades entre famílias, onde se
cultive a oração e a meditação em comum de trechos apropriados da
Sagrada Escritura.[286]
Os esposos lembrem-se de que «a Palavra de Deus é um amparo precioso
inclusive nas dificuldades da vida conjugal e familiar».[287]
Neste contexto, quero
evidenciar as recomendações do Sínodo quanto à função das
mulheres relativamente à Palavra de Deus. A contribuição do
«génio feminino» – assim lhe chamava o Papa
João Paulo II[288]
– para o conhecimento da Escritura e para a vida inteira da Igreja é
hoje maior do que no passado e tem a ver com o campo dos próprios
estudos bíblicos. De modo especial, o Sínodo deteve-se sobre o papel
indispensável das mulheres na família, na educação, na catequese e
na transmissão dos valores. Com efeito, elas «sabem suscitar a
escuta da Palavra, a relação pessoal com Deus e comunicar o sentido
do perdão e da partilha evangélica»,[289]
como também ser portadoras de amor, mestras de misericórdia e
construtoras de paz, comunicadoras de calor e humanidade num mundo
que demasiadas vezes se limita a avaliar as pessoas com os critérios
frios da exploração e do lucro.
Leitura
orante da Sagrada Escritura e «lectio divina»
86. O Sínodo insistiu
repetidamente sobre a exigência de uma abordagem orante do texto
sagrado como elemento fundamental da vida espiritual de todo o fiel,
nos diversos ministérios e estados de vida, com particular
referência à lectio divina.[290]
Com efeito, a Palavra de Deus está na base de toda a espiritualidade
cristã autêntica. Esta posição dos Padres sinodais está em sintonia
com o que diz a Constituição dogmática
Dei Verbum: Todos os fiéis «debrucem-se, pois, gostosamente
sobre o texto sagrado, quer através da sagrada Liturgia, rica de
palavras divinas, quer pela leitura espiritual, quer por outros
meios que se vão espalhando tão louvavelmente por toda a parte, com
a aprovação e estímulo dos pastores da Igreja. Lembrem-se, porém,
que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada de oração».[291]
A reflexão conciliar pretendia retomar a grande tradição patrística
que sempre recomendou abeirar-se da Escritura em diálogo com Deus.
Como diz Santo Agostinho: «A tua oração é a tua palavra dirigida a
Deus. Quando lês, é Deus que te fala; quando rezas, és tu que falas
a Deus».[292]
Orígenes, um dos mestres nesta leitura da Bíblia, defende que a
inteligência das Escrituras exige, ainda mais do que o estudo, a
intimidade com Cristo e a oração; realmente é sua convicção que o
caminho privilegiado para conhecer Deus é o amor e de que não existe
uma autêntica scientia Christi sem enamorar-se d’Ele. Na
Carta a Gregório, o grande teólogo alexandrino recomenda: «Dedica-te
à lectio das divinas Escrituras; aplica-te a isto com
perseverança. Empenha-te na lectio com a intenção de crer e
agradar a Deus. Se durante a lectio te encontras diante de
uma porta fechada, bate e ser-te-á aberta por aquele guardião de que
falou Jesus: “O guardião abrir-lha-á”. Aplicando-te assim à
lectio divina, procura com lealdade e inabalável confiança em
Deus o sentido das Escrituras divinas, que nelas amplamente se
encerra. Mas não deves contentar-te com bater e procurar; para
compreender as coisas de Deus, tens necessidade absoluta da
oratio. Precisamente para nos exortar a ela é que o Salvador não
se limitou a dizer: “procurai e encontrareis” e “batei e ser-vos-á
aberto”, mas acrescentou: “pedi e recebereis”».[293]
A este propósito,
porém, deve-se evitar o risco de uma abordagem individualista,
tendo presente que a Palavra de Deus nos é dada precisamente para
construir comunhão, para nos unir na Verdade no nosso caminho para
Deus. Sendo uma Palavra que se dirige a cada um pessoalmente, é
também uma Palavra que constrói comunidade, que constrói a Igreja.
Por isso, o texto sagrado deve-se abordar sempre na comunhão
eclesial. Com efeito, «é muito importante a leitura comunitária,
porque o sujeito vivo da Sagrada Escritura é o Povo de Deus, é a
Igreja. (…) A Escritura não pertence ao passado, porque o seu
sujeito, o Povo de Deus inspirado pelo próprio Deus, é sempre o
mesmo e, portanto, a Palavra está sempre viva no sujeito vivo. Então
é importante ler a Sagrada Escritura e ouvi-la na comunhão da
Igreja, isto é, com todas as grandes testemunhas desta Palavra, a
começar dos primeiros Padres até aos Santos de hoje e ao Magistério
actual».[294]
Por isso, na leitura
orante da Sagrada Escritura, o lugar privilegiado é a Liturgia,
particularmente a Eucaristia, na qual, ao celebrar o Corpo e
o Sangue de Cristo no Sacramento, se actualiza no meio de nós a
própria Palavra. Em certo sentido, a leitura orante pessoal e
comunitária deve ser vivida sempre em relação com a celebração
eucarística. Assim como a adoração eucarística prepara, acompanha e
prolonga a liturgia eucarística,[295]
assim também a leitura orante pessoal e comunitária prepara,
acompanha e aprofunda o que a Igreja celebra com a proclamação da
Palavra no âmbito litúrgico. Colocando em relação tão estreita
lectio e liturgia, podem-se identificar melhor os critérios que
devem guiar esta leitura no contexto da pastoral e da vida
espiritual do Povo de Deus.
87. Nos documentos que
prepararam e acompanharam o Sínodo, falou-se dos vários métodos para
se abeirar, com fruto e na fé, das Sagradas Escrituras. Todavia
prestou-se maior atenção à lectio divina, que «é
verdadeiramente capaz não só de desvendar ao fiel o tesouro da
Palavra de Deus, mas também de criar o encontro com Cristo, Palavra
divina viva».[296]
Quero aqui lembrar, brevemente, os seus passos fundamentais: começa
com a leitura (lectio) do texto, que suscita a interrogação
sobre um autêntico conhecimento do seu conteúdo: o que diz o
texto bíblico em si? Sem este momento, corre-se o risco que o
texto se torne somente um pretexto para nunca ultrapassar os nossos
pensamentos. Segue-se depois a meditação (meditatio), durante
a qual nos perguntamos: que nos diz o texto bíblico? Aqui
cada um, pessoalmente mas também como realidade comunitária, deve
deixar-se sensibilizar e pôr em questão, porque não se trata de
considerar palavras pronunciadas no passado, mas no presente.
Sucessivamente chega-se ao momento da oração (oratio), que
supõe a pergunta: que dizemos ao Senhor, em resposta à sua
Palavra? A oração enquanto pedido, intercessão, acção de graças
e louvor é o primeiro modo como a Palavra nos transforma. Finalmente,
a lectio divina conclui-se com a contemplação (contemplatio),
durante a qual assumimos como dom de Deus o seu próprio olhar, ao
julgar a realidade, e interrogamo-nos: qual é a conversão da
mente, do coração e da vida que o Senhor nos pede? São Paulo, na
Carta aos Romanos, afirma: «Não vos conformeis com este
século, mas transformai-vos pela renovação da vossa mente, a fim de
conhecerdes a vontade de Deus: o que é bom, o que Lhe é agradável e
o que é perfeito» (12, 2). De facto, a contemplação tende a criar em
nós uma visão sapiencial da realidade segundo Deus e a formar em nós
«o pensamento de Cristo» (1 Cor 2, 16). Aqui a Palavra de
Deus aparece como critério de discernimento: ela é «viva, eficaz e
mais penetrante que uma espada de dois gumes; penetra até dividir a
alma e o corpo, as junturas e as medulas e discerne os pensamentos e
intenções do coração» (Hb 4, 12). Há que recordar ainda que a
lectio divina não está concluída, na sua dinâmica, enquanto
não chegar à acção (actio), que impele a existência do fiel a
doar-se aos outros na caridade.
Estes passos
encontramo-los sintetizados e resumidos, de forma sublime, na figura
da Mãe de Deus. Modelo para todo o fiel de acolhimento dócil da
Palavra divina, Ela «conservava todas estas coisas, ponderando-as no
seu coração» (L c 2, 19; cf. 2, 51), e sabia encontrar o nexo
profundo que une os acontecimentos, os actos e as realidades,
aparentemente desconexos, no grande desígnio divino.[297]
Além disso, quero
lembrar a recomendação feita durante o Sínodo relativa à importância
da leitura pessoal da Escritura como prática que prevê a
possibilidade também de obter, segundo as disposições habituais da
Igreja, a indulgência para si próprio ou para os defuntos.[298]
A prática da indulgência[299]
implica a doutrina dos méritos infinitos de Cristo – que a Igreja,
como ministra da redenção, concede e aplica –, mas supõe também a
doutrina da Comunhão dos Santos, que nos mostra «como é íntima a
nossa união em Cristo e quanto a vida sobrenatural de cada um pode
auxiliar os outros».[300]
Nesta perspectiva, a leitura da Palavra de Deus apoia-nos no caminho
de penitência e conversão, permite-nos aprofundar o sentido de
pertença eclesial e conserva-nos numa familiaridade mais profunda
com Deus. Como afirmava Santo Ambrósio, quando tomamos nas mãos, com
fé, as Sagradas Escrituras e as lemos com a Igreja, a pessoa humana
volta a passear com Deus no paraíso.[301]
Palavra de
Deus e oração mariana
88. Pensando na relação
indivisível entre a Palavra de Deus e Maria de Nazaré, convido,
juntamente com os Padres sinodais, a promover entre os fiéis,
sobretudo na vida familiar, as orações marianas que constituem uma
ajuda para meditar os santos mistérios narrados pela Sagrada
Escritura. Um meio muito útil é, por exemplo, a recitação pessoal ou
comunitária do Rosário,[302]
que repercorre juntamente com Maria os mistérios da vida de Cristo[303]
e que o Papa
João Paulo II quis enriquecer com os mistérios de luz.[304]
É conveniente que o anúncio dos diversos mistérios seja acompanhado
por breves trechos da Bíblia sobre o mistério enunciado, para assim
favorecer a memorização de algumas expressões significativas da
Escritura relativas aos mistérios da vida de Cristo.
Além disso, o Sínodo
recomendou que se promova entre os fiéis a recitação da oração do
Angelus Domini. Trata-se de uma oração simples e profunda que
nos permite «recordar diariamente o Verbo Encarnado».[305]
É oportuno que o Povo de Deus, as famílias e as comunidades de
pessoas consagradas sejam fiéis a esta oração mariana, que a
tradição nos convida a rezar ao alvorecer, ao meio-dia e ao
entardecer. Na oração do Angelus Domini, pedimos a Deus que,
pela intercessão de Maria, nos seja concedido também cumprir a
vontade de Deus como Ela e acolher em nós a sua Palavra. Esta
prática pode ajudar-nos a intensificar um amor autêntico ao mistério
da Encarnação.
