Uma mística do nosso tempo
Escritos da Alexandrina
ordenados por Humberto M. Pasquale
Ao leitor com o voto de que, lendo e meditando, suba tão alto que Jesus lhe
possa dizer:
«Eu vivo com todo o amor, porque com
todo o amor por ti sou amado. Amas-Me quando choras, quando sorris; amas-Me
na dor e na alegria; amas-Me no silêncio ou falando: amas-Me em tudo».
(Diário da Alexandrina, 21.03.1947)
O tribunal eclesiástico da arquidiocese
de Braga iniciou o processo ordinário sobre as virtudes e a fama de
santidade da Serva de Deus Alexandrina Maria da Costa em 14 de Janeiro de
1967. Depois de terem sido interrogadas 48 testemunhas e recolhidos os
escritos da Serva de Deus, o processo foi encerrado com êxito no dia 10 de
Abril de 1973. Em Maio seguinte, toda a documentação foi remetida para a S.
Congregação para as Causas dos Santos. Em Dezembro de 1975, os dois teólogos
encarregados de examinarem os escritos da Serva de Deus, emitiram um parecer
positivo, confirmado em 2 de Junho de 1979 pela referida S. Congregação.
O convite que Jesus dirige ao homem para
que se torne Seu discípulo implica a participação e a conformação com a Sua
Paixão (Mt. 10, 16), a fim de estabelecer uma relação de semelhança entre
Mestre e discípulo (Mt. 10, 24).
A inserção n’Ele como sarmentos na
videira (Jo.15,4), bem como a necessidade de permanecer no Seu amor,
significam que se deve observar a Sua palavra, tal como para Ele permanecer
na palavra do Pai quer dizer realizar essa mesma palavra, isto e, a vontade
divina que Lhe impõe oferecer a Sua própria vida pelo rebanho (Jo. 10, 17).
Segundo o ensinamento de Cristo,
portanto, verdadeiro discípulo é aquele que revive em si o mistério da morte
de Jesus, ou antes aquele que recebe Cristo em si mesmo para reviver a Sua
Paixão.
Foi assim que o apóstolo Paulo
compreendeu e viveu o mistério de Cristo. O Evangelho está todo aqui. «Nós
pregamos a Cristo crucificado». (1 Cor. 1, 23).
A vida de S. Paulo é toda ela uma
reprodução viva da existência terrena de Cristo.
«Deus me livre de me gloriar a não ser na
cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para
mim e eu para o mundo”. (Gal. 6, 14). “Trazemos sempre no nosso corpo os
traços da morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no
nosso corpo”» (2 Cor. 4, 10).
E o mesmo apóstolo sente-se cravado na
cruz: «Estou crucificado com Cristo! Já não sou eu que vivo, é Cristo que
vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de
Deus, que me amou e Se entregou a Si mesmo por mim» (Gal. 2, 19).
Na sua ânsia de perfeição, S. Paulo só
deseja conhecer a força da Paixão do Senhor, como também da Sua
Ressurreição, e permanecer configurado com a Sua Morte (Fil. 3, 8-11).
“Pelo Baptismo sepultámo-nos juntamente
com Ele, para que, assim como Cristo ressuscitou dos mortos, mediante a
glória do Pai, assim caminhemos nós também numa vida nova» (Rom. 6, 4),
isto e: «Tornamo-nos com Ele num mesmo ser por uma morte semelhante à Sua» (Rom.
6, 5).
Na vida cristã, portanto, quando ela
atingir todo o vigor da sua floração, haverá forçosamente que se manifestar
também esta assimilação com a Paixão de Cristo, com a mesma evidência com
que se manifesta a vida da graça, ou seja a presença de Cristo na alma.
Por isso, se essa plenitude é portadora
de experiência em razão de uma certa conaturalidade também Cristo
crucificado será a grande realidade da experiência cristã.
O próprio Jesus falou da presença do Seu
Espírito, quando os discípulos forem chamados a dar-Lhe testemunho pela
paixão e pela morte (Mt. 10, 20).
A palavra de Jesus é confirmada por toda
tradição cristã.
S. Inácio de Antioquia escreve: «Pela
cruz, na Sua Paixão, Cristo vos convida a todos vós, Seus membros. A cabeça
não pode viver separados membros» (Trall. 11, 2).
