Do humilde monge e presbítero João
Damasceno, discurso para o nascimento de Nossa Senhora Santíssima, a Mãe de Deus
e sempre Virgem Maria.
1. Vinde, todas as nações, vinde, homens
de todas as raças, línguas e idades, de todas as condições: com
alegria
celebremos a natividade da alegria do mundo inteiro! Se os gregos destacavam com
todo o tipo de honras ? com os dons que cada um podia oferecer ? o aniversário
das divindades, impostos aos espíritos por mitos mentirosos que obscureciam a
verdade, e também o dos reis, mesmo se eles fossem o flagelo de toda a
existência, que deveríamos nós fazer para honrar o aniversário da Mãe de Deus,
por quem toda a raça mortal foi transformada, por quem o castigo de Eva, nossa
primeira mãe, foi mudada em alegria? Com efeito, uma ouviu a sentença divina: «Darás
à luz no meio de penas»; a outra ouviu, por seu turno: «Alegra-te, oh Cheia de
Graça». À primeira disse-se: «Inclinar-te-ás para o teu marido», mas à segunda:
«O Senhor está contigo». Que homenagem oferece-remos então nós à Mãe do Verbo,
senão outra palavra? Que a criação inteira se alegre e festeje, e cante a
natividade de uma santa mulher, porque ela gerou para o mundo um tesouro
imperecível de bondade, e porque por ela o Criador mudou toda a natureza num
estado melhor, pela mediação da humanidade. Por-que se o homem, que ocupa o meio
entre o espírito e a matéria, é o laço de toda a criação, visível e invisível, o
Verbo criador de Deus, ao se unir à natureza humana, uniu-se através dela a toda
a criação. Festejemos assim o desaparecimento da humana esterilidade, pois
cessou para nós a enfermidade que nos impedia a posse dos bens.
2. Mas porque nasceu a Virgem Maria de
uma mulher estéril? Àquele que é o único verdadeiramente novo debaixo do sol,
como coroamento das Suas maravilhas, deviam ser preparados os caminhos por
maravilhas, para que lentamente as realidades mais baixas se elevassem de modo a
serem as mais altas. E eis uma outra razão, mais alta e mais divina: a natureza
cedeu o lugar à graça, pois ao vê-la tremeu, e não quis mais ter o primeiro
lugar. Como a Virgem Mãe de Deus devia nascer de Ana, a natureza não ousou
prevenir o fruto da graça, mas permaneceu ela própria sem fruto, até que a graça
trouxesse o seu. Era necessário que fosse primogénita aquela que deveria gerar
«o Primogénito de toda a criação, no Qual tudo subsiste». Oh Joaquim e Ana,
casal venturoso! Toda a criação está em dívida para convosco, porque através de
vós ela pôde oferecer ao Criador o dom entre todos o mais excelso de uma Mãe
venerável, a única digna d'Aquele que a criou. Ditosos os rins de Joaquim, de
onde saiu uma semente totalmente imaculada, e admirável o seio de Ana, graças ao
qual se desenvolveu lentamente, onde se formou e de onde nasceu uma tão santa
criança! Oh entranhas que levastes um céu vivo, mais vasto que a imensidade dos
céus! Oh moinho onde foi amassado o Pão vivificante, segundo as próprias
palavras de Cristo: «Se o grão de trigo não cair na terra e morrer, ficará só».
Oh seio que aleitaste aquela que alimentou o Aquele que alimenta o mundo!
Maravilha das maravilhas, paradoxo dos paradoxos! Sim, a inexprimível Encarnação
de Deus, cheia de condescendência, devia ser precedida por estas maravilhas. Mas
como prosseguirei? O meu espírito está fora de si, dividido que estou entre o
temor e o amor; o meu coração bate e a minha língua move-se: não posso suportar
a alegria, as maravilhas deitam-me por terra, o ardor apaixonado aprisionou-me
num arrebatamento divino. Que o amor vença, que o temor desapareça e que cante a
cítara do Espírito: «Alegrem-se os céus, exulte a terra»!