Merecem ser conhecidas,
apreciadas e difundidas também algumas antigas orações do Oriente
cristão que, através de uma referência à Theotokos, à Mãe de
Deus, percorrem toda a história da salvação. Referimo-nos
particularmente ao Akathistos e à Paraklesis. São
hinos de louvor cantados em forma de litania, impregnados de fé
eclesial e de alusões bíblicas, que ajudam os fiéis a meditar
juntamente com Maria os mistérios de Cristo. De modo especial, o
venerável hino à Mãe de Deus denominado Akathistos – quer
dizer: cantado permanecendo de pé –, representa uma das mais altas
expressões de piedade mariana da tradição bizantina.[306]
Rezar com estas palavras dilata a alma e dispõe-na para a paz que
vem do Alto, de Deus – a paz que é o próprio Cristo, nascido de
Maria para a nossa salvação.
Palavra de
Deus e Terra Santa
89. Recordando o Verbo
de Deus que Se faz carne no seio de Maria de Nazaré, o nosso coração
volta-se agora para aquela Terra onde se cumpriu o mistério da nossa
redenção e donde a Palavra de Deus se difundiu até aos confins do
mundo. De facto, por obra do Espírito Santo, o Verbo encarnou num
momento concreto e num lugar determinado, numa orla de terra situada
nos confins do Império Romano. Por isso, quanto mais contemplamos a
universalidade e a unicidade da pessoa de Cristo, tanto mais olhamos
agradecidos para aquela Terra onde Jesus nasceu, viveu e Se entregou
a Si mesmo por todos nós. As pedras sobre as quais caminhou o nosso
Redentor permanecem para nós carregadas de recordações e continuam a
«gritar» a Boa Nova. Por isso, os Padres sinodais lembraram a
expressão feliz dada à Terra Santa: «o quinto Evangelho».[307]
Como é importante a existência de comunidades cristãs naqueles
lugares, apesar das inúmeras dificuldades! O Sínodo dos Bispos
exprime profunda solidariedade a todos os cristãos que vivem na
Terra de Jesus, dando testemunho da fé no Ressuscitado. Lá os
cristãos são chamados a servir como «um farol de fé para a Igreja
universal e também como fermento de harmonia, sabedoria e equilíbrio
na vida duma sociedade que tradicionalmente foi e continua a ser
pluralista, multiétnica e multirreligiosa».[308]
A Terra Santa continua
ainda hoje a ser meta de peregrinação do povo cristão, vivida como
gesto de oração e de penitência, como o era já na antiguidade
segundo o testemunho de autores como São Jerónimo.[309]
Quanto mais voltamos o olhar e o coração para a Jerusalém terrena,
tanto mais se inflama em nós o desejo da Jerusalém celeste,
verdadeira meta de toda a peregrinação, e a paixão de que o nome de
Jesus – o único em que se encontra a salvação – seja reconhecido por
todos (cf. Act 4, 12).
III PARTE
VERBUM MUNDO
«Ninguém jamais viu a Deus:
o Filho único, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer» (Jo 1, 18)
A
missão da Igreja:
anunciar a palavra de Deus ao mundo
A Palavra
que sai do Pai e volta para o Pai
90. São João sublinha
fortemente o paradoxo fundamental da fé cristã. Por um lado, afirma
que «ninguém jamais viu a Deus» (Jo 1, 18; cf. 1 Jo 4,
12): de modo nenhum podem as nossas imagens, conceitos ou palavras
definir ou calcular a realidade infinita do Altíssimo; permanece o
Deus semper maior. Por outro lado, diz que realmente o Verbo
«Se fez carne» (Jo 1, 14). O Filho unigénito, que está
voltado para o seio do Pai, revelou o Deus que «ninguém jamais viu»
(Jo 1, 18). Jesus Cristo vem a nós «cheio de graça e de
verdade» (Jo 1, 14), que nos são dadas por meio d’Ele (cf.
Jo 1, 17); de facto, «da sua plenitude é que todos nós recebemos,
graça sobre graça» (Jo 1, 16). E assim, no Prólogo, o
evangelista João contempla o Verbo desde o seu estar junto de Deus
passando pelo fazer-Se carne, até ao regresso ao seio do Pai,
levando consigo a nossa própria humanidade que assumiu para sempre.
Neste sair do Pai e voltar ao Pai (cf. Jo 13, 3; 16, 28; 17,
8.10), Ele apresenta-Se-nos como o «Narrador» de Deus (cf. Jo
1, 18). De facto, o Filho – afirma Santo Ireneu de Lião – «é o
Revelador do Pai».[310]
Jesus de Nazaré é, por assim dizer, o «exegeta» de Deus que «ninguém
jamais viu»; «Ele é a imagem do Deus invisível» (Cl 1, 15).
Cumpre-se aqui a profecia de Isaías relativa à eficácia da Palavra
do Senhor: assim como a chuva e a neve descem do céu para regar e
fazer germinar a terra, assim também a Palavra de Deus «não volta
sem ter produzido o seu efeito, sem ter executado a minha vontade e
cumprido a sua missão» (Is 55, 10-11). Jesus Cristo é esta
Palavra definitiva e eficaz que saiu do Pai e voltou a Ele,
realizando perfeitamente no mundo a sua vontade.
Anunciar ao
mundo o «Logos» da Esperança
91. O Verbo de Deus
comunicou-nos a vida divina que transfigura a face da terra, fazendo
novas todas as coisas (cf. Ap 21, 5). A sua Palavra envolve-nos
não só como destinatários da revelação divina, mas também
como seus arautos. Ele, o enviado do Pai para cumprir a sua
vontade (cf. Jo 5, 36-38; 6, 38-40; 7, 16-18), atrai-nos a Si
e envolve-nos na sua vida e missão. Assim o Espírito do Ressuscitado
habilita a nossa vida para o anúncio eficaz da Palavra em todo o
mundo. É a experiência da primeira comunidade cristã, que via
difundir-se a Palavra por meio da pregação e do testemunho (cf.
Act 6, 7). Quero citar aqui particularmente a vida do Apóstolo
Paulo, um homem arrebatado completamente pelo Senhor (cf. Fl
3, 12) – «já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim» (Gl
2, 20) – e pela sua missão: «Ai de mim se não evangelizar!» (1
Cor 9, 16), ciente de que em Cristo se revela realmente a
salvação de todas as nações, a libertação da escravidão do pecado
para entrar na liberdade dos filhos de Deus.
Com efeito, o que a
Igreja anuncia ao mundo é o Logos da Esperança (cf. 1 Pd
3, 15); o homem precisa da «grande Esperança» para poder viver o seu
próprio presente – a grande esperança que é «aquele Deus que possui
um rosto humano e que nos “amou até ao fim” (Jo 13, 1)».[311]
Por isso, na sua essência, a Igreja é missionária. Não podemos
guardar para nós as palavras de vida eterna, que recebemos no
encontro com Jesus Cristo: são para todos, para cada homem. Cada
pessoa do nosso tempo – quer o saiba quer não – tem necessidade
deste anúncio. Oxalá o Senhor suscite entre os homens, como nos
tempos do profeta Amós, nova fome e nova sede das palavras do Senhor
(cf. Am 8, 11). A nós cabe a responsabilidade de transmitir
aquilo que por nossa vez tínhamos, por graça, recebido.
Da Palavra
de Deus deriva a missão da Igreja
92. O Sínodo dos Bispos
reafirmou com veemência a necessidade de revigorar na Igreja a
consciência missionária, presente no Povo de Deus desde a sua
origem. Os primeiros cristãos consideraram o seu anúncio missionário
como uma necessidade derivada da própria natureza da fé: o Deus em
quem acreditavam era o Deus de todos, o Deus único e verdadeiro que
Se manifestara na história de Israel e, por fim, no seu Filho,
oferecendo assim a resposta que todos os homens, no seu íntimo,
aguardam. As primeiras comunidades cristãs sentiram que a sua fé não
pertencia a um costume cultural particular, que diverge de povo para
povo, mas ao âmbito da verdade, que diz respeito igualmente a todos
os homens.
Também aqui São Paulo
nos ilustra, com a sua vida, o sentido da missão cristã e a sua
originária universalidade. Pensemos no episódio do Areópago de
Atenas, narrado pelos Actos dos Apóstolos (cf. 17, 16-34). O
Apóstolo das Nações entra em diálogo com homens de culturas diversas,
na certeza de que o mistério de Deus, Conhecido-Desconhecido, do
qual todo o homem tem uma certa percepção embora confusa, revelou-Se
realmente na história: «O que venerais sem conhecer, é que eu vos
anuncio» (Act 17, 23). De facto, a novidade do anúncio
cristão é a possibilidade de dizer a todos os povos: «Ele mostrou-Se.
Ele em pessoa. E agora está aberto o caminho para Ele. A novidade do
anúncio cristão não consiste num pensamento mas num facto: Ele
revelou-Se».[312]
A Palavra e
o Reino de Deus
93. Por conseguinte, a
missão da Igreja não pode ser considerada como realidade facultativa
ou suplementar da vida eclesial. Trata-se de deixar que o Espírito
Santo nos assimile a Cristo, participando assim na sua própria
missão: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós» (Jo
20, 21), de modo a comunicar a Palavra com a vida inteira. É a
própria Palavra que nos impele para os irmãos: é a Palavra que
ilumina, purifica, converte; nós somos apenas servidores.
Por isso, é necessário
descobrir cada vez mais a urgência e a beleza de anunciar a Palavra
para a vinda do Reino de Deus, que o próprio Cristo pregou. Neste
sentido, renovamos a consciência – tão familiar aos Padres da Igreja
– de que o anúncio da Palavra tem como conteúdo o Reino de Deus (cf.
Mc 1, 14-15), sendo este a própria pessoa de Jesus (o
Autobasileia), como sugestivamente lembra Orígenes.[313]
O Senhor oferece a salvação aos homens de cada época. Todos nos
damos conta de quão necessário é que a luz de Cristo ilumine cada
âmbito da humanidade: a família, a escola, a cultura, o trabalho, o
tempo livre e os outros sectores da vida social.[314]
Não se trata de anunciar uma palavra anestesiante, mas
desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o
encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova.
Todos os
baptizados responsáveis do anúncio
94. Uma vez que todo o
Povo de Deus é um povo «enviado», o Sínodo reafirmou que «a missão
de anunciar a Palavra de Deus é dever de todos os discípulos de
Jesus Cristo, em consequência do seu baptismo».[315]
Nenhuma pessoa que crê em Cristo pode sentir-se alheia a esta
responsabilidade que deriva do facto de ela pertencer
sacramentalmente ao Corpo de Cristo. Esta consciência deve ser
despertada em cada família, paróquia, comunidade, associação e
movimento eclesial. Portanto toda a Igreja, enquanto mistério de
comunhão, é missionária e cada um, no seu próprio estado de vida, é
chamado a dar uma contribuição incisiva para o anúncio cristão.