A hagiografia cristã é rica de
testemunhas da presença de Cristo na vida dos fiéis, sobretudo como
triunfador do sofrimento e da morte.
Na longa lista dos místicos cristãos não
são poucos os que reviveram de forma eminentemente realística o drama da
Paixão de Cristo no seu espírito. E é graças à sua experiência da presença
de Deus e da Sua acção nas almas místicas, que a teologia conhece as
relações íntimas entre as Pessoas Divinas da Trindade e a Sua acção nas
almas.
O fenómeno da Paixão de Jesus na
Alexandrina verificou-se durante 17 anos: de 1938 a 1955, ano da sua morte.
Neste longo período de tempo é necessário
distinguir duas fases, durante as quais o fenómeno se manifestou com
características diferentes. Classificaremos respectivamente de “participação
física” e “participação interior” estas duas formas ou maneiras de o
fenómeno se manifestar, para facilidade de denominação; frisamos, no
entanto, que a Paixão é substancialmente única, pois abrange ao mesmo tempo
sofrimentos do corpo e da alma, físicos, morais e espirituais, inseparáveis.
No período, desde 3 de Outubro de 1938 a
27 de Março de 1942, o fenómeno dava-se em dias e horas fixas: das 12 às 15
horas de cada sexta-feira. A Alexandrina revivia, umas atrás das outras, as
várias fases da Paixão, desde a agonia no Horto até à morte, em estado de
êxtase.
Os seus sentimentos e as suas reacções às
dores exteriorizavam-se através de atitudes, gestos, expressões do rosto e
do corpo todo, facilmente interpretáveis por quem podia assistir ao
fenómeno.
O seu primeiro director espiritual, P.e
Mariano Pinho, S. J., deixou escrito a esse respeito:
«Nós presenciámos ao vivo o desenrolar-se
do drama da Paixão, embora não fossem visíveis os estigmas, porque a
Alexandrina pedira ao Senhor que nada aparecesse exteriormente. A Paixão foi
violentíssima e as pessoas presentes choravam e soluçavam perante aquele
espectáculo visibilíssimo de sofrimento» (Cfr. Cristo Gesù in Alexandrina,
pág. 730).
Mons. Mendes do Carmo, professor de
mística no Seminário da Guarda, afirmou: «É um anjo crucificado!».
A professora primária de Balasar, D.
Maria da Conceição (Sãozinha), e outros testemunharam: «Sentíamo-nos
transportados em espírito aos vários sítios da Paixão de Jesus. Ninguém
conseguia acompanhar aquelas cenas sem se comover».
A irmã da Alexandrina, Deolinda, numa
carta dirigida ao P. Pinho, refere-se assim ao fenómeno da Paixão de
7-4-1939:
“Ai, meu Padre, o que foi o dia de
Sexta-feira Santa! É bem sexta-feira de Paixão! Antes de principiar, oh,
como se via nela cara de aflição! Ela temia passar este dia! E dizia-me: Ai,
se eu vejo este dia passado!...
“Eu confortava-a quanto podia e
acariciava-a, apesar de estar eu também cheia de medo e muito aflita.
“Durante a Paixão, eu não podia passar
sem chorar e vi correr lágrimas pelas faces de quase todos os assistentes.
Que espectáculo tão comovedor!
“A agonia do Horto foi muito demorada e
aflitiva... Ouviam-se gemidos muito profundos e por vezes via-se soluçar.
“Mas a flagelação e coroação de espinhos,
isso é que foi! Os açoites foram tomados de joelhos, com as mãos (como que)
atadas. Eu cheguei-lhe uma almofada para debaixo dos joelhos, e ela
retirou-se dela, não quis. Tem os joelhos em mísero estado. Os açoites não
tinham conta! Levaram tanto tempo! Ela desfalecia tanto! Os golpes na cabeça
(com a cana na coroa de espinhos) foram também inumeráveis.
“Vomitou por duas vezes durante a Paixão:
era água, porque mais nada tinha que vomitar.
“O suor era tanto, que os cabelos estavam
empastados e, ao passar-lhe a mão por cima de toda a roupa, ficava molhada.
“Quando acabou a coroação de espinhos,
ela parecia um perfeito cadáver.