3. Hoje as portas da esterilidade abrem-se,
e uma porta virginal e divina avança: a partir dela, por ela, o Deus que está
acima de todos os seres deve «vir ao mundo» «corporalmente», segundo a expressão
de Paulo, ouvinte dos segredos inefáveis. Hoje, da raíz de Jessé saiu uma
vergôntea, de onde surgirá para o mundo uma flor substancialmente unida à
divindade.
Hoje, a partir da natureza terrena, um
céu foi formado sobre a terra por Aquele que outrora o tornara sólido
separando-o das águas, elevando o firmamento nas alturas. É um céu
verdadeiramente mais divino e mais elevado que o primeiro, porque Aquele que no
primeiro céu criara o sol Se elevou a Si próprio neste novo como um sol de
justiça. Sim, há n'Ele duas Naturezas, apesar da loucura dos Acéfalos, e uma só
Pessoa, mesmo que os Nestorianos se encolerizem! A Luz eterna, proveniente da
Luz eterna antes de todos os séculos, o Ser, imaterial e incorpóreo, tomou um
corpo desta mulher, e como um esposo que sai para fora de seu tálamo, assim fez
Deus, tornando-se como tal filho da raça terrena. Como um gigante Ele alegra-Se
de percorrer os caminhos da nossa natureza, de Se encaminhar, pelos Seus
sofrimentos, para a morte, de atar o homem forte e lhe arrancar os seus bens,
isto é, a nossa natureza, e de reunir na terra celeste a ovelha errante.
Hoje, o «Filho do Carpinteiro», O Verbo
universalmente activo d'Aquele que tudo construiu por Ele, o Braço Poderoso do
Deus Altíssimo, querendo afiar pelo Espírito - que é como o seu dedo - a lâmina
embotada da natureza, construiu para Si uma escada viva, cuja base está firmada
na terra, com o cimo a tocar os céus: Deus repousa sobre ela. É dela a figura
que Jacob contemplou, e por ela Deus desceu da Sua imobilidade, ou melhor,
inclinou-Se com condescendência, tornando-Se assim «visível sobre a terra, e
conversando com os homens». Estes símbolos representam a Sua vinda ao meio de
nós, o seu abaixamento condescendente, a sua existência terrena, o verdadeiro
conhecimento d?Ele próprio, dado a todos aqueles que estão sobre a terra. A
escada espiritual, a Virgem, está fixa na terra, pois na terra ela tem a sua
origem, mas a sua cabeça eleva-se até ao céu. A cabeça de toda a mulher é o
homem, mas para ela, que não conheceu homem, Deus Pai ocupa o lugar de sua
cabeça: pelo Espírito Santo, Ele concluiu uma aliança e, como semente divina e
espiritual, enviou o Seu Filho e Verbo, força omnipotente. Em virtude do
beneplácito do Pai, não é por uma união natural, mas é superando as leis da
natureza, pelo Espírito Santo e pela Virgem Maria, que o Verbo Se fez carne e
habitou entre nós. É por aqui que se vê que a união de Deus com os homens se
cumpre pelo Espírito Santo.
«Quem puder entender, que entenda»;
«Quem tem ouvidos para ouvir, que oiça». Descartemos as representações
corporais: a divindade jamais sofreu mudança, oh homens! Aquele que sem
alteração gerou Seu Filho a primeira vez segundo a natureza, sem alteração O
gera agora de novo segundo a economia. Disto é testemunha a palavra de David,
antepassado de Deus: «O Senhor disse-me: "Tu és Meu Filho, Eu hoje te gerei"».
Ora este «hoje» não tem cabimento na geração antes de todos os séculos, pois
esta deu-se fora do tempo.
4. Hoje é edificada a Porta do Oriente,
que dará a Cristo «entrada e saída», e «essa porta estará fechada». Nela está
Cristo, «a Porta das Ovelhas», e «o Seu nome é Oriente»: por Ele obtivemos
acesso ao Pai das Luzes. Hoje sopraram as brisas anunciadoras duma alegria
universal. Alegre-se o céu nas alturas, que debaixo dele «exulte a terra», que
os mares do mundo bramam, porque no mundo acaba de ser concebida uma concha, a
qual pelo clarão celeste da divindade conceberá em seu seio, gerando a pérola
inestimável, Cristo. Dela sairá o «Rei da Glória», revestido da púrpura de sua
carne, para «visitar os cativos», e «proclamar a libertação». Que a natureza
transborde de alegria: a cordeirinha vem ao mundo, graças à qual o Pastor
revestirá a ovelha, tirando-lhe as túnicas da antiga mortalidade. Que a
virgindade forme os seus coros de dança, pois nasceu a Virgem que, segundo
Isaías, «conceberá e dará à luz um filho, que será chamado Emmanuel, o que quer
dizer "Deus connosco"». Aprendei, oh Nestorianos, e fugi à vossa derrota: «Deus
connosco»! Não é nem só um homem, nem um mensageiro, mas o Senhor em Pessoa que
virá e nos salvará.