Bispos e sacerdotes,
segundo a missão própria de cada um, são os primeiros chamados a uma
vida cativada pelo serviço da Palavra, para anunciar o Evangelho,
celebrar os Sacramentos e formar os fiéis no conhecimento autêntico
das Escrituras. Sintam-se também os diáconos chamados a
colaborar, segundo a própria missão, para este compromisso de
evangelização.
A vida consagrada resplandece,
em toda a história da Igreja, pela sua capacidade de assumir
explicitamente o dever do anúncio e da pregação da Palavra de Deus
na missio ad gentes e nas situações mais difíceis, mostrando-se
disponível também para as novas condições de evangelização,
empreendendo com coragem e audácia novos percursos e novos desafios
para o anúncio eficaz da Palavra de Deus.[316]
Os fiéis leigos
são chamados a exercer a sua missão profética, que deriva
directamente do baptismo, e testemunhar o Evangelho na vida diária
onde quer que se encontrem. A este respeito, os Padres sinodais
exprimiram «a mais viva estima e gratidão bem como encorajamento
pelo serviço à evangelização que muitos leigos, e particularmente as
mulheres, prestam com generosidade e diligência nas comunidades
espalhadas pelo mundo, a exemplo de Maria de Magdala, primeira
testemunha da alegria pascal».[317]
Além disso, o Sínodo reconhece, com gratidão, que os movimentos
eclesiais e as novas comunidades constituem, na Igreja, uma grande
força para a evangelização neste tempo, impelindo a desenvolver
novas formas de anúncio do Evangelho.[318]
A
necessidade da «missio ad gentes»
95. Ao exortar todos os
fiéis para o anúncio da Palavra divina, os Padres sinodais
reafirmaram a necessidade, no nosso tempo também, de um decidido
empenho na missio ad gentes. A Igreja não pode de modo algum
limitar-se a uma pastoral de «manutenção» para aqueles que já
conhecem o Evangelho de Cristo. O ardor missionário é um sinal claro
da maturidade de uma comunidade eclesial. Além disso, os Padres
exprimiram vivamente a consciência de que a Palavra de Deus é a
verdade salvífica da qual tem necessidade cada homem em todo o
tempo. Por isso, o anúncio deve ser explícito. A Igreja deve ir ao
encontro de todos com a força do Espírito (cf. 1 Cor 2, 5) e
continuar profeticamente a defender o direito e a liberdade das
pessoas escutarem a Palavra de Deus, procurando os meios mais
eficazes para a proclamar, mesmo sob risco de perseguição.[319]
A todos a Igreja se sente devedora de anunciar a Palavra que salva
(cf. Rm 1, 14).
Anúncio e
nova evangelização
96. O Papa
João Paulo II, na esteira de quanto já expressara o
Papa Paulo VI na Exortação apostólica
Evangelii nuntiandi, tinha de muitos modos lembrado aos
fiéis a necessidade de uma nova estação missionária para todo o Povo
de Deus.[320] Na
alvorada do terceiro milénio, não só existem muitos povos que ainda
não conheceram a Boa Nova, mas há também muitos cristãos que têm
necessidade que lhes seja anunciada novamente, de modo persuasivo, a
Palavra de Deus, para poderem assim experimentar concretamente a
força do Evangelho. Há muitos irmãos que são «baptizados mas não
suficientemente evangelizados».[321]
É frequente ver nações, outrora ricas de fé e de vocações, que vão
perdendo a própria identidade, sob a influência de uma cultura
secularizada.[322] A
exigência de uma nova evangelização, tão sentida pelo meu venerado
Predecessor, deve-se reafirmar sem medo, na certeza da eficácia da
Palavra divina. A Igreja, segura da fidelidade do seu Senhor, não se
cansa de anunciar a boa nova do Evangelho e convida todos os
cristãos a redescobrirem o fascínio de seguir Cristo.
Palavra de
Deus e testemunho cristão
97. Os horizontes
imensos da missão eclesial e a complexidade da situação presente
requerem hoje modalidades renovadas para se poder comunicar
eficazmente a Palavra de Deus. O Espírito Santo, agente primário de
toda a evangelização, nunca deixará de guiar a Igreja de Cristo
nesta actividade. Antes de mais nada, é importante que cada
modalidade de anúncio tenha presente a relação intrínseca entre
comunicação da Palavra de Deus e testemunho cristão; disso
depende a própria credibilidade do anúncio. Por um lado, é
necessária a Palavra que comunique aquilo que o próprio Senhor nos
disse; por outro, é indispensável dar, com o testemunho,
credibilidade a esta Palavra, para que não apareça como uma bela
filosofia ou utopia, mas antes como uma realidade que se pode viver
e que faz viver. Esta reciprocidade entre Palavra e testemunho
recorda o modo como o próprio Deus Se comunicou por meio da
encarnação do seu Verbo. A Palavra de Deus alcança os homens
«através do encontro com testemunhas que a tornam presente e viva».[323]
Particularmente as novas gerações têm necessidade de ser
introduzidas na Palavra de Deus «através do encontro e do testemunho
autêntico do adulto, da influência positiva dos amigos e da grande
companhia que é a comunidade eclesial».[324]
Há uma relação estreita
entre o testemunho da Escritura, como atestado que a Palavra de Deus
dá de si mesma, e o testemunho de vida dos crentes. Um implica e
conduz ao outro. O testemunho cristão comunica a Palavra atestada
nas Escrituras. Por sua vez, as Escrituras explicam o testemunho que
os cristãos são chamados a dar com a própria vida. Deste modo,
aqueles que encontram testemunhas credíveis do Evangelho são levados
a constatar a eficácia da Palavra de Deus naqueles que a acolhem.
Nesta circularidade
entre testemunho e Palavra, compreendem-se as afirmações do
Papa Paulo VI na Exortação apostólica
Evangelii nuntiandi. A nossa responsabilidade não se limita
a sugerir ao mundo valores que compartilhamos; mas é preciso chegar
ao anúncio explícito da Palavra de Deus. Só assim seremos fiéis ao
mandato de Cristo: «Por conseguinte a Boa Nova proclamada pelo
testemunho de vida deverá, mais cedo ou mais tarde, ser anunciada
pela palavra de vida. Não há verdadeira evangelização, se o nome, a
doutrina, a vida, as promessas, o Reino, o mistério de Jesus de
Nazaré, Filho de Deus, não forem proclamados».[325]
O facto do anúncio da
Palavra de Deus requerer o testemunho da própria vida é um dado bem
presente na consciência cristã desde as suas origens. O próprio
Cristo é a testemunha fiel e verdadeira (cf. Ap 1, 5; 3, 14),
testemunha da Verdade (cf. Jo 18, 37). A este propósito,
desejo recordar os inumeráveis testemunhos que tivemos a graça de
ouvir durante a assembleia sinodal. Ficámos profundamente
impressionados com o relato daqueles que souberam viver a fé e dar
luminosos testemunhos do Evangelho mesmo sob regimes contrários ao
cristianismo ou em situações de perseguição.
Tudo isto não nos deve
meter medo. O próprio Jesus disse aos seus discípulos: «Um servo não
é maior que o seu senhor. Se a Mim Me perseguiram também vos
perseguirão a vós» (Jo 15, 20). Por isso desejo elevar a
Deus, com toda a Igreja, um hino de louvor pelo testemunho de muitos
irmãos e irmãs que, mesmo neste nosso tempo, deram a vida para
comunicar a verdade do amor de Deus que nos foi revelado em Cristo
crucificado e ressuscitado. Além disso, exprimo a gratidão da Igreja
inteira aos cristãos que não se rendem perante os obstáculos e as
perseguições por causa do Evangelho. Ao mesmo tempo unimo-nos, com
profunda e solidária estima, aos fiéis de todas as comunidades
cristãs, particularmente na Ásia e na África, que neste tempo
arriscam a vida ou a marginalização social por causa da fé. Vemos
realizar-se aqui o espírito das bem-aventuranças do Evangelho para
aqueles que são perseguidos por causa do Senhor Jesus (cf. Mt
5, 11). Ao mesmo tempo não cessamos de erguer a nossa voz para que
os governos das nações garantam a todos liberdade de consciência e
de religião, inclusive para poder testemunhar publicamente a própria
fé.[326]
Palavra de Deus e
compromisso no mundo
Servir
Jesus nos seus «irmãos mais pequeninos» (Mt 25, 40)
99. A Palavra divina
ilumina a existência humana e leva as consciências a reverem em
profundidade a própria vida, porque toda a história da humanidade
está sob o juízo de Deus: «Quando o Filho do Homem vier na sua
glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-Se-á, então, no
seu trono de glória. Perante Ele reunir-se-ão todas as nações» (Mt
25, 31-32). No nosso tempo, detemo-nos muitas vezes superficialmente
no valor do instante que passa, como se fosse irrelevante para o
futuro. Diversamente, o Evangelho recorda-nos que cada momento da
nossa existência é importante e deve ser vivido intensamente,
sabendo que cada um deverá prestar contas da própria vida. No
capítulo vinte e cinco do Evangelho de Mateus, o Filho do
Homem considera como feito ou não feito a Si aquilo que tivermos
feito ou deixado de fazer a um só dos seus «irmãos mais pequeninos»
(25, 40.45): «Tive fome e destes-Me de comer, tive sede e destes-Me
de beber; era peregrino e recolhestes-Me; estava nu e destes-Me de
vestir; adoeci e visitastes-Me; estive na prisão e fostes ter comigo»
(25, 35-36). Deste modo, é a própria Palavra de Deus que nos recorda
a necessidade do nosso compromisso no mundo e a nossa
responsabilidade diante de Cristo, Senhor da História. Quando
anunciamos o Evangelho, exortamo-nos reciprocamente a cumprir o bem
e a empenhar-nos pela justiça, pela reconciliação e pela paz.
