DISCURSO
DE MONS. HORACIO DE ARAÚJO
na
abertura do Processo Informativo Diocesano
Se os
primeiros responsáveis do Processo Informativo Diocesano da Beata
Alexandrina foram os italianos P.e Humberto Pasquale e P.e Heitor
Calovi, o Mons. Horácio de Araújo, da Arquidiocese de Braga, teve na
abertura esta brilhante intervenção.
O
sentido das latinas citadas pode-se descobrir através duma rápida
pesquisa no Google.
José Ferreira
* * * * *
Em 13 de
Outubro de 1955, na freguesia de Balasar, adormeceu santamente, nos
braços do Pai, Alexandrina da Costa, vulgarmente conhecida por
"Alexandrina de Balasar”.
A notícia
da sua morte na sua casa do Calvário – assim se intitulava o lugar onde
vivia – para o esplendor da
Glória
da imortalidade, correu célere por todo o País, trazendo para
junto do seu cadáver, alguns milhares de pessoas desejosas de prestar as
últimas homenagens a quem, durante a vida terrena, só teve a preocupação
de fazer a vontade do Senhor. Eu tive conhecimento dessa notícia,
na freguesia de Arcos – Vila do Conde – onde então me encontrava no
ministério da pregação. Manhãzinha cedo, quando me dirigia para a Igreja
Paroquial, ouvia, aqui e além, grupos de pessoas comentando o
acontecimento com estas simples, mas significativas palavras: “Morreu a
santa de Balasar”. Quis a bondade do Senhor que participasse no seu
funeral. E do que observei pude concluir que o funeral da Alexandrina
foi o primeiro dia da exaltação das suas virtudes. Na verdade, a Igreja
de Balasar, embora ampla e espaçosa, tornou-se bem pequena para
comportar o número de pessoas que ali acorriam de perto e de longe, a
fim de venerar um corpo que foi instrumento dócil duma alma que sempre o
dominou e venceu. E não era apenas a gente humilde do campo ou da
fábrica, eram pessoas de todas as classes sociais. Enquanto se
celebravam os ofícios fúnebres, vi homens da indústria, do comércio,
militares graduados a desfilarem ininterruptamente diante do seu
cadáver, e beijavam aqueles pés que jamais vacilaram no cumprimento do
dever. Talvez, minhas Senhoras e meus Senhores, pareça estranho que eu
comece a falar da sua morte… é que a morte, bem sabem, é o reflexo da
vida, e preferi começar a falar sobre a sua morte para, agora, algo
dizer sobre a vida da Alexandrina de Balasar.
Será essa
dissertação um humilde depoimento do que eu vi, do que observei e do
juízo que faço sobre os factos que observei e de que fui testemunha
ocular na sua vida. Devo até dizer que evitei qualquer leitura ao
preparar este modesto trabalho, para não me deixar influenciar por essa
mesma leitura. Vou sintetizar este meu depoimento, este testemunho sobre
a Alexandrina, nestes dois pontos: como conheci a Alexandrina? qual a
minha opinião pessoal sobre a sua vida?
Como a conheci.
Decorria o
ano de 1933: era eu aluno do Seminário Conciliar de Braga e, num retiro
espiritual preparatório para as Ordenações, o conferente falava de almas
que se entregavam ao Senhor numa doação total e sem reservas,
oferecendo-se vítimas pela conversão dos pecadores. Recordo-me que ele
citava várias dessas almas e acrescentou: mas não é preciso recorrermos
ao passado: no presente nós temos destas almas, elas abundam em todo o
mundo e temos uma na nossa Diocese. E citou o caso de Balasar. Passados
anos, a obediência aos meus superiores hierárquicos levou-me para a
freguesia de Ronfe, onde me encontro. Várias vezes me falaram da
Alexandrina de Balasar. Confesso que, no princípio, mostrava-me um pouco
indiferente. Depois, comecei por dizer: ou isto é obra de Deus ou obra
humana. Se for obra de Deus, Deus a começou e Deus a completará. Se for
obra humana, por não ter bases, num futuro mais ou menos próximo, ela
há-de ruir, porque nada é estável e duradoiro que se baseie simplesmente
naquilo que é humano. Passaram-se os anos e os fenómenos místicos iam-se
repetindo e a fama das suas virtudes voava de um extremo ao outro do
País, ultrapassando até as próprias fronteiras da Pátria, levada talvez
por emigrantes que fixavam a sua residência lá longe.