«Bendito o que vem em nome do Senhor»,
«o Senhor é Deus, e iluminou-nos»; «Celebremos uma festa» para o nascimento da
Mãe de Deus. Rejubila, Ana, «estéril que não davas à luz; ri de alegria e de
júbilo, tu que não tiveste as dores de parto»! Rejubila, Joaquim: de tua filha
«um menino nos nasceu, um filho nos foi dado (...) e ser-lhe-á dado este nome:
Anjo do grande Conselho (quer dizer, Salvação do Universo) Deus Forte». Que
Nestório fique vermelho e meta a mão sobre a boca. A criança é Deus; portanto,
como não seria ela a Mãe de Deus, ela que O colocou no mundo? «Se alguém não
reconhece por Mãe de Deus a Santa Virgem, está separado da divindade». A frase
não é minha, mas no entanto pertence-me: recebi-a como precioso tesouro e
herança teológica do meu pai Gregório, o Teólogo.
5. Oh Joaquim e Ana, casal
bem-aventurado e verdadeiramente sem mancha! Pelo fruto do vosso seio fostes
reconhecidos, segundo a palavra do Senhor: «Pelos seus frutos os reconhecereis».
A vossa conduta foi agradável a Deus e digna daquela que nasceu de vós. Tendo
levado uma vida casta e santa, engendrastes a jóia da virgindade, aquela que
deveria permanecer Virgem antes, durante e depois do parto, a única sempre
Virgem de espírito, de alma e de corpo. Convinha, de facto, que a virgindade
saída da castidade produzisse a Luz única e monógena, corporalmente, pela
benevolência d'Aquele que A gerou sem corpo o Ser que não gera, mas que é
eternamente gerado, para Quem ser gerado é a única qualidade própria da Sua
Pessoa. Oh que maravilhas, e que alianças estão neste menino! Oh Filha da
esterilidade, virgindade que engravida, nela se unirão divindade e humanidade,
sofrimento e impassibilidade, vida e morte, para que em todas as coisas o menos
perfeito seja vencido pelo melhor! E tudo isto para minha salvação, oh Mestre!
Amas-me tanto que não realizaste esta salvação nem pelos anjos, nem por nenhuma
outra criatura, mas tal como já a minha criação, também a minha regeneração foi
Tua obra pessoal. Assim, eu exulto, faço despertar a minha alegria e o meu
júbilo, volto à fonte das maravilhas, e embriagado de uma torrente de alegria,
toco de novo a cítara do espírito e canto o hino divino da natividade.
6. Oh Joaquim e Ana, casal castíssimo,
«par de rolas» no sentido místico! Observando a lei da natureza, a castidade,
merecestes os dons que ultrapassam a natureza: gerastes no mundo uma Mãe de Deus
sem esposo. Depois de uma existência santa e piedosa numa natureza humana,
gerastes uma filha superior aos anjos e que agora reina sobre eles. Oh Filha
graciosíssima e dulcíssima, oh lírio nascido entre os espinhos, da descendência
nobilíssima e real de David! Por ti a realeza encheu-se com o sacerdócio; por ti
foi cumprida «a mudança da Lei», e revelado o espírito escondido sob a letra,
pois que a dignidade sacerdotal passou da tribo de Levi à de David. Oh Rosa
nascida dos espinhos do judaísmo, que enche o universo de um perfume divino! Oh
filha de Adão e Mãe de Deus! Ditosos os rins e o seio de onde surgistes! Ditosos
os braços que te levaram, os lábios que experimentaram os teus castos beijos, os
lábios de teus pais, para que em tudo tu fosses eternamente virgem. Hoje é para
o mundo o início da salvação. «Aclamai o Senhor, terra inteira, cantai, exultai,
tocai instrumentos». Elevai a vossa voz, «fazei-a escutar sem temor», porque na
Santa Probática nos nasceu uma Mãe de Deus, de quem quis nascer o Cordeiro de
Deus, que tira o pecado do mundo.