Palavra de
Deus e compromisso na sociedade pela justiça
100. A Palavra de Deus
impele o homem para relações animadas pela rectidão e pela justiça,
confirma o valor precioso aos olhos de Deus de todas as fadigas do
homem para tornar o mundo mais justo e mais habitável.[327]
A própria Palavra de Deus denuncia, sem ambiguidade, as injustiças e
promove a solidariedade e a igualdade.[328]
À luz das palavras do Senhor, reconheçamos pois os «sinais dos
tempos» presentes na história, não nos furtemos ao compromisso em
favor de quantos sofrem e são vítimas do egoísmo. O Sínodo lembrou
que o compromisso pela justiça e a transformação do mundo é
constitutivo da evangelização. Como dizia o
Papa Paulo VI, trata-se de «chegar a atingir e como que a
modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores
que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as
fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se
apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da
salvação».[329]
Com este objectivo, os
Padres sinodais dirigiram um pensamento particular a quantos estão
empenhados na vida política e social. A evangelização e a difusão da
Palavra de Deus devem inspirar a sua acção no mundo à procura do
verdadeiro bem de todos, no respeito e promoção da dignidade de toda
a pessoa. Certamente não é tarefa directa da Igreja criar uma
sociedade mais justa, embora lhe caiba o direito e o dever de
intervir sobre as questões éticas e morais que dizem respeito ao bem
das pessoas e dos povos. Compete sobretudo aos fiéis leigos formados
na escola do Evangelho intervir directamente na acção social e
política. Por isso o Sínodo recomenda uma adequada educação segundo
os princípios da doutrina social da Igreja.[330]
101. Além disso, quero
chamar a atenção geral para a importância de defender e promover os
direitos humanos de toda a pessoa, que, como tais, são
«universais, invioláveis e inalienáveis».[331]
A Igreja aproveita a ocasião extraordinária oferecida pelo nosso
tempo para que a dignidade humana, através da afirmação de tais
direitos, seja mais eficazmente reconhecida e promovida
universalmente,[332]
como característica impressa por Deus criador na sua criatura,
assumida e redimida por Jesus Cristo através da sua encarnação,
morte e ressurreição. Por isso a difusão da Palavra de Deus não pode
deixar de reforçar a consolidação e o respeito dos direitos humanos
de cada pessoa.[333]
Anúncio da
Palavra de Deus, reconciliação e paz entre os povos
102. Dentre os
numerosos âmbitos de compromisso, o Sínodo recomendou vivamente a
promoção da reconciliação e da paz. No contexto actual, é grande a
necessidade de descobrir a Palavra de Deus como fonte de
reconciliação e de paz, porque nela Deus reconcilia em Si todas as
coisas (cf. 2 Cor 5, 18-20; Ef 1, 10): Cristo «é a
nossa paz» (Ef 2, 14), Aquele que derruba os muros de divisão.
Muitos testemunhos no Sínodo comprovaram os graves e sangrentos
conflitos e as tensões presentes no nosso planeta. Às vezes tais
hostilidades parecem assumir o aspecto de conflito inter-religioso.
Quero uma vez mais reafirmar que a religião nunca pode justificar a
intolerância ou as guerras. Não se pode usar a violência em nome de
Deus![334] Toda a
religião devia impelir para um uso correcto da razão e promover
valores éticos que edifiquem a convivência civil.
Fiéis à obra de
reconciliação realizada por Deus em Jesus Cristo, crucificado e
ressuscitado, os católicos e todos os homens de boa vontade
empenhem-se por dar exemplos de reconciliação para se construir uma
sociedade justa e pacífica.[335]
Nunca esqueçamos que «onde as palavras humanas se tornam impotentes,
porque prevalece o trágico clamor da violência e das armas, a força
profética da Palavra de Deus não esmorece e repete-nos que a paz é
possível e que devemos, nós mesmos, ser instrumentos de
reconciliação e de paz».[336]
A Palavra
de Deus e a caridade activa
103. O compromisso pela
justiça, a reconciliação e a paz encontra a sua raiz última e
perfeição no amor que nos foi revelado em Cristo. Ouvindo os
testemunhos proferidos no Sínodo, tornámo-
-nos mais atentos à ligação que há entre a escuta amorosa da Palavra
de Deus e o serviço desinteressado aos irmãos; que todos os fiéis
compreendam «a necessidade de traduzir em gestos de amor a palavra
escutada, porque só assim se torna credível o anúncio do Evangelho,
apesar das fragilidades humanas que marcam as pessoas».[337]
Jesus passou por este mundo fazendo o bem (cf. Act 10, 38).
Escutando com ânimo disponível a Palavra de Deus na Igreja,
desperta-se «a caridade e a justiça para com todos, sobretudo para
com os pobres».[338]
É preciso nunca esquecer que «o amor – caritas – será sempre
necessário, mesmo na sociedade mais justa. (…) Quem quer desfazer-se
do amor, prepara-se para se desfazer do homem enquanto homem».[339]
Por isso, exorto todos os fiéis a meditarem com frequência o hino à
caridade escrito pelo Apóstolo Paulo, deixando-se inspirar por ele:
«A caridade é paciente, a caridade é benigna, não é invejosa; a
caridade não se ufana, não se ensoberbece, não é inconveniente, não
procura o seu interesse, não se irrita, não suspeita mal, não se
alegra com a injustiça, mas rejubila com a verdade. Tudo desculpa,
tudo crê, tudo espera, tudo suporta. A caridade nunca acabará» (1
Cor 13, 4-8).
Deste modo o amor do
próximo, radicado no amor de Deus, deve ser o nosso compromisso
constante como indivíduos e como comunidade eclesial local e
universal. Diz Santo Agostinho: «É fundamental compreender que a
plenitude da Lei, bem como de todas as Escrituras divinas, é o amor
(…). Por isso quem julga ter compreendido as Escrituras, ou pelo
menos uma parte qualquer delas, mas não se empenha a construir,
através da sua inteligência, este duplo amor de Deus e do próximo,
demonstra que ainda não as compreendeu».[340]
Anúncio da
Palavra de Deus e os jovens
104. O Sínodo reservou
uma atenção particular ao anúncio da Palavra divina feito às novas
gerações. Os jovens já são membros activos da Igreja e representam o
seu futuro. Muitas vezes encontramos neles uma abertura espontânea à
escuta da Palavra de Deus e um desejo sincero de conhecer Jesus.
De facto, na idade da juventude, surgem de modo irreprimível e
sincero as questões sobre o sentido da própria vida e sobre a
direcção que se deve dar à própria existência. A estas questões só
Deus sabe dar verdadeira resposta. Esta solicitude pelo mundo
juvenil implica a coragem de um anúncio claro; devemos ajudar os
jovens a ganharem confidência e familiaridade com a Sagrada
Escritura, para que seja como uma bússola que indica a estrada a
seguir.[341] Para
isso, precisam de testemunhas e mestres, que caminhem com eles e os
orientem para amarem e por sua vez comunicarem o Evangelho sobretudo
aos da sua idade, tornando-se eles mesmos arautos autênticos e
credíveis.[342]
É preciso que a Palavra
divina seja apresentada também nas suas implicações vocacionais de
modo a ajudar e orientar os jovens nas suas opções de vida,
incluindo a consagração total.[343]
Autênticas vocações para a vida consagrada e para o sacerdócio
encontram o seu terreno propício no contacto fiel com a Palavra de
Deus. Repito aqui o convite que fiz no início do meu pontificado
para abrir de par em par as portas a Cristo: «Quem faz entrar
Cristo, nada perde, nada – absolutamente nada daquilo que torna a
vida livre, bela e grande. Não! Só nesta amizade se abrem de par em
par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem realmente as
grandes potencialidades da condição humana. (…) Queridos jovens, não
tenhais medo de Cristo! Ele não tira nada, e dá tudo. Quem se
entrega a Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par em par as portas
a Cristo, e encontrareis a vida verdadeira».[344]
Anúncio da
Palavra de Deus e os migrantes
105. A Palavra de Deus
torna-nos atentos à história e a tudo o que de novo germina nela.
Por isso o Sínodo quis, a propósito da missão evangelizadora da
Igreja, fixar a atenção também no fenómeno complexo dos movimentos
migratórios, que tem assumido nestes anos proporções inéditas. Aqui
levantam-se questões bastante delicadas relativas à segurança
das nações e ao acolhimento que se deve oferecer a quantos
buscam refúgio, melhores condições de vida, saúde, trabalho. Um
grande número de pessoas, que não conhece Cristo ou possui uma
imagem imperfeita d’Ele, estabelece-se em países de tradição cristã.
Ao mesmo tempo pessoas que pertencem a povos marcados profundamente
pela fé cristã emigram para países onde há necessidade de levar o
anúncio de Cristo e de uma nova evangelização. Estas novas situações
oferecem novas possibilidades para a difusão da Palavra de Deus. A
este propósito, os Padres sinodais afirmaram que os migrantes têm o
direito de ouvir o kerygma, que lhes é proposto, não imposto.
Se forem cristãos, necessitam de uma assistência pastoral adequada
para fortalecer a fé e serem eles mesmos portadores do anúncio
evangélico. Conscientes da complexidade do fenómeno, é necessário
que todas as dioceses interessadas se mobilizem para que os
movimentos migratórios sejam considerados também como ocasião para
descobrir novas modalidades de presença e de anúncio e se proveja,
segundo as próprias possibilidades, a um condigno acolhimento e
animação destes nossos irmãos para que, tocados pela Boa Nova, se
façam eles mesmos anunciadores da Palavra de Deus e testemunhas do
Senhor Ressuscitado, esperança do mundo.[345]
Anúncio da
Palavra de Deus e os doentes
106. Ao longo dos
trabalhos sinodais, a atenção dos Padres deteve-se também na
necessidade de anunciar a Palavra de Deus a todos aqueles que estão
em condições de sofrimento físico, psíquico ou espiritual. De facto,
é na hora do sofrimento que se levantam mais acutilantes no coração
do homem as questões últimas sobre o sentido da própria vida.
Se a palavra do homem parece emudecer diante do mistério do mal e da
dor e a nossa sociedade parece dar valor à vida apenas se
corresponde a certos níveis de eficiência e bem-estar, a Palavra de
Deus revela-nos que mesmo estas circunstâncias são misteriosamente
«abraçadas» pela ternura divina. A fé que nasce do encontro com a
Palavra divina ajuda-nos a considerar a vida humana digna de ser
vivida plenamente, mesmo quando está debilitada pelo mal. Deus
criou o homem para a felicidade e a vida, enquanto a doença e a
morte entraram no mundo em consequência do pecado (cf. Sb 2,
23-24). Mas o Pai da vida é o médico por excelência do homem e não
cessa de inclinar-
-Se amorosamente sobre a humanidade que sofre. Contemplamos o apogeu
da proximidade de Deus ao sofrimento do homem, no próprio Jesus que
é «Palavra encarnada. Sofreu connosco, morreu. Com a sua paixão e
morte, assumiu e transformou profundamente a nossa debilidade».[346]
A proximidade de
Jesus aos doentes não se interrompeu: prolonga-se no tempo
graças à acção do Espírito Santo na missão da Igreja, na Palavra e
nos Sacramentos, nos homens de boa vontade, nas actividades de
assistência que as comunidades promovem com caridade fraterna,
mostrando assim o verdadeiro rosto de Deus e o seu amor. O Sínodo dá
graças a Deus pelo testemunho esplêndido, frequentemente escondido,
de muitos cristãos – sacerdotes, religiosos e leigos – que
emprestaram e continuam a emprestar as suas mãos, os seus olhos e os
seus corações a Cristo, verdadeiro médico dos corpos e das almas.
