A 29
de Julho de 1858 nasceu, em Alcochete, o Padre Francisco Rodrigues
da Cruz. Esta Vila já notável, entre outros motivos, por ter sido o
berço de D. Manuel I, o Venturoso, e do Beato Manuel Rodrigues, um
dos 40 mártires do Brasil, viu crescer a sua importância, por aqui
ter nascido, aquele que já em vida era conhecido pelo Santo Padre
Cruz, que esperamos, um dia, venerar nos altares. A humanidade
celebra na sua história inúmeros grandes acontecimentos.
***
Mas os
grandes acontecimentos humanos são aqueles em que nasce um santo,
pois o nascimento de um santo tem
repercussões
eternas. É que o santo não é apenas um homem virtuoso que Deus
premeia no fim da jornada.
Um
santo não é apenas um lutador que venceu no bom combate, ou um fiel
servidor que adquiriu o hábito do dever.
Um
santo é um semeador de ideal que espalha o bem e prepara colheitas
para o céu. Do nascimento do Santo Padre Cruz em Alcochete nos
orgulhamos todos nós, juntamente com a Vila de Alcochete, porque ela
foi o berço daquele que seria outro S. João Maria Vianney, o Santo
Cura d'Ars, que faleceu uma semana depois de nascer o Santo Padre
Cruz. Esta coincidência parece dizer-nos que Deus não queria apagar
uma luz sem nos deixar outra acesa. Santo foi o nome que lhe puseram
já aos 35 anos de idade e a fama de santidade foi sempre em aumento,
até ao seu falecimento. Bispos, sacerdotes, pessoas de todas as
categorias sociais o tinham por santo e como tal o veneravam. E esta
fama cresceu a tal ponto que, depois da morte, o seu jazigo, no
cemitério de Benfica, é visitado diariamente, por muitos fiéis, que
lá vão cumprir promessas, pedir e agradecer graças, alcançadas de
Deus, por sua intercessão.
É certo
que, por vezes, se notam exageros a raiar pela crendice ou
superstição. Claro está que o Padre Cruz não tem culpa daquilo que
não é querido nem desejado por ele. Toda a sua vida foi um serviço
de amor a Deus, servindo os homens. Num tempo crítico para a Igreja
de Portugal, num tempo de perturbação da ordem e da negação de
tantos valores, teve lugar a acção apostólica do Padre Cruz. A sua
figura inconfundível foi para o povo português católico, naquele
tempo, uma âncora salvadora: levemente corcovado, um sorriso de
inocência sempre no seu rosto fatigado, um ar de recolhimento
habitual, perdido em Deus, na intimidade divina que o atraía a
desprender-se dos bens terrenos, para os dar generosamente aos mais
necessitados que encontrava. Mesmo nos tempos mais revoltosos e
intolerantes, o Padre Cruz trajava sempre batina e roupão
eclesiástico, e na cabeça, um largo chapéu, já gasto pelo uso. Assim
o conheceu Portugal, assim se recordam dele, hoje, muitos que o
conheceram. A presença do Padre Cruz em missões e tríduos pelas
aldeias e vilas do país; o encontro do Padre Cruz nos comboios, nas
ruas de Lisboa, nas Igrejas, nas cadeias, nos hospitais, sempre
aliviando penas, confortando misérias, dando coragem aos timoratos e
oferecendo certezas duma renovação cristã aos desalentados, era um
espectáculo a que Portugal se habituara. Sim, porque o Padre Cruz
foi o Apóstolo que Deus deu a Portugal naqueles tempos agitados.
Apóstolo da Caridade lhe chamaram, e a placa da Avenida do Padre
Cruz em Lisboa, a todos o lembra. Todo o apóstolo compreende a
sensibilidade dos homens do seu tempo. E o Padre Cruz, enquanto
viveu compreendeu os seus contemporâneos, e esta compreensão deu-lhe
um acesso relativamente fácil aos corações sedentos de verdade, de
ideal, de transcendência. O seu programa de apostolado traçou-o, em
1925, numa carta escrita ao Sr. Cardeal Patriarca de Lisboa, na
altura, o Sr. D. António Mendes Belo: "Há muitos anos que eu me
sinto atraído, talvez por especial vocação da misericórdia de Deus
Nosso Senhor, para ajudar espiritualmente os presos da cadeia, os
doentes dos hospitais, os pobrezinhos e abandonados, a tantos
pecadores e almas desamparadas que Nosso Senhor me envia ou põe no
meu caminho. Tenho também grande consolação em ajudar os Párocos nos
exercícios de piedade e mais encargos do seu ministério, indo por
toda a parte levar, na medida das minhas forças, os socorros da
religião a muitas pessoas a quem não é fácil chegarem por outra via.
Ora tudo isto tenho sido, isto queria continuar a ser, por me
parecer que é mais de honra de Deus".