Tive então
que conhecer a Alexandrina, e bendigo ao Senhor por me ter proporcionado
essa ocasião. Um dia o correio trouxe-me às mãos uma carta da
Alexandrina: era um convite para pregar na sua freguesia, depois de
prévia autorização do respectivo pároco, convite este a que se seguiram
alguns outros. Recordo-me da ocasião, e vale bem a pena citar neste
momento – porque vem mesmo a propósito – o porquê desse convite. Creio
que foi pelo ano de 1953, época em que várias incursões se repetiam na
Índia Portuguesa, numa tentativa de arrebatar aquilo que era nosso,
muito nosso. Tentativa essa que se tornou, bem o sabemos, um facto
consumado. Mas a Alexandrina era uma alma toda de Deus e amava a sua
Pátria (e amar a Pátria também é virtude, não é defeito), e, doente como
estava na sua cama, sabendo do que se passava, escreve-me uma carta a
pedir-me para pregar uma vigília em que durante a noite inteira a gente
boa de Balasar se havia de ajoelhar diante do Rei da paz, a pedir ao
Senhor a integridade da nossa Pátria. Fui, conversei com a Alexandrina
e, desde então, as minhas visitas repetiram-se, não tantas quanto eu
desejava, porque a isso não mo permitiam os meus deveres paroquiais. Só
posso dizer, e devo dizer, que, sempre que falava com a Alexandrina, eu
vinha mais sacerdote, tinha mais zelo pela salvação das almas. Nunca nos
lábios da Alexandrina uma conversa banal: ou falava de Deus ou das
coisas que a Deus conduziam. E isto, meus Senhores, não constitui
surpresa para ninguém: a palavra transborda do coração, e quando um
coração está cheio de Deus, a palavra sabe ao divino. Por isso na boca
da Alexandrina ou se falava de Deus ou das coisas que ao Senhor
conduzem.
Um dia,
durante cerca de meia hora, falava-me a Alexandrina do mistério da SS.
Trindade, da vida íntima de Deus e da graça santificante. Recordo esse
dia como se fosse hoje: e não sei que mais admirar nessa conversa que
teve comigo, se a elevação, a sublimidade dos conceitos, se a clareza da
linguagem. E nós sabemos muito bem que tratando-se destes assuntos não é
fácil aliar as duas coisas. Pergunto: donde veio este conhecimento à
Alexandrina? Ela tinha uma cultura rudimentar. Ela não leu grandes
compêndios de teologia... Donde lhe veio, Senhores, esta ciência? Esta
ciência veio do Autor de toda a ciência, da Ciência incriada, da Ciência
infalível, veio-lhe do Senhor. Falava desta ciência, da vida íntima de
Deus, como o mais hábil teólogo, como ninguém podia falar de coisas tão
altas, tão sublimes. Uma alma que vivia sempre na maior intimidade com
Deus! É que o Senhor esconde estas coisas aos sábios e dá-as a conhecer
aos humildes: Abscondisti haec a sapientibus.
O Senhor,
junto do Mar de Teberíades, prega um dia um grande sermão, que poderemos
reduzir em oito capítulos – oito pontos fundamentais – as oito
bem-aventuranças. E uma dessas era: Bem-aventurados os puros do coração!
É que, meus Senhores, as almas puras vêem a Deus, contemplam a Deus, não
como eu contemplo os meus ouvintes nem como os meus ouvintes me
contemplam a mim, mas para me servir da imagem do Apóstolo, como através
de um espelho, assim como o sol quando se reflecte num cristal puríssimo
parece condensar-se naquele cristal e quando eu olho o cristal
atravessado pelos raios solares tenho a impressão de que ali vejo o
próprio sol, sem no entanto o vidro deixar de ser vidro, assim também na
alma pura reflecte-se a divindade e ela tem um conhecimento profundo de
Nosso Senhor Jesus Cristo, de Deus e da Sua vida íntima. Porquê
encontramos nós criancinhas inocentes e humildes a falarem de Deus com
uma elevação que nos espanta? Por causa da sua pureza. Assim a
Alexandrina. Não admira, pois, que ela mais falasse.
Estive
presente em alguns dos seus êxtases, com licença do assistente, Sr. Dr.