Depois exorta para que se continue a cuidar das pessoas doentes,
levando-lhes a presença vivificadora do Senhor Jesus na Palavra e na
Eucaristia. Sejam ajudadas a ler a Escritura e a descobrir que
podem, precisamente na sua condição, participar de um modo
particular no sofrimento redentor de Cristo pela salvação do mundo
(cf. 2 Cor 4, 8-11.14).[347]
Anúncio da
Palavra de Deus e os pobres
107. A Sagrada
Escritura manifesta a predilecção de Deus pelos pobres e
necessitados (cf. Mt 25, 31-46). Com frequência, os Padres
sinodais lembraram a necessidade de que o anúncio evangélico e o
empenho dos pastores e das comunidades se dirijam a estes nossos
irmãos. Com efeito, «os primeiros que têm direito ao anúncio do
Evangelho são precisamente os pobres, necessitados não só de pão mas
também de palavras de vida».[348]
A diaconia da caridade, que nunca deve faltar nas nossas Igrejas,
tem de estar sempre ligada ao anúncio da Palavra e à celebração dos
santos mistérios.[349]
Ao mesmo tempo é preciso reconhecer e valorizar o facto de que os
próprios pobres são também agentes de evangelização. Na Bíblia, o
verdadeiro pobre é aquele que se confia totalmente a Deus e, no
Evangelho, o próprio Jesus chama-os bem-aventurados, «porque
deles é o reino dos céus» (Mt 5, 3; cf. L c 6, 20). O
Senhor exalta a simplicidade de coração de quem reconhece em Deus a
verdadeira riqueza, coloca n’Ele a sua esperança e não nos bens
deste mundo. A Igreja não pode desiludir os pobres: «Os pastores são
chamados a ouvi-los, a aprender deles, a guiá-los na sua fé e a
motivá-los para serem construtores da própria história».[350]
A Igreja está ciente
também de que existe uma pobreza que é virtude a cultivar e a
abraçar livremente, como fizeram muitos Santos, e há a miséria,
muitas vezes resultante de injustiças e provocada pelo egoísmo, que
produz indigência e fome e alimenta os conflitos. Quando a Igreja
anuncia a Palavra de Deus sabe que é preciso favorecer um «círculo
virtuoso» entre a pobreza «que se deve escolher» e a pobreza
«que se deve combater», redescobrindo «a sobriedade e a
solidariedade como valores simultaneamente evangélicos e universais.
(…) Isto obriga a opções de justiça e de sobriedade».[351]
Palavra de
Deus e defesa da criação
108. O compromiso no
mundo requerido pela Palavra divina impele-nos a ver com olhos novos
todo o universo criado por Deus e que traz já em si os vestígios do
Verbo, por Quem tudo foi feito (cf. Jo 1, 2). Com efeito, há
uma responsabilidade que nos compete como fiéis e anunciadores do
Evangelho também a respeito da criação. A revelação, ao mesmo tempo
que nos dá a conhecer o desígnio de Deus sobre o universo, leva-nos
também a denunciar os comportamentos errados do homem, quando não
reconhece todas as coisas como reflexo do Criador, mas mera matéria
que se pode manipular sem escrúpulos. Deste modo, falta ao homem
aquela humildade essencial que lhe permite reconhecer a criação como
dom de Deus que se deve acolher e usar segundo o seu desígnio. Ao
contrário, a arrogância do homem que vive como se Deus não existisse,
leva a explorar e deturpar a natureza, não a reconhecendo como uma
obra da Palavra criadora. Neste quadro teológico, desejo lembrar as
afirmações dos Padres sinodais ao recordarem que o facto de «acolher
a Palavra de Deus atestada na Sagrada Escritura e na Tradição viva
da Igreja gera um novo modo de ver as coisas, promovendo um ecologia
autêntica, que tem a sua raiz mais profunda na obediência da fé, (…)
e desenvolvendo una renovada sensibilidade teológica sobre a bondade
de todas as coisas, criadas em Cristo».[352]
O homem precisa de ser novamente educado para se maravilhar,
reconhecendo a verdadeira beleza que se manifesta nas coisas criadas.[353]
Palavra de Deus e culturas
O valor da
cultura para a vida do homem
109. O anúncio joanino
referente à encarnação do Verbo revela o vínculo indissolúvel que
existe entre a Palavra divina e as palavras humanas,
através das quais Se nos comunica. Foi no âmbito desta reflexão que
o Sínodo dos Bispos se deteve sobre a relação entre Palavra de Deus
e cultura. De facto, Deus não Se revela ao homem abstractamente, mas
assumindo linguagens, imagens e expressões ligadas às diversas
culturas. Trata-se de uma relação fecunda, largamente testemunhada
na história da Igreja. Hoje tal relação entra também numa nova fase,
devido à propagação e enraizamento da evangelização dentro das
diversas culturas e nas mais recentes evoluções da cultura
ocidental. Isto implica, antes de mais nada, reconhecer a
importância da cultura como tal para a vida de cada homem. De facto,
o fenómeno da cultura, nos seus múltiplos aspectos, apresenta-se
como um dado constitutivo da experiência humana: «O homem vive
sempre segundo uma cultura que lhe é própria e por sua vez cria
entre os homens um laço, que lhes é próprio também, determinando o
carácter inter-humano e social da existência humana».[354]
A Palavra de Deus
inspirou, ao longo dos séculos, as diversas culturas, gerando
valores morais fundamentais, expressões artísticas magníficas e
estilos de vida exemplares.[355]
Assim, na esperança de um renovado encontro entre Bíblia e culturas,
quero reafirmar a todos os agentes culturais que nada têm a temer da
sua abertura à Palavra de Deus, que nunca destrói a verdadeira
cultura, mas constitui um estímulo constante para a busca de
expressões humanas cada vez mais apropriadas e significativas. Para
servir verdadeiramente o homem, cada cultura autêntica deve estar
aberta à transcendência e, em última análise, a Deus.
A Bíblia
como grande código para as culturas
110. Os Padres sinodais
sublinharam a importância de favorecer um adequado conhecimento da
Bíblia entre os agentes culturais, mesmo nos ambientes secularizados
e entre os não crentes;[356]
na Sagrada Escritura, estão contidos valores antropológicos e
filosóficos que influíram positivamente sobre toda a humanidade.[357]
Deve-se recuperar plenamente o sentido da Bíblia como grande código
para as culturas.
O
conhecimento da Bíblia nas escolas e universidades
111. Um âmbito
particular do encontro entre Palavra de Deus e culturas é o da
escola e da universidade. Os Pastores tenham um cuidado
especial por estes ambientes, promovendo um conhecimento profundo da
Bíblia para se poder individuar, também hoje, as suas fecundas
implicações culturais. Os centros de estudo promovidos pelas
realidades católicas oferecem uma contribuição original – que deve
ser reconhecida – para a promoção da cultura e da instrução. Além
disso, não se deve descuidar o ensino da religião, formando
cuidadosamente os professores. Em muitos casos, isto representa para
os estudantes uma ocasião única de contacto com a mensagem da fé. É
bom que se promova, neste ensino, o conhecimento da Sagrada
Escritura, superando antigos e novos preconceitos e procurando dar a
conhecer a sua verdade.[358]
A Sagrada
Escritura nas diversas expressões artísticas
112. A relação entre
Palavra de Deus e cultura encontrou expressão em obras de âmbitos
diversos, particularmente no mundo da arte. Por isso a grande
tradição do Oriente e do Ocidente sempre estimou as manifestações
artísticas inspiradas na Sagrada Escritura, como, por exemplo, as
artes figurativas e a arquitectura, a literatura e a música. Penso
também na antiga linguagem expressa pelos ícones que,
partindo da tradição oriental, aos poucos se foi espalhando por todo
o mundo. Com os Padres sinodais, a Igreja inteira exprime apreço,
estima e admiração pelos artistas «enamorados da beleza», que se
deixaram inspirar pelos textos sagrados; contribuíram para a
decoração das nossas igrejas, a celebração da nossa fé, o
enriquecimento da nossa liturgia, e muitos deles ajudaram ao mesmo
tempo a tornar de algum modo perceptível no tempo e no espaço as
realidades invisíveis e eternas.[359]
Exorto os organismos competentes a promoverem na Igreja uma sólida
formação dos artistas sobre a Sagrada Escritura à luz da Tradição
viva da Igreja e do Magistério.
Palavra de
Deus e meios de comunicação social
113. Ligada à relação
entre Palavra de Deus e culturas está também a importância da
utilização cuidadosa e inteligente dos meios, antigos e novos, de
comunicação social. Os Padres sinodais recomendaram um conhecimento
apropriado destes instrumentos, estando atentos ao seu rápido
desenvolvimento e aos diversos níveis de interacção e investindo
maiores energias para adquirir competência nos vários sectores,
particularmente nos novos meios de comunuicação, como por exemplo a
internet. Por parte da Igreja, já existe uma si-gnificativa
presença no mundo da comunicação de massa, e o próprio Magistério
eclesial exprimiu-se várias vezes sobre este tema a partir do
Concílio Vaticano II.[360]
A aquisição de novos métodos para transmitir a mensagem evangélica
faz parte da constante tensão evangelizadora dos fiéis, e hoje a
rede de comunicação envolve o mundo inteiro, tendo adquirido um novo
significado o apelo de Cristo: «O que vos digo às escuras, dizei-o à
luz do dia, e o que escutais ao ouvido, proclamai-o sobre os
terraços» (Mt 10, 27). Para além da forma escrita, a Palavra
divina deve ressoar também através das outras formas de comunicação.[361]
Por isso, juntamente com os Padres sinodais, desejo agradecer aos
católicos que lutam com competência por uma presença significativa
no mundo dos mass media, solicitando um empenhamento ainda
mais amplo e qualificado.[362]
Entre as novas formas
de comunicação de massa, há que reconhecer hoje um papel crescente à
internet, que constitui um novo fórum onde fazer ressoar o
Evangelho, na certeza, porém, de que o mundo virtual nunca poderá
substituir o mundo real e que a evangelização só poderá usufruir da
virtualidade oferecida pelos novos meios de comunicação para
instaurar relações significativas, se se chegar ao encontro
pessoal que permanece insubstituível. No mundo da internet,
que permite que bilhões de imagens apareçam sobre milhões de
monitores em todo o mundo, deverá sobressair o rosto de Cristo
e ouvir-se a sua voz, porque, «se não há espaço para Cristo, não há
espaço para o homem».[363]
Bíblia e
inculturação
114. O mistério da
encarnação mostra-nos que Deus, por um lado, comunica-Se sempre numa
história concreta, assumindo os códigos culturais nela inscritos,
mas, por outro, a própria Palavra pode e deve transmitir-se em
culturas diferentes, transfigurando-as a partir de dentro através
daquilo que
Paulo VI chamava a evangelização das culturas.[364]
Deste modo a Palavra de Deus, como aliás a fé cristã, manifesta um
carácter profundamente intercultural, capaz de encontrar e
fazer encontrar culturas diversas.[365]
Neste contexto,
compreende-se também o valor da inculturação do Evangelho.[366]
A Igreja está firmemente persuadida da capacidade intrínseca que tem
a Palavra de Deus de atingir todas as pessoas humanas no contexto
cultural onde vivem: «Esta convicção deriva da própria Bíblia, que,
desde o livro do Génesis, assume uma orientação universal (cf. Gn
1, 27-28), mantém-na depois na bênção prometida a todos os povos
graças a Abraão e à sua descendência (cf. Gn 12, 3; 18, 18) e
confirma-a definitivamente quando estende a “todas as nações” a
evangelização».[367]
Por isso, a inculturação não deve ser confundida com processos de
adaptação superficial, nem mesmo com a amálgama sincretista que
dilui a originalidade do Evangelho para o tornar mais facilmente
aceitável.[368] O
autêntico paradigma da inculturação é a própria encarnação do Verbo:
«A “aculturação” ou “inculturação” será realmente um reflexo da
encarnação do Verbo, quando uma cultura, transformada e regenerada
pelo Evangelho produzir na sua própria tradição expressões originais
de vida, de celebração, de pensamento cristão»,[369]
levedando como o fermento dentro da cultura local, valorizando as
semina Verbi e tudo o que de positivo haja nela, abrindo-a aos
valores evangélicos.[370]
Traduções e
difusão da Bíblia
115. Se a inculturação
da Palavra de Deus é parte imprescindível da missão da Igreja no
mundo, um momento decisivo deste processo é a difusão da Bíblia por
meio do valioso trabalho de tradução nas diversas línguas. A este
propósito, nunca se deve esquecer que a obra de tradução das
Escrituras «teve início desde os tempos do Antigo Testamento quando
o texto hebraico da Bíblia foi traduzido oralmente para aramaico (Ne
8, 8.12) e, mais tarde, traduzido de forma escrita para grego. De
facto, uma tradução é sempre algo mais do que uma simples
transcrição do texto original. A passagem de uma língua para outra
comporta necessariamente uma mudança de contexto cultural: os
conceitos não são idênticos e o alcance dos símbolos é diferente,
porque põem em relação com outras tradições de pensamento e outros
modos de viver».[371]
Durante os trabalhos
sinodais, pôde-se constatar que várias Igrejas locais ainda não
dispõem de uma tradução integral da Bíblia nas suas próprias
línguas. Actualmente quantos povos têm fome e sede da Palavra de
Deus, mas infelizmente não podem ainda ter um «acesso patente à
Sagrada Escritura»,[372]
como desejara o
Concílio Vaticano II. Por isso, o Sínodo considera importante,
antes de mais nada, a formação de especialistas que se dediquem a
traduzir a Bíblia nas diversas línguas.[373]
Encorajo a que se invistam recursos neste âmbito. De modo
particular, quero recomendar que seja apoiado o empenho da Federação
Bíblica Católica para um incremento ainda maior do número das
traduções da Sagrada Escritura e da sua minuciosa difusão.[374]
Bom será que tal trabalho, pela sua própria natureza, seja feito na
medida do possível em colaboração com as diversas Sociedades
Bíblicas.