Tremei de alegria, oh montanhas,
naturezas racionais, voltadas para o cume da contemplação espiritual: a montanha
do Senhor, refulgente, vem ao mundo, ultrapassando todas as montanhas e todas as
colinas, isto é, os anjos e os homens; dela, sem intervenção da mão do homem,
Cristo quis desprender-Se, Ele que é a Pedra Angular, Pessoa Una, que aproxima
em Si aquilo que está distante: a divindade e a humanidade, os anjos e os
homens, os gentios e o Israel carnal num só Israel espiritual. «Montanha de
Deus, montanha de abundância, montanha que Deus escolheu para Seu repouso. Os
carros de Deus vêm aos milhares, com seres refulgentes» da graça divina,
querubins e serafins. Oh cume mais santo que o Sinai, não coberto nem por fumo,
nem por trevas, nem por tempestades, nem sequer por fogo perecível, mas pelo
esplendor que ilumina do Santíssimo Espírito. No Sinai, o Verbo de Deus tinha
gravado a Lei sobre tábuas de pedra, pelo Espírito, dedo divino; aqui, pela
acção do Espírito Santo e pelo sangue de Maria, o próprio Verbo encarnou,
dando-se á nossa natureza como um remédio de salvação mais eficaz. Antes, era o
maná; aqui, está Aquele que deu o maná e a sua doçura.
Que a morada célebre que Moisés
construiu no deserto com matérias preciosas de todo o tipo, e ainda antes dela a
morada do nosso pai Abraão, se apaguem diante da morada de Deus, viva e
espiritual. Ela foi o repouso, não só da energia divina, mas da Pessoa do Filho,
que é Deus, presente substancialmente. Que a arca recoberta de ouro reconheça
que não tem nada de comparável com Maria, e da mesma forma a urna de ouro com o
maná, o candelabro, a mesa e todos os objectos do culto antigo: eles foram
honrados porque todos a prefiguravam, como sombras do verdadeiro protótipo.
7. Hoje, o Criador de todas as coisas,
Deus Verbo, fez um livro novo, saído do coração do Pai para ser escrito, como se
fosse por uma cana, pelo Espírito, que é a língua de Deus. Esse livro foi dado a
um homem que conhecia as letras, mas que não o lia. José, com efeito, não
conheceu Maria, nem a significação do mistério em si. Oh filha toda santa de
Joaquim e de Ana, que escapaste aos olhares dos Principados e das Potestades e
aos «assédios inflamados do maligno», e que viveste no tálamo do Espírito, para
seres guardada intacta e te tornares esposa de Deus e Mãe de Deus por natureza!
Oh filha toda santa, que apareceste nos braços de tua mãe, tu és o terror das
potências de rebelião! Oh filha toda santa, alimentada do leite maternal, e
rodeada das legiões angélicas! Oh filha amada de Deus, honra de teus pais,
gerações de gerações te proclamam bem aventurada, como tu própria o afirmaste
com verdade! Oh filha digna de Deus, beleza da natureza humana, reabilitação de
Eva, nossa primeira mãe! Por teu nascimento, aquela que tombara foi redimida. Oh
filha toda santa, esplendor do sexo feminino! Se a primeira Eva, com efeito, foi
culpada de transgressão, e se por sua causa «a morte fez a sua entrada no mundo»
(porque ela se colocou ao serviço da serpente contra o nosso primeiro pai),
Maria, que se fez a serva da vontade divina, enganou a serpente enganadora e
introduziu no mundo a imortalidade.
Oh filha sempre Virgem, que pode
conceber sem intervenção humana, porque Aquele que concebeste tem um Pai Eterno!