Azevedo, a quem me confesso muito grato por esta deferência, mas
confesso que não foram os êxtases que mais me impressionaram, se bem que
ao assistir aos êxtases da Alexandrina concluí que nesses havia a
intervenção sobrenatural. Eram êxtases místicos, muito diferentes de
fenómenos provenientes de origem mórbida, em que o paciente, após o
êxtase – se assim lhe podemos chamar – quando regressa ao seu estado
normal, encontra-se abatido, cansado, fatigadíssimo, a ponto de por
vezes nem poder articular palavra. Mas eu vi como a Alexandrina –
permita-se-me a expressão – despertava do seu êxtase: ela perecia
outra, mas sempre a mesma. A limpidez do seu olhar, o equilíbrio dos
seus gestos, das suas atitudes, a suavidade das suas palavras, enfim,
tudo nela fazia crer que estávamos perante uma criatura normal. Nunca
duvidei dos seus êxtases. Mas o que mais me impressionou eram as
palavras que a Alexandrina dirigia aos circunstantes – e não eram muitos
– que tomavam parte nesses êxtases. Estava, belo dia, com cinco
sacerdotes da Diocese do Porto. A Alexandrina entra em êxtase. No fim do
êxtase olhou para nós, falou do sacerdócio, da necessidade de padres
santos… e confesso que nunca ninguém me falou assim. E um dos presentes,
da Diocese do Porto – tenho pena de não recordar o seu nome, para o
citar – voltou-se para mim e disse: “Padre, que diz de tudo isto?” E eu
disse-lhe: “Colega, gostei mais do após-êxtase do que do êxtase até.
Nunca ninguém me soube falar assim da santidade, da necessidade da
santidade do sacerdote. Tenho a impressão, acrescentei, que o Espírito
Santo falou pela boca da Alexandrina”. Os colegas presentes concordaram
todos plenamente comigo. Era assim a Alexandrina, assim a conheci.
Que penso eu da Alexandrina? Que juízo faço dela através desses
contactos pessoais?
De tudo
tirei uma conclusão: a Alexandrina era uma alma que vivia na intimidade
com Deus. Intimidade esta que a levava à contemplação do divino. Só
assim se pode explicar a maneira como ela falava de Deus e dos mistérios
da Fé. Em segundo lugar, a Alexandrina era uma presença de Cristo,
presença viva, presença irradiante. Cristo transparecia nela como a luz
através do cristal. Transparecia na pureza do seu olhar, na serenidade
do seu rosto, nos seus gestos, nas suas atitudes: vê-la era ver a
Cristo. Sim, presença viva e irradiante, pois que, meus Senhores, quando
Deus está presente puma alma, não está inactivo, e esta presença
manifesta-se, revela-se, é um fogo que aquece, e quem está junto de nós
tem a noção desta presença. E quantos se aproximavam da Alexandrina,
desencontrados com Deus e quando se afastavam do seu quartinho, modesto
e simples, já tinham encontrado a Deus! Afastavam-se chorando os seus
pecados – há testemunhas – e dali corriam pressurosos para junto de um
confessor, a fim de lavar as suas culpas no banho salutar da Penitência.
Era assim a Alexandrina: uma presença de Cristo, viva e irradiante. Era
apaixonada pelos pecadores; vivia para eles. Por eles oferecera a sua
vida ao Senhor, estava em tudo associada à Paixão do Senhor, era uma
co-redentora com Cristo. Algumas vezes lhe ouviu estas palavras: “Os
pecadores não ouvem, não ouvem os pedidos de Jesus, não acolhem as suas
súplicas. Que pena eu tenho de Jesus!" – E assim oferecia os seus
sofrimentos. Com que resignação e inalterável paciência sofria a
Alexandrina de Balasar! Como ela sabia falar aos pecadores! Como ela
penetrava no íntimo das suas almas e como ela conseguia transformar os
corações! Dir-se-ia que o Senhor escolhera no século XX aquela vítima
para Lhe dar almas, muitas almas, e ela cumpriu a sua missão.