“O Sr. Cónego Borlido veio assistir com
mais duas pessoas. Também veio o Dr. Almiro de Vasconcelos (de Penafiel) com
a esposa e a irmã, D. Judite».
A propósito do peso da cruz que oprimia
os ombros da Alexandrina durante a fase da subida ao Calvário, referimos o
seguinte episódio. No decorrer da Paixão do dia 29-8-1941, o médico
assistente da Alexandrina, Dr. Manuel Dias de Azevedo, convidou um dos
sacerdotes presentes a levantar do chão a vidente que jazia prostrada sob o
peso da cruz (mística). Prontificou-se o mais robusto; pegou-lhe sob os
braços, mas os seus esforços foram baldados. E confessou: «Apesar de toda a
minha força, não consigo!».
Nessa altura, a Alexandrina pesava cerca
de 40 quilos!
Na fase a seguir, quando o Cireneu
carregou com a cruz, o Dr. Azevedo convidou o mesmo sacerdote a erguer a
Alexandrina, o que ele fez sem o menor esforço. A explicação é evidente:
antes, os pesos eram dois; da segunda vez, tratava-se apenas do peso da
vidente.
Noutra ocasião, durante o fenómeno em
estado de êxtase, o P. Pinho impusera-lhe que dissesse quanto pesava a cruz.
A Alexandrina respondeu, em atitude muito grave: «A minha cruz tem um peso
mundial».
Na 2.ª fase, desde 3 de Abril de 1942 até
à morte, a Alexandrina revivia a Paixão fora do êxtase e não mais em dias
fixos. Sofria no seu íntimo sem que nada transparecesse exteriormente, antes
ocultava por vezes o drama profundo que nela se estava a desenrolar com um
doce sorriso.
A 19 de Junho de 1946, dizia ela ao seu
segundo director espiritual: «Outrora estes sentimentos e sofrimentos
padecia-os especialmente durante as três horas de sexta-feira, das 12 às 15;
as dores da Paixão sucediam-se por ordem; agora, não. o pavor por estas
dores dura quase sempre: às terças, às quartas, às quintas ou às
sextas-feiras: em horas distintas, sofro ora este, ora aquele tormento da
Paixão».
Jesus, durante a Paixão, sofreu os
tormentos que Lhe foram infligidos pelos homens e juntamente os que Ele
próprio Se infligiu, na medida em que Se apropriou voluntariamente dos
pecados do mundo (1 Pt. 2, 24; Is. 53, 4).
Entregue à justiça divina, ficou
totalmente só, não apenas a sofrer a Sua agonia, mas também a ter
conhecimento dela. O mesmo se deu com a Alexandrina.
O P. Corne, não define Jesus como o
«pecador universal, o pecador de todos os tempos e de todos os lugares,
sobre quem Deus descarrega todo o rigor da Sua justiça?».
E o P. Monsabré, «o encontro de todos os
ultrajes e de todas as chagas?».
Mons. Gay, por seu lado, escreve: «Jesus,
bênção vivente e infinita, tendo-se feito pecador por todos, deve na verdade
ser amaldiçoado em benefício de todos».
A morte física é assim a consequência
daquela morte espiritual que é a separação do homem de Deus.
Segundo Cullmann, seria esta morte —
figadal inimiga de Deus — a causa da angústia que Jesus sofreu no Horto das
Oliveiras, mais ainda do que a crucifixão e as circunstâncias que a
acompanharam... Não, Ele não pode vencer a morte senão morrendo de verdade,
sujeitando-se ao próprio domínio da morte, a grande destruidora da vida, da
união com Deus.
Granfield comenta o grito de Jesus
crucificado: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?», nos seguintes
termos: “O peso do pecado do mundo, a identificação completa de Jesus com os
pecadores, implicam um abandono não só sentido, mas real, por parte do Pai.
Neste grito de abandono revela-se o total horror pelo pecado do homem».
Só o amor pode levar a desempenhar
semelhante missão.
O Cristo sofredor não é apenas uma
fulgurante manifestação da misericórdia divina, é também uma revelação não
menos fulgurante da malícia do pecado e da espantosa catástrofe em que se
precipitam os pecadores, precisamente porque se afastam d’Aquele sem o qual
nada são e que é a nascente única de toda a vida e felicidade.
