O episódio do salto da Alexandrina é
um dos inúmeros atentados
da brutalidade masculina contra a dignidade
feminina; como aquele que vitimou a
adolescente Santa María Goretti – veja-se
http://www.corazones.org/santos/maria_goretti.htm –
, do
género do que levou ao martírio a também adolescente Santa Inês de Roma, etc.
Mas é também um momento determinante da sua vida.
Embora bastante pobre, a Alexandrina
há-de ter sido uma adolescente e uma jovem atraente. Os Signorile descrevem-na
assim ao tempo da cura na Póvoa, uns dois anos após o salto :
Alexandrina não era mais a menina
de 7-8 anos, mas uma bela jovem com fartos e longos cabelos negros que
emolduravam um vulto expressivo avivado por dois olhos negros, vivos, luminosos
e que às vezes o sorriso ilumina com uma bela fila de dentes branquíssimos.
E acrescentam:
É por isso compreensível que fosse
objecto de atenções da parte de jovens, também sérios.
Ela mesma dá notícia de vários
pretendentes que a cortejaram.
Foi uma adolescente vigorosa e
determinada. Veja-se este jogo de força que ela conta na Autobiografia:
Quando tinha doze ou treze anos,
tinha muita força. Um homem começou a fazer-se muito forte com outras raparigas.
Ele estava sentado. Eu dirigi-me a ele e voltei-o. Ele pôs-se a gritar:
«Deixa-me! Deixa-me!» Mas deixei-o só quando quis. O meu fim era só: como ele
era homem, que mostrasse a sua força.
Que fosse determinada, nem precisa de
justificação: a sua actuação ao defender-se e ao defender as companheiras
confirma-o.
O mais sabujo dos três energúmenos
que atentaram contra ela e contra as outras duas jovens foi sem dúvida Lino
Ferreira, o seu ex-patrão e vizinho, já que era simultaneamente casado,
conhecia-as, sabia as poucas possibilidades que elas tinham de se defender e foi
o mais violento. A Alexandrina descreveu-o assim:
O patrão era um perfeito carrasco;
chamava-me nomes, obrigava-me a trabalhar mais do que as forças que tinha. Tinha
mau génio e pouca paciência – até os animais o conheciam, porque batia-lhes e
assustava-os, sendo quase impossível chamar o gado, quando ele ia junto do gado.
Envergonhava-me sem causa, fosse diante de quem fosse, e eu sentia-me humilhada.
Apesar de estar no princípio da minha mocidade, não sentia alegria com aquele
triste viver. Um dia fui à azenha levar a fornada, mas era já noitinha quando lá
cheguei e, portanto, muito tarde quando regressei a casa, pois gastava no
caminho uma hora. Depois que cheguei a casa, ralhou-me muito, insultou-me e até
me chamou ladra.
Para agravar a fealdade do acto, ele
aconteceu em Sábado Santo.
A casa da Alexandrina era diferente
do que nos mostra mesmo alguma fotografia mais antiga. Ela mesma no-lo dá a
entender:
Quantas vezes no meu jardinzinho,
onde hoje é o meu quarto, fitava o céu, escutando o murmúrio das águas e ia
contemplando cada vez mais este abismo das grandezas divinas!
O Pe. Humberto esclarece numa nota do
Cristo Gesù in Alexandrina:
Da cave uma escada levava, através
dum alçapão, ao quarto de cama, que servia também de sala de costura. A ala
actual da casa, com varanda e quatro quartos de cama, não existia ainda. Naquele
tempo havia aí uma horta e qualquer canteiro de flores que Alexandria cultivava
para enfeitar os altares da igreja.
Seria interessante saber quando foi
feito este acréscimo à casa. Terá sido em 1935, que é a data que se lê no portão
da casa?
Veja-se agora o relato do salto,
seguindo a narrativa que vem na Autobiografia. O Pe. Humberto usa uma versão
ligeiramente diferente. Eu mesmo possuo cópia duma versão manuscrita com uma ou
outra palavra não coincidente. Mas a substância do relato é sempre a mesma. Com
ele condiz também a narração da Rosalina (a aprendiz de costureira que estava
com as duas irmãs) que vem no início do Apêndice de Cristo Gesù in
Alexandrina e que transcreverei proximamente.
Uma ocasião, estando eu, minha
irmã e uma pequena mais velha que nós a trabalhar na costura, avistámos três
homens: o que tinha sido meu patrão, outro casado e um terceiro solteiro. Minha
irmã, percebendo alguma coisa e vendo-os seguir o nosso caminho, mandou-me
fechar a porta da sala.
Instantes depois, sentimos que
eles subiam as escadas que davam para a sala
(que então não tinha essa função,
como se viu) e bateram à porta. Falou-lhes minha irmã. O que tinha sido meu
patrão mandou abrir, mas, como não tivessem lá obra, não lhes abrimos a porta. O
meu antigo patrão conhecia bem a casa e subiu por umas escadas pelo interior da
habitação e os outros ficaram à porta onde tinham batido. Ele, não podendo
entrar pelo interior por um alçapão que estava fechado e resguardado por uma
máquina de costura, pegou num maço e deu fortes pancadas nas tábuas até rebentar
o alçapão, tentando passar por aí.
