Corria
o ano de 303 da era cristã. Oteomero, de uma distinta família romana
tinha sido governador de Braga e era actualmente Senador, gozava da
sua alta posição e da sua imensa fortuna. Tinha uma única filha,
Engrácia,
que era formosíssima. Mas tão singela e tão modesta, fugindo do luxo
e dos divertimentos pagãos que seu pai andava preocupado querendo
adivinhar a razão de Engrácia não se parecer com as raparigas da sua
posição. Pensava no casamento da sua filha, via nela o futuro da sua
casa e resolveu mandá-la à Gália, preparando-lhe ali o enlace com um
jovem general romano. Mas como são diferentes os caminhos de Deus...
Numa
tarde de Outono, o pai e a filha encontravam-se passeando nos
magníficos jardins do palácio, a atmosfera estava impregnada do
perfume das flores e os cachos maduros penduravam-se nas grades de
bronze dourado. Oteomero sentou-se junto de uma fonte e chamando a
filha começou a falar-lhe no assunto que tanto o interessava.
Sentia-se velho, e não queria morrer sem deixar um herdeiro à sua
casa, mas... a resposta de Engrácia admirou-o.
– Minha
filha a tua linguagem é a dos cristãos escravos de uma cruel
divindade à qual sacrificam tudo.
– Não
meu pai, o Deus dos cristãos não é um tirano, é um salvador
amabilíssimo que morreu na cruz para salvar os homens, feitos à sua
imagem e semelhança, quando pecam, estende-lhes os braços
oferecendo-lhes a sua misericórdia e ensinando-lhes o
arrependimento, como compará-los aos vossos Deuses?
Oteomero estava indignado com aquela linguagem, mas não querendo
afligir a filha que era todo o seu enlevo, disse-lhe:
–
Engrácia, sê condescendente com o teu pai. Conheci em Barcelona,
Endonte, general romano de uma família distintíssima, ligado à
nossa, tem a simpatia do Imperador e está comandando as legiões
romanas na fronteira da Gália, é esse jovem que te escolhi para
esposo.
Engrácia baixou a cabeça, e humildemente mas firme, respondeu:
–
Desposar-me eu? Nunca meu pai!
Oteomero tapando o rosto com as mãos exclamou:
– A
minha única filha, a alegria dos meus últimos dias destrói com uma
palavra todas as minhas ilusões!
– Pai,
se eu pudesse satisfazer os teus desejos, mas... há um sentimento
mais alto que me conduz. Não posso aceitar o esposo que me
destinais.
Oteomero cheio de esperança diz-lhe:
–
Filha, se é outro o teu escolhido diz-me o seu nome, não tardarei em
lhe abrir os braços.
Então,
Engrácia transfigurada exclamou:
– O meu
esposo é Jesus-Cristo, eu sou cristã!
–
Infeliz!!! – rugiu Oteomero empurrando a filha e desapareceu.
A noite
desceu sobre o palácio do velho Senador, e pensamentos terríveis o
agitaram... «Se chega aos ouvidos do Imperador a decisão da minha
filha a que martírios, ela está exposta!». Tudo lhe parecia um sonho
– «Quem revelaria a Engrácia essa doutrina?». Fora de si, mandou
chamar o cunhado.
– Sabes
a nossa desgraça? Engrácia é cristã!
Este
por sua vez calava-se e depois de muito instado, confessou: – Também
eu sou cristão pela graça de Deus. Foi uma pobre escrava, pobre para
o mundo, mas rica aos olhos de Deus, quem me converteu a mim e à tua
filha.
Passou
tempo, mas Oteomero não desistiu, e na Primavera acompanhada de um
brilhante séquito, partia Engrácia para Saragoça. Uma visão do
futuro tinha feito a Santa Mártir exultar de alegria, mas deixar o
pai tão velho e pagão fazia-lhe sangrar o coração. Na véspera de
partir, reunira num dos seus aposentos, transformado em oratório,
todos os escravos cristãos, suplicando fervorosamente a Deus a
conversão de Oteomero. Nisto, o velho Senador que escondido tudo
tinha observado, entrou e exclamou abraçando a filha:
–
Grande é o vosso Deus, pois uma jovem humilde e tímida como
Engrácia, pôde levantar-lhe em minha casa um altar, e reunir aqui os
meus melhores escravos. Não sabia que o meu palácio estava cheio de
cristãos. Se o vosso Deus é poderoso como dizeis, ele dissipará as
minhas trevas e se resistirdes às perseguições de que são vítimas os
discípulos de Cristo, também eu abraçarei a vossa fé!