Todas estas verdades não vêm anunciadas
explicitamente no Evangelho, mas são apresentadas por mestres nas ciências
teológicas e, como experiência vivida, nas páginas do diário da Alexandrina,
a mística, quase analfabeta segundo a cultura humana, e por outras almas
místicas cristãs.
Justamente lhe dizia Jesus: «A crucifixão
que tu tens é das mais dolorosas que a história regista».
Ao meditá-la, logra-se verdadeiramente
aprofundar o nosso conhecimento sobre o amor de Cristo sofredor e redentor.
Dar-nos-emos conta também da acção
desenvolvida na Redenção pela Mãe de Jesus e nossa Mãe, como também do valor
salvífico do sofrimento de toda e qualquer alma que o saiba aceitar com
amor, unida a Jesus.
Uma garantia segura do autêntico carisma
místico temo-la num vigoroso dinamismo eclesial e apostólico, em perfeita
sintonia com o magistério da Igreja.
A obediência perfeita e heróica à
autoridade eclesiástica, praticada pela Alexandrina, foi oficialmente
reconhecida pelo Tribunal diocesano que se ocupou do processo sobre as suas
virtudes excepcionais e aprovou, em primeira instância, os seus escritos.
Todos os escritos da Alexandrina já foram
convalidados também pelo voto positivo dos peritos em dogma, moral e mística
das Congregações romanas.
Isto convida-nos a reflectir sobre os
principais efeitos que derivam da experiência mística da Serva de Deus:
a) Um conhecimento fora do comum e não
fácil acerca dos factos, sentimentos e circunstâncias da Paixão de Cristo,
que não aparecem nos Evangelhos, ou neles são apenas abordados.
b) Um conhecimento particularmente
profundo e intenso dos sofrimentos íntimos e espirituais do Salvador, para
além dos Seus sofrimentos físicos. Um verdadeiro contributo à compreensão da
psicologia de Jesus.
c) A revelação do amor inefável,
misterioso e quase «absurdo» de Cristo pelo homem. Amor que, na Paixão e
Morte de Jesus, encontra a sua mais alta expressão.
«Ninguém tem maior amor do que aquele que
dá a sua vida pelos seus amigos» (Jo. 15, 13).
Obviamente, este é o aspecto mais
impressionante, porque a alma é conduzida para o abismo daquela caridade de
Cristo que, tal como S. Paulo, a Alexandrina sente aqui, de forma
experimental, «como superior a qualquer conhecimento humano» (Ef. 3, 19).
Nesta experiência da única oblação
redentora de Cristo, realizada de uma vez para sempre (Ef. 10, 10), a alma
mística sente mais do que nunca que a Paixão «é a obra maior e mais
maravilhosa do amor divino e que, ao mesmo tempo, é um mar de amor e de
sofrimento».
S. João da Cruz, ao falar das grandes
comunicações que o Senhor faz à alma nos altos graus da experiência mística,
afirma que «lhe comunica especialmente os doces mistérios da Sua Encarnação
e as formas e caminhos da redenção humana»; noutro passo, diz que “a alma
reveste-se e transforma-se nos mesmos esplendores do Verbo encarnado e
participa das alegrias mais puras do espírito, ainda que este itinerário
espiritual seja acompanhado pelo puro padecer».
«O mundo não compreende o que Jesus
sofreu» (Diário, 25-10-45).
«Quisera desenhar num quadro todos os
sofrimentos de Jesus que sinto na minha alma e poder gravá-los em todos os
corações a fim de que sintam e compreendam o que Jesus sofreu, e assim
deixem de pecar, de O ofender, e só O amem, para que somente o amor divino
seja o fogo que alimenta os corações de toda a humanidade» (Diário,
18-10-45).
Este desejo ardente da Alexandrina
apoderou-se também de nós e sentimos a urgente necessidade de o satisfazer.
Particularmente próximos da Alexandrina
(na qualidade de director espiritual), sentimos também o dever de tornar
conhecidos os tesouros de que o Senhor a enriqueceu, para bem das almas.
No nosso volume «Cristo Gesù in
Alexandrina», incluímos já a descrição de muitos momentos da Paixão, mas de
forma tão fragmentária e desarticulada entre os vários trechos — visto
termo-nos proposto elaborar uma autobiografia sumária —, que estes não
reproduzem ao completo o quadro desejado por Alexandrina.