Porque ele
amava tanto a Jesus, com amor ardente e generoso, ela também não podia
deixar de amar ardentemente a Mãe de Jesus, a Virgem Imaculada. Algumas
vezes, entrando no seu quarto, encontrei-a com uma imagem de Nossa
Senhora de Fátima nas mãos. Olhava para ela com aquela ternura, com
aquele carinho com que uma filha olha para a mãe. Chamava-lhe muitas
vezes a Mãezinha do Céu, a quem recorria nas duras provas a que o Senhor
a submeteu. Não esqueçamos que as almas a quem Deus mais ama são as
almas a quem o Senhor faz passar as maiores provações; e ela teve-as,
porque o Senhor a amava muito.
Pois bem,
no meio dessas provações, ela recorreu continuamente à Mãezinha, como
ela dizia. – E de Jesus e de Maria ela aprendeu a virtude da humildade.
Aprendeu na escola do Mestre: “Aprendei de Mim que sou manso e humilde
de coração”, diz o Senhor. E permitam-me que lhes conte como em certo
dia eu quis experimentar a sua humildade. Perdoe-me o Senhor esta
temeridade. Fiz-lhe esta pergunta: Alexandrina consta por aí que recebeu
do Céu o dom, o carisma especial do discernimento dos espíritos, isto é,
consta que a Alexandrina sabe o que se passa nas consciências. Eu mesmo
estava à espera duma resposta afirmativa ou negativa. Se me respondesse
sim, eu não tinha que duvidar, porque a humildade é verdade; no entanto
devo dizer que gostei muito mais da resposta que me deu, porque vi mais
uma vez que e Alexandrina de Balasar procurava esconder-se – ama
nesciri. Era o lema da sua vida; ela gostava de ocultar as suas
virtudes aos olhos do mundo. E querem saber a resposta? Vale a pena
ouvi-la. “O senhor Padre, disse ela, dedica-se a pregação, e tem-lhe
acontecido, certamente, uma vez ou outra, tratar de um assunto
determinado nos púlpitos sagrados, e alguém talvez o tenha abordado no
fim do sermão para lhe dizer, a propósito ou até a despropósito: – O
senhor parece que adivinhou a minha vida, o senhor acertou em cheio o
que se passa cá dentro da minha alma. Como é que o senhor soube isto? –
Ora, comigo dá-se a mesma coisa. Como sabe, recebo frequentes
visitas, diariamente. Olho para as pessoas (pela aragem se vê quem vem
na carruagem), falo para essas pessoas, dou-lhes os meus conselhos,
tendo em conta o que ouvi no decorrer da conversa, tendo em conta a
idade, as condições da vida, o estado, o ambiente em que vivem, etc.
portanto, eu vejo mais ou menos os conselhos que competem a esta ou
àquela classe depois e é natural que o chapéu assente muitas vezes e
perfeitamente nesta ou naquela pessoa. Ora, é a razão por que dizem que
adivinho, tal e qual como acontece com V. Rev.cia”. Devo dizer que
gostei imenso daquela resposta. Compreendem a razão da minha pergunta...
Não queria
abusar mais da vossa paciência e, portanto, vou sintetizar num minuto
tudo o que disse em todo este tempo:
Primeiro:
a Alexandrina foi uma apaixonada de Deus e uma apaixonada dos pecadores.
Segundo: a
Alexandrina adoptou por lema da sua vida o do Apóstolo: Mihi vivere
Christus est, o meu viver é Cristo.
Terceiro:
os caminhos que levaram a Alexandrina à santidade, melhor direi, ao
encontro de Cristo foram os da pureza e de humildade. Evidentemente isto
supõe uma fé viva e ao mesmo tempo um esperança, uma confiança
ilimitada.
Quarto: a
Alexandrina ofereceu-se como vítima ao Senhor, e o Senhor aceitou esta
oferta.
E um dia,
numa casa de Balasar, modesta e pobre, onde ela vivera o seu martírio
prolongado, um dia, um quarto transformou-se em autêntico calvário, uma
cama transformou-se numa cruz, pregada nessa cruz uma vítima, essa
vítima é a Serva de Deus Alexandrina Maria da Costa.
E Deus,
que se compraz em premiar aqueles que Lhe são fiéis, cumprirá ou cumpre
a Sua palavra; e a palavra do Senhor é esta, que todos conhecemos muito
bem: Aquele que se humilha será exaltado, será glorificado. Per
crucem ad lucem. Pela cruz à luz imarcescível da glória.
E, para
finalizar, permitam-me os de Balasar: sê digno do grande tesouro que a
tua freguesia encerra, dá graças ao Senhor!
Tenho
dito. |