A Palavra
de Deus supera os limites das culturas
116. No debate sobre a
relação entre Palavra de Deus e culturas, a assembleia sinodal
sentiu necessidade de reafirmar aquilo que os primeiros cristãos
puderam experimentar desde o dia de Pentecostes (cf. Act 2,
1-13). A Palavra divina é capaz de penetrar e exprimir-se em
culturas e línguas diferentes, mas a própria Palavra transfigura os
limites de cada uma das culturas criando comunhão entre povos
diversos. A Palavra do Senhor convida-nos a avançar para uma
comunhão mais vasta. «Saímos da estreiteza das nossas experiências e
entramos na realidade que é verdadeiramente universal. Entrando na
comunhão com a Palavra de Deus, entramos na comunhão da Igreja que
vive a Palavra de Deus. (…) É sair dos limites de cada uma das
culturas para a universalidade que nos vincula a todos, a todos nos
une e faz irmãos».[375]
Portanto, anunciar a Palavra de Deus começa sempre por nos pedir a
nós mesmos um renovado êxodo, deixando as nossas medidas e as nossas
imaginações limitadas para abrir espaço em nós à presença de Cristo.
Palavra de Deus
e diálogo inter-religioso
O valor do
diálogo inter-religioso
117. A Igreja reconhece
como parte essencial do anúncio da Palavra o encontro, o diálogo e a
colaboração com todos os homens de boa vontade, particularmente com
as pessoas pertencentes às diversas tradições religiosas da
humanidade, evitando formas de sincretismo e de relativismo e
seguindo as linhas indicadas pela Declaração do
Concílio Vaticano II
Nostra aetate e desenvolvidas pelo Magistério sucessivo dos
Sumos Pontífices.[376]
O processo veloz de globalização, característico da nossa época,
permite viver em contacto mais estreito com pessoas de culturas e
religiões diferentes. Trata-se de uma oportunidade providencial para
manifestar como o autêntico sentido religioso pode promover entre os
homens relações de fraternidade universal. É muito importante que as
religiões possam favorecer, nas nossas sociedades frequentemente
secularizadas, uma mentalidade que veja em Deus Omnipotente o
fundamento de todo o bem, a fonte inexaurível da vida moral, o
sustentáculo de um profundo sentido de fraternidade universal.
Na tradição judaico-cristã,
por exemplo, encontra-se sugestivamente confirmado o amor de Deus
por todos os povos, que Ele, já na Aliança estabelecida com Noé,
reúne num único e grande abraço simbolizado pelo «arco nas nuvens» (Gn
9, 13.14.16) e que, segundo as palavras dos profetas, pretende
congregar numa única família universal (cf. Is 2, 2ss; 42, 6;
66, 18-21; Jr 4, 2; Sl 47). Na realidade aparecem, em
muitas das grandes tradições religiosas, testemunhos da ligação
íntima que existe entre a relação com Deus e a ética do amor por
todo o homem.
Diálogo
entre cristãos e muçulmanos
118. De entre as
diversas religiões, a Igreja olha com estima os muçulmanos, que
reconhecem a existência de um único Deus;[377]
fazem referimento a Abraão e prestam culto a Deus sobretudo com a
oração, a esmola e o jejum. Reconhecemos que, na tradição do Islão,
há muitas figuras, símbolos e temas bíblicos. Em continuidade com a
importante acção empreendida pelo Venerável
João Paulo II, desejo que as relações baseadas na confiança, que
estão instauradas desde há diversos anos entre cristãos e
muçulmanos, continuem e se desenvolvam num espírito de diálogo
sincero e respeitoso.[378]
Neste diálogo, o Sínodo fez votos de que se possam aprofundar o
respeito da vida como valor fundamental, os direitos inalienáveis do
homem e da mulher e a sua igual dignidade. Tendo em conta a
distinção entre a ordem sociopolítica e a ordem religiosa, as
religiões devem dar a sua contribuição para o bem comum. O Sínodo
pede às Conferências Episcopais que se favoreçam, onde for oportuno
e profícuo, encontros para um conhecimento recíproco entre cristãos
e muçulmanos a fim de se promoverem os valores de que a sociedade
tem necessidade para uma convivência pacífica e positiva.[379]
Diálogo com
as outras religiões
119. Além disso, desejo
aqui manifestar o respeito da Igreja pelas antigas religiões e
tradições espirituais dos vários Continentes; contêm valores que
podem favorecer imenso a compreensão entre as pessoas e os povos.[380]
Muitas vezes constatamos sintonias com valores expressos também nos
seus livros religiosos, como, por exemplo, o respeito pela vida, a
contemplação, o silêncio e a simplicidade, no Budismo; o sentido da
sacralidade, do sacrifício e do jejum, no Hinduísmo; e ainda os
valores familiares e sociais no Confucionismo. Vemos, ainda noutras
experiências religiosas, uma sincera atenção à transcendência de
Deus, reconhecido como Criador, e também ao respeito da vida, do
matrimónio e da família e ainda um forte sentido da solidariedade.
Diálogo e
liberdade religiosa
120. Todavia o diálogo
não seria fecundo, se não incluísse também um verdadeiro respeito
por toda a pessoa para que possa aderir livremente à sua própria
religião. Por isso o Sínodo, ao mesmo tempo que promove a
colaboração entre os expoentes das diversas religiões, recorda
igualmente «a necessidade de que seja efectivamente assegurada a
todos os crentes a liberdade de professar, privada e publicamente a
sua própria religião, e também a liberdade de consciência»;[381]
de facto «o respeito e o diálogo exigem a reciprocidade em todos os
campos, sobretudo no que diz respeito às liberdades fundamentais e,
de modo muito particular, à liberdade religiosa. Tal respeito e
diálogo favorecem a paz e a harmonia entre os povos».[382]
CONCLUSÃO
A palavra
definitiva de Deus
121. No termo destas
reflexões, em que reuni e aprofundei a riqueza da
XII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a
Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja, desejo uma vez mais
exortar todo o Povo de Deus, os Pastores, as pessoas consagradas e
os fiéis leigos a empenharem-se para que as Sagradas Escrituras se
lhes tornem cada vez mais familiares. Nunca devemos esquecer que, na
base de toda a espiritualidade cristã autêntica e viva, está a
Palavra de Deus anunciada, acolhida, celebrada e meditada na Igreja.
A intensificação do relacionamento com a Palavra divina acontecerá
com tanto maior decisão quanto mais cientes estivermos de nos
encontrar, quer na Escritura quer na Tradição viva da Igreja, em
presença da Palavra definitiva de Deus sobre o universo e a história.
Como nos leva a
contemplar o Prólogo do Evangelho de João, todo o ser está
sob o signo da Palavra. O Verbo sai do Pai e vem habitar entre os
Seus e regressa ao seio do Pai para levar consigo toda a criação que
n’Ele e para Ele fora criada. Agora a Igreja vive a sua missão na
veemente expectativa da manifestação escatológica do Esposo: «O
Espírito e a Esposa dizem: “Vem!”» (Ap 22, 17). Esta
expectativa nunca é passiva, mas tensão missionária de anúncio da
Palavra de Deus que cura e redime todo o homem; ainda hoje Jesus
ressuscitado nos diz: «Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Nova
a toda a criatura» (Mc 16, 15).
Nova
evangelização e nova escuta
122. Por isso, o nosso
deve ser cada vez mais o tempo de uma nova escuta da Palavra de Deus
e de uma nova evangelização. É que descobrir a centralidade
da Palavra de Deus na vida cristã faz-nos encontrar o sentido mais
profundo daquilo que
João Paulo II incansavelmente lembrou: continuar a missio ad
gentes e empreender com todas as forças a nova evangelização,
sobretudo naquelas nações onde o Evangelho foi esquecido ou é vítima
da indiferença da maioria por causa de um difundido secularismo. O
Espírito Santo desperte nos homens fome e sede da Palavra de Deus e
os torne zelosos anunciadores e testemunhas do Evangelho.
À imitação do grande
Apóstolo das Nações, que ficou transformado depois de ter ouvido a
voz do Senhor (cf. Act 9, 1-30), escutemos também nós a
Palavra divina que não cessa de nos interpelar pessoalmente aqui e
agora. O Espírito Santo reservou para Si – narram os Actos dos
Apóstolos – Paulo e Barnabé para a pregação e a difusão da Boa
Nova (cf. 13, 2). Também hoje de igual modo o Espírito Santo não
cessa de chamar ouvintes e anunciadores convictos e persuasivos da
Palavra do Senhor.