Saragoça, cidade privilegiada de Maria. Conta Maria de Agreda, na
Mística Cidade de Deus, o que se segue.
Estava
S. Tiago Apóstolo pregando em Saragoça, quando um dia lhe apareceu
Nossa Senhora rodeada de uma multidão de Anjos que traziam uma
coluna de mármore ou jaspe e uma pequena estátua da Mãe de Deus.
Nossa Senhora ordenou aos anjos que colocassem a sua estátua sobre a
coluna e a pusessem no sítio onde ainda hoje está. Disse a S. Tiago
que queria ali um templo em sua honra, onde ficaria a coluna e a sua
imagem até ao fim do mundo, e que protegeria a Espanha!
A
primeira visita de Engrácia em Saragoça foi a Nossa Senhora do
Pilar. A sua entrada na cidade não passou despercebida, devido à sua
formosura e ao brilhante séquito que a acompanhava.
Reinava
Diocleciano, e uma nova era de perseguições, ia começar. Daciano,
perfeito romano chegava a Saragoça para lhe dar início.
Acompanhava-o Endonte, general romano, noivo que Oteomero destinava
a sua filha. Era um belo moço e sabendo pelo pai da chegada de
Engrácia a Saragoça, queria vê-la. No seu orgulho, não duvidou um
instante do consentimento dela e convidou para a boda os seus
amigos. Fascinado com a formosura da Lusitana, pediu a sua mão,
sabendo ser essa a vontade de Oteomero. Mas ela dirigindo-lhe
palavras que ele como pagão não podia compreender, acabou dizendo:
– Nunca
aceitarei um esposo humano.
– Mas
para quê viestes então a Saragoça?
– Para
cumprir a vontade de Deus – respondeu Engrácia.
O
general cheio de orgulho e cólera quis replicar, mas a Santa
mostrando-lhe a saída retirou-se, dizendo-lhe: – Endonte, Deus te
perdoe e ilumine!
A
perseguição desencadeou-se terrível. Daciano queria saber o número e
o asilo dos cristãos. Procurou o general romano e disse-lhe: – O
édito vai ser afixado esta noite, os altares estão prontos para os
sacrifícios, espero uma boa presa, uma mulher, uma estrangeira a
quem ninguém ousa prender, mas que em breve estará em meu poder.
Conhece-la? É aparentada com a nossa família.
– Seja
o que for – respondeu Endonte com dureza. – Se é cristã tem de
morrer!
Engrácia não aparecia, não chegara ainda o dia da vitória.
Depois
de buscas infrutíferas, espalhou-se que os cristãos se tinham
refugiado na Igreja do Pilar. Endonte juntou as suas tropas e
avançou para o templo, mas à porta estacou; supersticioso e cobarde,
receou entrar no templo de Maria. Vendo que as suas tropas se
recusavam também, mandou rodear a Igreja de matérias inflamáveis e
deitar‑lhe fogo. Mas... o poder incomparável de Nossa Senhora, ardeu
tudo, mas o templo ficou intacto. Depois de muitas pesquisas,
Endonte conseguiu entrar nas catacumbas, junto ao Èbro, era ali que
se reuniam os cristãos; para isso seguiu uma piedosa mulher
conhecida de sua irmã Marcela, esta também já cristã de desejo.
Endonte seguiu, os cristãos estavam em oração. Imediatamente se
ouviu o tilintar das armas dos soldados romanos que entravam à ordem
de Endonte.
– Quem
procuras?
–
Engrácia.
E a
Santa Virgem, que mais parecia um anjo que uma criatura, esperando
salvar os seus irmãos, avançou dizendo com um santo orgulho: – Sou
eu!
Os
cristãos foram massacrados e a Virgem lusitana levada em ferros para
a prisão. Levantou-se o tribunal na praça pública de Saragoça e
Engrácia foi conduzida à presença do perfeito romano. Á sua entrada
houve um sussurro na multidão.
– És
cristã? – perguntou Daciano.
– Tenho
essa imensa ventura.
– Teu
pai educou-te no culto dos Deuses?
– Eu só
adoro o verdadeiro Deus.