Oh filha da raça terrena, que levas em teus braços divinamente maternais o
Criador! Os séculos rivalizavam entre si para saber qual deles se honraria de te
ver nascer, mas o desígnio fixado antecipadamente de Deus, «que fez os séculos»
colocou fim a essa rivalidade, e os últimos tornaram-se os primeiros, eles a
quem foi atribuída a felicidade da tua Natividade. Na verdade, tu és mais
preciosa que toda a criação, pois só de ti o Criador recebeu em partilha as
primícias da nossa matéria humana. A Sua Carne foi feita da tua carne, o Seu
Sangue do teu sangue; Deus alimentou-Se do teu leite, e os teus lábios tocaram
os lábios de Deus. Oh maravilhas incompreensíveis e inefáveis! Na presciência da
tua dignidade, amou-te o Deus do universo; porque te amou, predestinou-te, e nos
«últimos tempos», chamou-te à existência, e constituiu-te Mãe para gerar um Deus
e alimentar o Seu próprio Filho e Verbo.
8. Diz-se que os contrários servem de
remédio contra os contrários, mas os contrários não nascem uns dos outros. Mesmo
se cada ser é na sua natureza um tecido de contrários, ele próprio provém da
predominância da causa que o fez nascer. De facto, da mesma forma que o pecado,
ao operar para mim a morte por meio do bem, mostra em extremo a sua natureza
pecaminosa, da mesma forma o Autor dos bens, pelo meio dos contrários desses
bens, opera para nós o bem que Lhe é natural, porque «onde abundou o pecado,
superabundou a graça». Se tivéssemos conservado a nossa primeira comunidade com
Deus, não teríamos merecido a Segunda, maior e mais extraordinária. De facto,
pelo pecado, fomos julgados indignos da primeira união, porque não conservámos o
dom recebido. Mas pela compaixão de Deus fomos perdoados e tomados sob a Sua
guarda, para que a comunhão fosse assegurada, porque nos quer conservar unidos a
Ele, sem nenhuma beliscadura, Aquele que nos recebeu sob a Sua protecção.
Sim, toda a terra pejava de fornicações,
e o povo do Senhor, possuído «pelo espírito de fornicação», errava longe do
Senhor seu Deus, longe d?Aquele que o tinha adquirido «com mão forte e braço
poderoso», que com sinais e prodígios o tinha feito sair da «casa da escravidão»
do Faraó, o tinha conduzido através do Mar Vermelho e guiado «por uma nuvem de
dia, e noite inteira por um luzeiro de fogo». O seu coração voltava-se para o
Egipto, e o povo do Senhor tornou-se «aquele que não é o povo do Senhor»; aquele
que obtinha misericórdia, tornou-se aquele que não a merecia, e aquele que era
amado, tornou-se aquele que não era amado.
Eis então a razão pela qual uma Virgem
vem agora ao mundo, como adversária da ancestral fornicação; ela foi dada como
esposa ao próprio Deus, e gerou a misericórdia de Deus. Assim foi estabelecido
como povo de Deus aquele que até aí não era o Seu povo; excluído da Sua
misericórdia, obteve misericórdia; não amado, é agora amado. Dela nasce o Filho
Bem-Amado de Deus, no Qual Ele colocou as Suas complacências.
9. «Uma vinha de belos sarmentos» foi
gerada no seio de Ana, e ela produziu um fruto cheio de doçura, fonte de um
néctar abundante de vida eterna para os habitantes da terra. Joaquim e Ana
fizeram-se semeadores de justiça, e recolheram um fruto de vida. Eles foram
iluminados pela luz do conhecimento, procuraram o Senhor, e daí lhes veio um
fruto de justiça. Que a terra tenha confiança! «Filhos de Sião, alegrai-vos no
Senhor vosso Deus, porque o deserto ficou verdejante»: aquela que era estéril
deu o seu fruto; Joaquim e Ana, como montanhas místicas, fizeram brotar vinho
doce. Permanece na alegria, oh Ana venturosa, por teres dado à luz uma mulher,
porque essa mulher será a Mãe de Deus, porta da luz, fonte de vida, e reduzirá
nada a acusação que pesava sobre a mulher.
Os homens nobres do povo desejarão
vê-la, e diante dessa mulher os reis das nações prostrar-se-ão, oferecendo-lhe
presentes. Entregá-la-ás a Deus, rei universal, adornada da beleza das suas
virtudes como de «brocados de ouro», ornada da graça do Espírito, de cuja glória
ela se reveste. A glória da mulher é o homem, e é-lhe dada a partir de fora; mas
a glória da Mãe de Deus é interior, e é fruto do seu seio.