Minha irmã, ao ver isto, abriu a
porta da sala para fugir, mas essa ficou presa, e eu, ao ver tudo isto, saltei
pela janela que estava aberta e que deitava para o quintal. Sofri um grande
abalo porque a janela distava do chão quatro metros. Quis levantar-me logo, mas
não pude, porque me deu uma forte dor na barriga. Com o salto caiu-me o anel que
usava, sem dar por ela.
Cheia de coragem, peguei num pau e
entrei pela porta do quintal para o eirado onde estava a minha irmã a discutir
com os dois casados. A outra pequena estava na sala com o solteiro. Eu
aproximei-me deles e chamei-lhes “cães” e disse que ou deixavam vir a pequena ou
então gritava contra eles. Aceitaram a proposta e deixaram-na ir.
Foi nesta altura que dei pela
falta do anel e disse-lhes de novo:
— “Seus cães, por vossa causa
perdi o meu anel”.
Um deles, que trazia os dedos
cheios de anéis, disse-me:
— “Escolhe daqui um.”
Mas eu, toda zangada, respondi: —
“Não quero.”
Não lhes demos mais confiança;
eles retiraram-se e nós continuámos a trabalhar. De tudo isto não contámos a
ninguém, mas minha mãe veio a saber tudo.
Pouco depois, comecei a sofrer
mais e toda a gente dizia que foi do salto que dei. Os médicos também afirmaram
que muito concorrera para a minha doença.
É possível que a porta que hoje dá
para a sala tenha a mesma localização que aquela por onde a Deolinda fugiu. As
escadas que lhe davam acesso não existem.
Ao rebentar o alçapão, Lino Ferreira
não deixa dúvidas sobre as suas intenções. As reacções das raparigas
justificavam-se.
A determinação da Alexandrina não a
deixa hesitar, quer quando se lança da janela, quer quando vem armada de varapau
defender as amigas. É essa determinação que acobarda os intrusos e os corre de
casa.
Paga a pena ouvir a versão do
salto nas palavras da Rosalinda, até por se tratar da jovem com mais idade; o
seu relato foi registado sem que ela disso tivesse conhecimento, na altura em
que decorria em Braga o Processo.
Contou ela:
Tinha 19 anos e encontrei-me
nesta sala com Deolinda e Alexandrina. Deolinda cozia à máquina, eu cozia à mão
e Alexandrina passava a ferro. A certa altura, a Deolinda viu na estrada três
homens. Estavam parados e pelos gestos que faziam Deolinda suspeitou alguma
coisa; ficou preocupada e levantou-se logo para fechara porta de casa uma vez
que não tivera tempo para fechar o portão do eirado.
Foi coisa de momentos. Um
deles, Lino Ferreira, bateu à porta e à pergunta da Deolinda — Quem é? —
respondeu:
— Seu criado. Abra por favor.
E Deolinda:
— Não se abre a ninguém senão a
clientes.
Dito isto, Deolinda retomou o
trabalho.
Pouco depois, Lino Ferreira,
que conhecia bem a casa, tentou entrar através do alçapão que está na cave.
Deolinda, ao ouvir barulho,
arrastou logo a máquina para cima do alçapão. O tipo começou então a bater
fortes pancadas nas tábuas até as quebrar. Enquanto Deolinda se agarrou à
máquina para evitar que caísse abaixo, foi presa pela saia pelo Ferreira que foi
arrastado até à porta. Bateu com tanta força na grade da porta que foi obrigado
a deixá-la. Então a Deolinda abriu para fugir e entraram os outros dois. De nada
valeram os protestos. Camilo Faria veio contra mim e obrigou-me a sentar-me nos
seus joelhos enquanto ele se sentava na cama. Vendo isto, Alexandrina foi até à
janela e saltou para a horta. Pouco depois apareceu com um pau e a chorar porque
a tinham feito perder um anel. Chamou-lhe «cães», ameaçou chamar gente se se não
fossem embora. Um deles estendeu a mão com anéis e convidou-a a escolher um a
seu gosto. A Alexandrina recusou com desdém e então saíram.
Não satisfeito com a sua malvadez,
o Lino Ferreira ainda havia de tentar violentar Alexandrina um dia que ela já
estava paralisada.
Por ocasião do salto, a
Alexandrina estava no início da sua juventude. Para uma jovem como ela aquela
queda constituiu uma verdadeira tragédia: mataram-lhe o direito de sonhar o seu
futuro feminino.
Por isso é de suma importância
notar como aquilo que humanamente foi uma catástrofe pôde ser encarado como um
passo para uma caminhada extraordinária: a Alexandrina disse um dia que não
trocava a dor por nenhuma coisa do mundo, pois nada havia mais sábio.
O Cristianismo tem destes
paradoxos: os mais frágeis aos olhos dos homens podem tornar-se os mais úteis no
plano da salvação. A dor pode encarar-se como um ganho enorme.
A Alexandrina pode tornar-se a
bandeira de todos os que sofrem, de todos os que tem limitações, seja a que
nível for. Recordem-se aquelas palavras que uma vez Jesus lhe dirigiu:
Vem cá, luz
de quem Eu sou luz, farol de quem Eu sou farol! Não posso Eu fazer-te brilhar
com o Meu brilho? Não posso Eu fazer que sejas farol como Eu sou farol ?
Prof. José Ferreira
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