A Palavra e
a alegria
123. Quanto mais
soubermos colocar-nos à disposição da Palavra divina, tanto mais
poderemos constatar como o mistério do Pentecostes se está a
realizar ainda hoje na Igreja de Deus. O Espírito do Senhor continua
a derramar os seus dons sobre a Igreja, para que sejamos guiados
para a verdade total, desvendando-nos o sentido das Escrituras e
tornando-nos anunciadores credíveis da Palavra de salvação. E assim
regressamos à Primeira Carta de São João. Na Palavra de Deus,
também nós escutámos, vimos e tocámos o Verbo da vida. Por graça,
acolhemos o anúncio de que a vida eterna se manifestou, de modo que
agora reconhecemos que estamos em comunhão uns com os outros, com
quem nos precedeu no sinal da fé e com todos aqueles que, espalhados
pelo mundo, escutam a Palavra, celebram a Eucaristia, vivem o
testemunho da caridade. Recebemos a comunicação deste anúncio –
recorda-nos o apóstolo João – para que «a nossa alegria seja
completa» (cf. 1 Jo 1, 4).
A Assembleia sinodal
permitiu-nos experimentar tudo isto que está contido na mensagem
joanina: o anúncio da Palavra cria comunhão e gera a
alegria. Trata-se de uma alegria profunda que brota do próprio
coração da vida trinitária e é-nos comunicada no Filho. Trata-se da
alegria como dom inefável que o mundo não pode dar. Podem-se
organizar festas, mas não a alegria. Segundo a Escritura, a alegria
é fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5, 22), que nos permite
entrar na Palavra e fazer com que a Palavra divina entre em nós e
frutifique para a vida eterna. Anunciando a Palavra de Deus na força
do Espírito Santo, queremos comunicar também a fonte da verdadeira
alegria, não uma alegria superficial e efémera, mas aquela que brota
da certeza de que só o Senhor Jesus tem palavras de vida eterna (cf.
Jo 6, 68).
«Mater
Verbi et Mater laetitiae»
124. Esta relação
íntima entre a Palavra de Deus e a alegria aparece em evidência
precisamente na Mãe de Deus. Recordemos as palavras de Santa Isabel:
«Feliz daquela que acreditou que teriam cumprimento as coisas que
lhe foram ditas da parte do Senhor» (L c 1, 45). Maria é
feliz porque tem fé, porque acreditou, e, nesta fé, acolheu no seu
ventre o Verbo de Deus para O dar ao mundo. A alegria recebida da
Palavra pode agora estender-se a todos aqueles que na fé se deixam
transformar pela Palavra de Deus. O Evangelho de Lucas
apresenta-nos este mistério de escuta e de alegria, em dois textos.
Jesus afirma: «Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a
palavra de Deus e a põem em prática» (8, 21). E, em resposta à
exclamação duma mulher que, do meio da multidão, pretende exaltar o
ventre que O trouxe e o seio que O amamentou, Jesus revela o segredo
da verdadeira alegria: «Diz antes: Felizes os que escutam a palavra
de Deus e a põem em prática» (11, 28). Jesus manifesta a verdadeira
grandeza de Maria, abrindo assim também a cada um de nós a
possibilidade daquela bem-aventurança que nasce da Palavra acolhida
e posta em prática. Por isso, recordo a todos os cristãos que o
nosso relacionamento pessoal e comunitário com Deus depende do
incremento da nossa familiaridade com a Palavra divina. Por fim,
dirijo-me a todos os homens, mesmo a quantos se afastaram da Igreja,
que abandonaram a fé ou que nunca ouviram o anúncio de salvação. O
Senhor diz a cada um: «Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir
a minha voz e abrir a porta, entrarei em sua casa e cearei com ele,
e ele comigo» (Ap 3, 20).
Por isso, cada um dos
nossos dias seja plasmado pelo encontro renovado com Cristo, Verbo
do Pai feito carne: Ele está no início e no fim de tudo, e n’Ele
todas as coisas subsistem (cf. Cl 1, 17). Façamos silêncio
para ouvir a Palavra do Senhor e meditá-la, a fim de que a mesma,
através da acção eficaz do Espírito Santo, continue a habitar e a
viver em nós e a falar-nos ao longo de todos os dias da nossa vida.
Desta forma, a Igreja sempre se renova e rejuvenesce graças à
Palavra do Senhor, que permanece eternamente (cf. 1 Pd 1, 25;
Is 40, 8). Assim também nós poderemos entrar no esplêndido
diálogo nupcial com que se encerra a Sagrada Escritura: «O Espírito
e a Esposa dizem: “Vem”! E, aquele que ouve, diga: “Vem”! (…) O que
dá testemunho destas coisas diz. “Sim, Eu venho em breve”! Amen. Vem,
Senhor Jesus!» (Ap 22, 17.20).
Dado em Roma, junto
de São Pedro, no dia 30 de Setembro – memória de São Jerónimo – de
2010, sexto ano de Pontificado.
BENEDICTUS PP. XVI
NOTAS
[6] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 2.
[8] Entre as
várias intervenções, de natureza diversa, há que recordar:
Paulo VI, Carta ap.
Summi Dei Verbum (4 de Novembro de 1963): AAS
55 (1963), 979-995; Idem, Motu proprio
Sedula cura (27 de Junho de 1971): AAS 63
(1971), 665-669;
João Paulo II,
Audiência Geral (1 de Maio de 1985): L’Osservatore
Romano (ed. portuguesa de 5/V/1985), p. 12; Idem,
Discurso sobre a interpretação da Bíblia na Igreja
(23 de Abril de 1993): AAS 86 (1994), 232-243;
Bento XVI,
Discurso no Congresso internacional por ocasião do 40º
aniversário da Dei Verbum (16 de Setembro de 2005):
AAS 97 (2005), 957; Idem,
Angelus (6 de Novembro de 2005): Insegnamenti
I (2005), 759-760. Há que citar ainda as intervenções da
Pont. Comissão Bíblica,
De sacra Scriptura et Christologia (1984): Ench.
Vat. 9, n. 1208-1339; Unidade e diversidade na Igreja
(11 de Abril de 1988): Ench. Vat. 11, n. 544-643;
A interpretação da Bíblia na Igreja (15 de Abril de
1993): Ench. Vat. 13, n. 2846-3150;
O povo judeu e as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã
(24 de Maio de 2001): Ench. Vat. 20, n. 733-1150;
Bíblia e moral. Raízes bíblicas do agir cristão (11
de Maio de 2008), Cidade do Vaticano 2008.
[14] Cf.
Relatio ante disceptationem, I.
[15] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 2.
[18] Credo
de Niceia-Constantinopla: DS 150.
[19] São
Bernardo de Claraval, Homilia super missus est, IV,
11: PL 183, 86 B.
[20] Cf. Conc.
Ecum. VAT. II, Const. dogm. sobre a Revela-ção divina
Dei Verbum, 10.
[22] Cf. Congr.
para a Doutrina da Fé, Declaração sobre a unicidade e a
universalidade salvífica de Jesus Cristo e da Igreja
Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000), 13-15: AAS
92 (2000), 754-756.
[23] Cf. In
Hexaemeron, XX, 5: Opera Omnia, V (Quaracchi
1891), p. 425-426; Breviloquium, I, 8: Opera Omnia,
V (Quaracchi 1891), p. 216-217.
[24] Itinerarium
mentis in Deum, II, 12: Opera Omnia, V (Quaracchi
1891), p. 302-303; cf. Commentarius in librum
Ecclesiastes, cap. 1, vers. 11, Quaestiones, II,
3: Opera Omnia, VI (Quaracchi 1891), p. 16.
[25] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 3; cf. Conc. Ecum. Vat. I, Const. dogm.
sobre a fé católica Dei Filius, cap. 2 – De
revelatione: DS 3004.
[28] Cf.
Summa theologiae, Ia-IIae, q. 94, a. 2.
[32] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 14.
[34] «Ho
Logos pachynetai (ou brachynetai)». Cf. Orígenes,
Peri Archon, I, 2, 8: SC 252, 127-129.
[36] Cf.
Mensagem final, II, 4-6.
[37] Máximo o
Confessor, A vida de Maria, n. 89: Textos marianos
do primeiro milénio, 2, Roma 1989, p. 253.
[41] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 4.
[43] São João
da Cruz, Subida do Monte Carmelo, II, 22.
[47] Adversus
haereses, IV, 7, 4: PG 7, 992-993; V, 1, 3: PG
7, 1123; V, 6, 1: PG 7, 1137; V, 28, 4: PG 7,
1200.
[50] Adversus
haereses III, 24, 1: PG 7, 966.
[51] Homiliae
in Genesim, XXII, 1: PG 53, 175.
[52] Epistula 120,
10: CSEL 55, 500-506.
[53] Homiliae
in Ezechielem, I, VII, 17: CC 142, 94.
[54] «Oculi
ergo devotae animae sunt columbarum quia sensus eius per
Spiritum sanctum sunt illuminati et edocti, spiritualia
sapientes. (…) Nunc quidem aperitur animae talis sensus, ut
intellegat Scripturas»: Ricardo de São Víctor, Explicatio
in Cantica canticorum, 15: PL 196, 450 B.D.
[55] Sacramentarium
Serapionis II (XX): Didascalia et Constitutiones
apostolorum, ed. F. X. Funk, II (Paderborn 1906), 161.
[56] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 7.
[60] Cf.
Mensagem final, II, 5.
[61] Expositio
Evangelii secundum Lucam 6, 33: PL 15, 1677.
[62] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 13.
[64] Enarrationes
in Psalmos, 103, IV, 1: PL 37, 1378. Análogas
afirmações em Orígenes, In Iohannem V, 5-6: SC 120,
pp. 380-384.
[65] Cf. Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 21.
[67] Cf.
Propositiones 5 e 12.
[68] Cf. Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 12.
[70] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 11.
[72] Prol.:
Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), pp. 201-202.
[75] Cf.
Relatio post disceptationem, 12.
[76] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 5.
[78] Por
exemplo Dt 28, 1-2.15.45; 32, 1; nos grandes profetas
cf. Jr 7, 22-28; Ez 2, 8; 3, 10; 6, 3; 13, 2;
mas também nos menores: cf. Zc 3, 8. Em São Paulo,
cf. Rm 10, 14-18; 1 Ts 2, 13.
[83] Cf.
Expositio Evangelii secundum Lucam 2, 19: PL 15,
1559-1560.
[84] Breviloquium,
Prol.: Opera Omnia, V (Quaracchi 1891), p. 201-202.
[85] Summa
theologiae, Ia-IIae, q. 106, art. 2.
[87] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 12.
[88] Contra
epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, V, 6: PL
42, 176.
[90] Commentariorum
in Isaiam libri, Prol.: PL 24, 17.
[91] Epistula
52, 7: CSEL 54, 426.
[93] Ibid.,
II, A, 2: o.c., n. 2991.
[94] Homiliae
in Ezechielem I, VII, 8: PL 76, 843 D.
[95] Conc. Ecum.
Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 24; cf. Leão XIII, Carta enc.