Oh mulher amabilíssima, três vezes
bem-aventurada! «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu
ventre»! Oh mulher, filha do Rei David e Mãe de Deus, Rei do Universo! Oh divina
e vivente obra-prima, na qual Deus Criador Se alegrou, de quem o espírito é
governado por Deus e atento somente a Ele, e de quem todo o desejo se eleva
apenas Àquele que é o único amável e desejável, que não te encolerizas senão
contra o pecado e contra aquele que o fez nascer! Terás uma vida superior à
natureza, porque não é para ti que a terás, já que também não é para ti que tu
nasceste. Terás antes a tua vida para Deus, e é por causa d'Ele que vieste à
vida, por causa de Quem servirás à salvação universal, para que o antigo
desígnio de Deus, a Encarnação do Verbo e a nossa divinização, se cumpra através
de ti. A tua vontade é alimentares-te das palavras divinas e fortificares-te com
a sua seiva, como «oliveira fecunda na casa de Deus», como «árvore plantada à
beira das águas» do Espírito, como árvore da vida, que deu o seu fruto no tempo
que lhe foi destinado: o fruto que é o Deus Encarnado, Vida eterna de todos os
seres. Guardas todos os pensamento gostoso e útil para a alma, mas todo aquele
que é supérfluo e que seria um perigo para a alma tu o rejeitas ainda antes de o
provar. Os teus olhos «estão sempre voltados para o Senhor», olhando a luz
eterna e inacessível. Teus ouvidos escutam a palavra de Deus e deleitam-se com a
cítara do Espírito; foi por eles que o Verbo entrou para Se fazer Carne. Tuas
narinas respiram deliciadas o aroma dos perfumes do Esposo, que é Ele próprio um
perfume, espontaneamente derramado para perfumar a Sua humanidade: «O teu nome é
um perfume que se espalha», diz a Escritura. Os teus lábios louvam o Senhor, e
estão ligados aos Seus lábios. A tua língua e o teu palato discernem as palavras
de Deus e saciam-se com a suavidade divina. Oh coração puro e sem mácula, que vê
e deseja o Deus imaculado!
É neste seio que o Ser ilimitado veio
habitar; do seu leite se alimentou Deus, o Menino Jesus. Oh porta de Deus,
sempre virginal! Eis as mãos que suportam Deus, e esses joelhos que são um trono
mais elevado que os querubins: por eles «as mãos fracas e os joelhos trémulos»
foram fortalecidos. Os seus pés são guiados pela lei de Deus como por uma
lâmpada que brilha, e correm após Ele sem se voltarem, até que tenham feito
chegar aquela que ama junto do Bem-Amado. Em todo o seu ser ela é o tálamo do
Espírito, a Cidade de Deus Vivo, que «alegra os canais do rio», isto é, as
correntes dos carismas do Espírito: «Toda bela, toda próxima de Deus». Dominando
os querubins, mais alta que os serafins, próxima de Deus: é a ela que esta
palavra se aplica!
10. Oh maravilha que ultrapassa todas as
maravilhas: uma mulher é colocada mais alto que os serafins, porque Deus surgiu
abaixado «um pouco inferior aos anjos»! Que o sapientíssimo Salomão se cale, e
não torne a dizer: «Nada de novo debaixo do sol». Oh Virgem cheia da graça
divina, templo santo de Deus, que o Salomão espiritual, o Príncipe da Paz,
construiu e habita, o ouro e as pedrarias não te dão mais beleza, mas mais que o
ouro, é o Espírito que te dá o teu esplendor. Por pedrarias, tens a pérola
preciosíssima, Cristo, a Brasa da divindade. Suplica-Lhe que toque os nossos
lábios, para que, purificados, Lhe cantemos, com o Pai e o Espírito, a natureza
única da Divindade em três Pessoas: «Santo, Santo, Santo, Senhor Deus dos
Exércitos».