O Padre Cruz, enquanto viveu,
impressionou pelo que era: um testemunho que vive o que prega. O
Padre Cruz, como verdadeiro homem de Deus, como verdadeiro sacerdote
e como verdadeiro Jesuíta, não pregava com muitas palavras doutas e
discursos eruditos; a simplicidade era a sua eloquência. Mas, com o
seu modo original de ser, com as suas atitudes e o seu
comportamento, revelava aos homens do seu tempo o amor de Deus, e
com o seu exemplo proclamava a todos que valia a pena experimentar
este amor, para melhor servir os homens, seus irmãos. Ninguém dá o
que não tem, diz o provérbio. O Padre Cruz, para poder dar Deus,
tinha que ter Deus, para poder dar santidade, tinha que possuir
santidade. Não admira, pois, que a sua passagem fosse uma bênção
fecunda de graça. Não é de estranhar que hoje o Santo Padre Cruz
seja tomado como modelo e incentivo para os que sentem os desafios
das novas pobrezas e injustiças, para lhes darem uma resposta de
solidariedade, justiça e fraternidade. Portugal celebra já vários
santos portugueses canonizados. Entre outros, cito S. João de Deus,
S. António de Lisboa, S. João de Brito, mas aguardamos confiantes
que o Padre Cruz seja elevado também à glória dos altares, para
alegria de todos os portugueses.
O Padre
Cruz já está muito velhinho. Mas a sua velhice não é ainda a "ruína"
doutros anciãos da sua idade. No seu corpo decrépito arde a chama
imortal da vida divina. É já uma "sombra velhinha": mas a essa
sombra descansam novos, mais fatigados e envelhecidos de alma do que
ele.
A boca
está descolorida e murcha, mas continua a sorrir. O coração já lhe
bate desconcertado, mas o amor continua a ser para ele "grande e
imensa ocupação"
Viveu,
envelheceu, sem mudança na vida: sempre de joelhos a rezar, sempre
de mãos abertas a dar. Sempre pelos caminhos... Há quantos anos?!
Sempre pelas cadeias e hospitais... Há quantos anos?
Já o
Senhor levou quase todos os que o viram começar; e, os que vieram
depois, acham natural que ele continue na vida que sempre lhe viram
fazer...
Para o
Padre Cruz viver foi dar-se pela salvação e pela glória de Deus. Por
isto mesmo, quando velhinho e doente, o seu apostolado não
paralisou.
Recebia, no quarto, algumas pessoas e escrevia a muitas. Há tantos
meios de salvar almas! E o Padre Cruz conhecia-os bem
Podia
rezar, podia sofrer. E rezava dia e noite por aqueles que
trabalhavam na vinha do Senhor. E, sem se queixar da velhice nem da
doença, dizia: "Dou muitas graças a Deus por ter chegado a esta
idade de 89 anos, sendo bastante doente desde há muito anos, e peço
a tão Bom Senhor a graça de, no resto da minha vida, O amar sempre e
fazer amar de muitas almas. Seja esta sempre a minha vontade:
Coração de Jesus fazei que eu Vos ame e Vos faça amar".
Se o
fim da sua vida preocupava os seus muitos amigos, este assunto a ele
deixava-o tranquilo: “Bendito seja o nosso Bom Deus e sempre em
tudo seja feita a sua santíssima vontade”.
Mas a
morte aproximava-se, pacificamente, e veio a 1 de Outubro de 1948.
Teria o Padre Cruz pressentido o seu fim? Tal não parece, pois ele
não estava preocupado com este momento. A morte do pecado foi a que
ele sempre mais temeu, porque seria a separação definitiva da
comunhão com Cristo. Por isto mesmo rezava, todos os dias: "Maria
Santíssima, pedi a Deus Pai de quem sois filha, a Deus Filho de quem
sois mãe, ao Divino Espírito Santo de quem sois esposa, o perdão dos
meus pecados, vós que ,sois a Mãe de misericórdia, e no resto da
minha vida ter uma fé viva, esperança firme e caridade ardente e
graça para comunicar estas virtudes a muitas almas e evitar todo o
pecado mesmo venial deliberado, resistir prontamente a todas as
tentações, fazer todo o bem que posso e devo com pura intenção e, o
que não posso fazer, ter desejo e pena de não poder, e levar todos
os meus trabalhos e sofrimentos com inteira submissão à vontade de
Deus e procurar adiantar no caminho da perfeição"
Escreveu Santo Agostinho: “todos os homens temem a morte do corpo
e só poucos temem a morte da alma. O Padre Cruz está entre estes
poucos”.
O Padre
Cruz sentia-se radicalmente livre e salvo por Cristo, porque Ele o
libertara do pecado e da sua consequência: a morte. Esta libertação
não era a morte biológica, pois Cristo também morreu, mas a
libertação da escravidão opressora da morte, do medo à mesma, do sem
sentido e absurdo de uma vida inútil que acaba no nada
À Luz
da ressurreição de Cristo, o Padre Cruz sabia, há muito tempo, que a
morte física, inevitável apesar dos adiantos da medicina e da
aspiração do homem à imortalidade, que ela não era o fim do caminho,
mas sim a porta que lhe franqueava a libertação definitiva com
Cristo ressuscitado. Graças a esta fé o Padre Cruz, hoje, é um ser
para a vida.
“Quando Nosso Senhor na Sua Infinita Misericórdia me quiser chamar à
Sua Divina Presença quero o meu corpo depositado no jazigo da minha
família religiosa, a Companhia de Jesus com a qual me uni em 3 de
Dezembro de 1940, fazendo os santos votos, e assim cumprindo o
ardente desejo que tinha acerca de 60 anos e não tinha cumprido por
falta de saúde”.
22 de Maio de 1945
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