Providentissimus Deus (18 de Novembro de 1893), Pars
II, sub fine: ASS 26 (1893-94), 269-292; Bento XV,
Carta enc.
Spiritus Paraclitus (15 de Setembro de 1920), Pars
III: AAS 12 (1920), 385-422.
[100] Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 10.
[102] Ibid.,
4: o.c., 235.
[103] Ibid.,
5: o.c., 235.
[104] Ibid.,
5: o.c., 236.
[111] Cf.
ibid.: o.c. 493; propositio 26.
[112] Ibid.:
o.c. 493; cf. Propositio 26.
[118] Cf.
Santo Agostinho, De libero arbitrio, III, XXI, 59:
PL 32, 1300; De Trinitate, II, I, 2: PL
42, 845.
[119] Congr.
para a Educação Católica, Instr. Inspectis dierum (10
de Novembro de 1989), 26: AAS 82 (1990), 618.
[121] Summa
theologiae, I, q.1, art.10, ad 1.
[124] Ibid.,
II, B, 2: o.c., n. 3003.
[129] De
arca Noe, 2, 8: PL 176, 642 C-D.
[131] Cf.
Propositio 10; Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e
as suas sagradas Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio
de 2001), 3-5: Ench. Vat. 20, n. 748-755.
[134] Cf.
Pont. Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas
Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001), 19:
Ench. Vat. 20, n. 799-801; Orígenes, Homilia sobre
Números 9, 4: SC 415, 238-242.
[138] Quaestiones
in Heptateuchum, 2, 73: PL 34, 623.
[139] Homiliae
in Ezechielem, I, VI, 15: PL 76, 836 B.
[142] Pont.
Comissão Bíblica, O povo judeu e as suas sagradas
Escrituras na Bíblia cristã (24 de Maio de 2001), 87:
Ench. Vat. 20, n. 1150.
[145] Cf.
Propositiones 46 e 47.
[150] Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 23.
[151] Em todo
o caso não se esqueça que, relativamente aos chamados Livros
Deuterocanónicos do Antigo Testamento e à sua inspiração, os
católicos e os ortodoxos não possuem exactamente o mesmo
cânon bíblico que os anglicanos e os protestantes.
[152] Cf.
Relatio post disceptationem, 36.
[157] Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 10.
[159] Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 10
[163] São
Gregório Magno, Moralia in Job 24, 8, 16: PL
76, 295.
[164] Cf.
Santo Atanásio, Vita Antonii, II: PL 73, 127.
[165] Moralia,
Regula 80, 22: PG 31, 867.
[166] Regra
73, 3: SC 182, 672.
[167] Tomás
de Celano, Vita prima Sancti Francisci, IX, 22:
Fontes franciscani, 356.
[168] Regra
I, 1-2: Fontes franciscani, 2750.
[169] Beato
Jordão da Saxónia, Libellus de principiis Ordinis
Praedicatorum, 104: Monumenta Fratrum Praedicatorum
Historica, 16 (Roma 1935), p. 75.
[170] Ordem
dos Padres Pregadores, Primeiras Constituições ou
Costumes, II, 31.
[172] Cf.
História de uma alma, Manuscrito B, 3vº.
[173] Ibid.,
Manuscrito C, 35vº.
[174] In
Iohannis Evangelium Tractatus, I, 12: PL 35,
1385.
[177] Relatio
post disceptationem, 11.
[180] Cf.
Relatio post disceptationem, 10.
[181] Mensagem
final, III, 6.
[184] Ordenamento
das Leituras da Missa, 4.
[186] Ibid.,
3; cf. L c 4, 16-21; 24, 25-35.44-49.
[190] Ibid.,
III, B, 3: o.c., n. 3056.
[191] Cf.
Const. sobre a sagrada Liturgia
Sacrosanctum Concilium, 48.51.56; Const. dogm. sobre
a Revelação divina
Dei Verbum, 21.26; Decr. sobre a actividade
missionária da Igreja
Ad gentes, 6.15; Decr. sobre o ministério e a vida
dos presbíteros
Presbyterorum ordinis, 18; Decr. sobre a renovação
da vida religiosa
Perfectae caritatis, 6. Na grande tradição da Igreja,
aparecem expressões significativas como: «Corpus Christi
intelligitur etiam (…) Scriptura Dei – a
Escritura de Deus também se considera Corpo de Cristo»: Waltramus,
De unitate Ecclesiae conservanda, 1, 14 (ed.
W. Schwenkenbecher, Hannoverae 1883), p. 33; «A carne do
Senhor é verdadeiro alimento, e o seu sangue verdadeira
bebida; tal é o verdadeiro bem que nos está reservado na
vida presente: nutrirmo-nos da sua carne e beber o seu
sangue, não só na Eucaristia mas também na leitura da
Sagrada Escritura. De facto, verdadeiro alimento e
verdadeira bebida é a Palavra de Deus que se absorve do
conhecimento das Escrituras»: São Jerónimo, Commentarius
in Ecclesiasten, III: PL 23, 1092 A.
[193] Ordenamento
das Leituras da Missa, 10.
[199] In
Psalmum 147: CCL 78, 337-338.
[200] Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 2.
[202] Ordenamento
das Leituras da Missa, 66.
[206] Cf.
Código de Direito Canónico, cân. 230-§2; 204-§1.
[207] Ordenamento
das Leituras da Missa, 55.
[209] N. 46:
AAS 99 (2007), 141.
[210] Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 25.
[213] Sermo
179, 1: PL 38, 966.
[215] Congr.
para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,
Compendium Eucharisticum (25 de Março de 2009), Cidade
do Vaticano 2009.
[216] Epistula
52, 7: CSEL 54, 426-427.
[218] Ritual
da Penitência. Preliminares, 17.
[222] Princípios
e normas para a Liturgia das Horas, III, 15.
[224] Cf.
Código de Direito Canónico, cânones 276-§ 3; 1174-§ 1.
[225] Cf.
Código dos Cânones das Igrejas Orientais, cânones 377;
473-§§ 1 e 2/1º; 538-§ 1; 881-§ 1.
[226] Ritual
Romano, Cerimonial das Bênçãos. Preliminares gerais,
21.
[229] Ibid.,
75: o.c., 163.
[230] Congr.
para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos,
Directório sobre Piedade Popular e Liturgia. Princípios e
Orientações (17 de Dezembro de 2001), 87: Ench. Vat.
20, n. 2461.
[232] Cf.
Santo Inácio de Antioquia, Ad Ephesios, XV, 2:
Patres Apostolici (ed. F. X. Funk, Tubingae 1901), I,
224.
[233] Cf.
Santo Agostinho, Sermo 288, 5: PL 38, 1307;
Sermo 120, 2: PL 38, 677.
[234] Ordenamento
Geral do Missal Romano, 56.
[236] Ordenamento
das Leituras da Missa, 13.
[239] Cf.
Ordenamento Geral do Missal Romano, 309.
[242] Cf.
Ordenamento Geral do Missal Romano, 57.
[244] Veja-se
o cânon 36 do Sínodo de Hipona do ano de 393: DS
186.
[245] Cf.
João Paulo II, Carta ap.
Vicesimus quintus annus (4 de Dezembro de 1988), 13:
AAS 81 (1989), 910; Congr. para o Culto Divino e a
Disciplina dos Sacramentos, Instr. sobre alguns aspectos que
se devem observar e evitar em relação à Santíssima
Eucaristia
Redemptionis sacramentum (25 de Março de 2004), 62:
Ench. Vat. 22, n. 2248.
[249] Epistula
30, 7: CSEL 54, 246.
[250] Idem,
Epistula 133, 13: CSEL 56, 260.
[251] Idem,
Epistula 107, 9.12: CSEL 55, 300.302.
[252] Idem,
Epistula 52, 7: CSEL 54, 426.
[254] Propositio
30; cf. Conc. Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação
divina
Dei Verbum, 24.
[255] São
Jerónimo, Commentariorum in Isaiam libri, Prol.:
PL 24, 17B.
[260] N. 128:
Ench. Vat. 16, n. 936.
[265] N. 15:
AAS 96 (2004), 846-847.
[266] N. 26:
AAS 84 (1992), 698.
[267] Ibid.,
26: o.c., 698.
[271] Ibid.,
74: o.c., 263.
[272] Cf.
ibid., 81: o.c., 271.
[279] São
Bento, Regra, IV, 21: SC 181, 456-458.
[290] Cf.
Propositiones 9 e 22.
[292] Enarrationes
in Psalmos, 85, 7: PL 37, 1086.
[293] Orígenes,
Epistola ad Gregorium, 3: PG 11, 92.
[296] Mensagem
final, III, 9.
[298] «Plenaria
indulgentia conceditur christifideli qui Sacram
Scripturam, iuxta textum a competenti auctoritate adprobatum,
cum veneratione divino eloquio debita et ad modum lectionis
spiritalis, per dimidiam saltem horam legerit; si per minus
tempus id egerit indulgentia erit partialis –
Concede-se a indulgência plenária ao fiel que ler a
Sagrada Escritura, num texto aprovado pela autoridade
competente, com a devoção devida à palavra divina e a modo
de leitura espiritual, pelo menos meia hora; se a leitura
durar menos tempo, a indulgência é parcial»: Paenitentiaria
Apostolica, Enchiridion Indulgentiarum. Normae et
concessiones (16 de Julho de 1999), concessão n. 30-§ 1.
[301] Cf.
Epistula 49, 3: PL 16, 1204A.
[309] Cf.
Epistula 108, 14: CSEL 55, 324-325.
[310] Adversus
haereses, IV, 20, 7: PG 7, 1037.
[313] Cf.
In Evangelium secundum Matthaeum 17, 7: PG 13,
1197B; S. Jerónimo, Translatio homiliarum Origenis in
Lucam 36: PL 26, 324-325.
[324] Mensagem
final, IV, 12.
[340] De
doctrina christiana, I, 35, 39 – 36, 40: PL 34,
34.
[372] Conc.
Ecum. Vat. II, Const. dogm. sobre a Revelação divina
Dei Verbum, 22.
[376] De
entre as numerosas e diversificadas intervenções,
recorde-se:João
Paulo II, Carta enc.
Dominum et vivificantem (18 de Maio de 1986): AAS
78 (1986), 809-900; Idem, Carta enc.
Redemptoris missio (7 de Dezembro de 1990): AAS
83 (1991), 249-340; Idem, Discursos e homilias em Assis, por
ocasião do Dia de Oração pela Paz em 27 de Outubro de 1986:
Insegnamenti, IX/2 (1986), 1249-1273; Idem, Dia de
Oração pela Paz no Mundo (24 de Janeiro de 2002):
Insegnamenti XXV/1 (2002), 97-108; Congr. para a
Doutrina da Fé, Decl. sobre a unicidade e universalidade
salvífica de Jesus Cristo e da Igreja
Dominus Iesus (6 de Agosto de 2000): AAS 92
(2000), 742-765.
[377] Cf.
Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com
as religiões não-cristãs
Nostra aetate, 3.
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