Santo é o Pai, que quis que em ti e por
ti se cumprisse o mistério que predeterminara antes de todos os séculos. Santo é
o Forte, o Filho de Deus, e Deus Monógeno, que hoje te faz nascer, primogénita
de uma mãe estéril, para que, sendo Ele próprio Filho Único do Pai e «Primogénito
de toda a criatura», possa nescer de ti, como Filho único de uma Virgem-Mãe, «Primogénito
de uma multidão de irmãos», semelhante a nós e por ti participante da nossa
carne e do nosso sangue. Apesar disso, não te fez nascer de um só pai ou de uma
só mãe, para que ao único Monógeno fosse reservado em perfeição o privilégio de
Filho Único: Ele é, com efeito, Filho Único, somente Ele de um Pai só, somente
Ele de uma Mãe só.
Santo é o Imortal, o Espírito de toda a
santidade, que pelo orvalho da Sua Divindade te guardou intocada pelo fogo
divino: é isto que significou antecipadamente a sarça ardente.
Eu te saúdo, oh Porta das Ovelhas,
morada santíssima da Mãe de Deus. Eu te saúdo, oh Porta da Ovelhas, domicílio
ancestral da tua rainha, antigamente redil das ovelhas de Joaquim, mas hoje
tornada Igreja do rebanho espiritual de Cristo e imitação do céu. Outrora
recebias uma vez por ano um anjo de Deus, que agitava as águas e devolvia a
saúde a um só homem, livrando-o do mal que o paralisava; agora recebes multidões
de potências celestes que celebram connosco a Mãe de Deus, Abismo de Maravilhas,
fonte da cura universal. Tu recebeste, não um anjo servidor, mas o «Anjo do
Grande Conselho», descido sem ruído algum sobre o velo de lã como uma chuva de
bondade, Aquele que renovou toda a natureza, doente e a ponto de se perder, com
uma saúde inalterável e uma vida sem velhice: por Ele, o paralítico que em ti
jazia saltou como um veado. Eu te saúdo, oh preciosa Porta das Ovelhas, e que se
multiplique a tua graça!
Eu te saúdo, Maria, filha dulcíssima de
Ana. De novo para ti o amor me impele. Como descrever o teu caminhar cheio de
seriedade, os teus vestidos, a graça de teu rosto, a maturidade do discernimento
num corpo juvenil? A tua forma de estar foi modesta, distante de todo o luxo e
de toda a indolência; o teu caminhar era grave, sem precipitação, sem preguiça;
o teu carácter era sério, temperado de júbilo, de uma perfeita reserva a
propósito dos homens ? disto é testemunho a inquietação que te surgiu aquando da
proposta inesperada do anjo. A teus pais dócil e obediente, tinhas humildes
sentimentos nas mais altas contemplações, palavra amável, provinda de uma alma
pacífica. Em resumo: que outra digna morada senão tu para Deus? Com razão todas
as gerações te proclamam bem-aventurada, oh glória insigne da humanidade! Tu és
a honra do sacerdócio, a esperança dos cristãos, a planta fecunda da virgindade,
porque é através de ti que o renome da virgindade se estendeu aos confins do
mundo. «Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o Fruto do teu ventre».
Aqueles que confessam a tua maternidade divina são benditos, e malditos aqueles
que a negam.
12. Joaquim e Ana, casal abençoado,
recebei de mim estas palavras de aniversário. Oh filha de Joaquim e de Ana, oh
Soberana, acolhe a palavra deste teu servo pecador, mas inflamada pelo amor, e
para quem tu és a única esperança de alegria, a protectora da vida e, junto de
teu Filho, a reconciliadora e firme garantia da salvação. Possa tu aliviar-me do
fardo dos meus pecados, dissipar a névoa que obscurece o meu espírito e o peso
que me agarra à matéria. Possas tu deter as tentações, governar felizmente a
minha vida e conduzir-me pela mão até à felicidade do Alto. Concede ao mundo a
paz, e a todos os habitantes ortodoxos desta cidade uma alegria perfeita e a
salvação eterna, pelas orações de teus pais e de todo o Corpo da Igreja. Assim
seja, assim seja! «Salve, oh cheia de graça, o Senhor está contigo! Bendita és
tu entre as mulheres, e bendito o fruto de teu ventre», Jesus Cristo, o Filho de
Deus. A Ele a Glória, com o Pai e o Espírito Santo, pelos séculos dos séculos.
Amém.