– Estás
noiva de um ilustre general romano?
– O meu
único esposo é Jesus Cristo.
– Sabes
que tenho o poder de te fazer sofrer as maiores torturas? Sacrifica
aos nossos Deuses!
– Jesus
Cristo é o defensor das virgens, nunca adorei aos vossos Deuses, só
adoro Jesus Cristo, filho de Deus, criador de todas as coisas.
Nisto,
ouve-se um clamor imenso sair da multidão. – Ao fogo, ao fogo com a
lusitana!!!
Daciano
mandou-a reconduzir à prisão, dizendo que ele mesmo, escolheria os
suplícios que ela devia sofrer.
Engrácia, como o divino esposo foi presa a uma coluna e cruelmente
açoitada; em seguida amarrada a dois fogosos cavalos numa corrida
vertiginosa, desconjuntaram, rasgaram o corpo da Santa Virgem; era
uma chaga, mas levaram-na ao cárcere ainda com vida. Nos seus lábios
via-se um sorriso celestial, e quando piedosas mulheres entraram na
prisão, acharam-na em extasies, voltando a si disse-lhes: – Porque
choram? Se é hoje o dia mais feliz da minha vida, o corpo sofre, mas
a alma goza, porque tem o penhor da vida eterna. Ah! O Céu! Se
soubésseis o que é o Céu!
O Bispo
indo visitá-la, quis dar-lhe ânimo com estas palavras: – Feliz minha
filha, derramastes o vosso sangue por Jesus Cristo.
– Ainda
não – respondeu ela. – O meu divino esposo disse-me que tenho
martírios mais atrozes a sofrer, tenho almas a salvar e não há
redenção sem sacrifícios.
Daciano, instrumento do inferno preparava novos suplícios, entraram
no cárcere cinco algozes que mais uma vez quiseram obrigar Engrácia
a sacrificar aos Deuses, mas inutilmente. Estenderam a Santa Mártir
no chão, pés e mãos presos em argolas de ferro, metidas nas paredes,
e arrancando-lhe o fato colado às chagas, rasgaram-lhe o corpo com
pentes e unhas de ferro, tirando-lhe parte do fígado. Engrácia
pronunciava os nomes de Jesus e Maria. Neste momento entra na prisão
Daciano, enraivecido com a constância de Engrácia, exclama: – Por
toda a parte os cristãos, como exterminá-los? Talvez os carcereiros
o sejam também! – e vendo a Santa Virgem ainda com vida, tenta ele
mesmo acaba-la pela última vez. Engrácia por sinais recusou; mandou
anda cortar-lhe o peito do lado do coração, a mártir caiu para cima
do algoz mas não morreu, Deus conservava-lhe a vida milagrosamente.
Então,
Daciano, cheio de terror e raiva disse:
– É
preciso acabar coma lusitana! – e mandou vir um prego e martelo, o
fez entrar na testa de Engrácia que a seguir expirou!
Querendo mais vítimas, mandou ali mesmo degolar Marcela, irmã do
general romano, um triunfo de Engrácia que com o seu martírio tinha
alcançado a Deus a conversão da jovem romana e de seu pai Oteomero,
martirizado em Braga.
Passava-se isto a 16 de Abril.
Daciano
convenceu-se que os cristãos se atemorizassem com os suplícios de
Engrácia. Os mártires de Saragoça contam-se aos milhares. Os
cristãos puderam enterrar o cadáver da Santa Mártir nas catacumbas,
e nesse momento viram anjos revestidos de dalmáticas encarnadas,
encessando com turibulos de ouro; as catacumbas iluminaram-se
maravilhosamente e coros angélicos entoaram cânticos harmoniosos.
Passados dias o general romano adoeceu gravemente e sentindo-se
morrer, arrastou-se até ao túmulo de Engrácia e de Marcela. O Bispo
Valero que vinha orar junto das Santas Mártires, reconheceu-o e
vendo-o moribundo, perguntou-lhe:
– Que
queres? O baptismo?
Endonte
respondeu:
– O
sangue da minha irmã Marcela caiu nos meus olhos e a minha alma
abriu-se à verdade.
Depois
de baptizado, voltando-se para o túmulo das Santas Virgens,
exclamou:
– Elas
me abriram o Céu! Meu Deus, que excesso de misericórdia e de amor. |