Penetrando em profundidade na abundante
mina de material precioso em nosso poder , recolhemos os passos mais
significativos e os ordenámos num todo, o mais orgânico que nos foi
possível.
Apesar disso, o quadro elaborado não
consegue certamente oferecer uma visão completa por dois motivos:
1.º — A experiência ensina como é
difícil exprimir por palavras as emoções da alma, sobretudo quando a
linguagem humana deve traduzir realidades e operações divinas.
Muitas vezes Alexandrina manifesta o seu
sofrimento ao ter que ditar, por obediência, o que se passa na sua alma.
Aparecem com frequência no seu Diário palavras como estas: «Se a minha
ignorância soubesse exprimir...»; «Soube sentir, mas não sei dizer...».
2.º — Devido à grande abundância de
material. Alexandrina reviveu a Paixão de Cristo, na segunda forma (desde 3
de Abril de 1942, até à morte), sofrendo semanalmente ora um aspecto, ora
outro, do martírio de Jesus.
Escolhemos os trechos mais significativos
para oferecer ao leitor um quadro sintético.
Confessamos que nos abalançámos a este
não fácil trabalho, apesar das inevitáveis falhas, porque nos pesava que tão
preciosas pérolas ficassem escondidas.
Que elas sejam, pois bem aproveitadas! E
que despertem uma sementeira de bem em tantas almas!
Com tais auspícios dedicamos o nosso
trabalho ao leitor, com um íntimo e caloroso voto de que, conhecendo mais,
ele consiga amar melhor; e amando melhor, consiga conhecer cada vez mais
profundamente a Cristo Jesus, para O deixar viver e crescer em si o mais
possível.
O trabalho foi subdividido em sete
«momentos»; cada um deles consta de vários quadros, coordenados entre si
cronológica e psicologicamente; cada quadro é bastante completo em si mesmo
e suficientemente avulso dos demais de forma a poder constituir assunto
independente de meditação. O conteúdo de cada quadro está enunciado no
respectivo subtítulo que lhe juntámos.
Cada quadro compõe-se de diversos
fragmentos; ao lado de cada um deles há um número, que aparece no fim do
livro juntamente com a data correspondente ao dia em que o trecho foi
ditado.
Entre muitos fragmentos semelhantes
escolhemos só um: aquele que nos pareceu mais expressivo e também mais
apropriado ao contexto e o inserimos ao lado dos demais, de maneira a
constituir como que um grande mosaico.
Procurámos evitar repetições, e nesse
intuito cada fragmento é reportado uma só vez.
Em contrapartida, o leitor deparará com
repetições substanciais de conceitos, de sentimentos, de padecimentos, sob
formas sempre diversas e com novas cambiantes; esta «repetição» deu-se na
realidade; por exemplo, alguns tormentos já são sentidos com antecipação na
quinta-feira, depois também durante a agonia no Horto e por fim são vividos
no cimo do Calvário. Aparece também com frequência a dolorosa amargura
provocada por ver que muitos, demasiados, não beneficiam do Sacrifício.
Volta, além disso, insistente, num crescendo contínuo, o motivo do
entrelaçar-se da dor com o amor, da sua complementaridade e o triunfo do
amor, custe o que custar.
São os temas fundamentais, essenciais do
Cristianismo, nunca repetidos à saciedade: põem em evidência uma
introspecção singular do doloroso Calvário sofrido por Cristo e revivido por
Alexandrina.
É verdade que a conexão dos «fragmentos
do mosaico» nem sempre é perfeita, mas optámos por este inconveniente, de
preferência a introduzirmos frases não pertencentes ao texto de Alexandrina.
Agradecemos a alguns amigos muito
queridos a colaboração que nos prestaram.
Leumann (Turim), 2 de Fevereiro de 1977.
Festa da Apresentação do Senhor.
Padre Humberto Maria Pasquale,
Salesiano

1. Ai,
quanto custou a Jesus a Sua vida na Terra!
2. Não foi
o Horto e o Calvário sofrimento dumas horas, mas sim de toda a vida de
Jesus.
3. Ele
crescia em idade e sabedoria, e n’Ele e com Ele crescia a cruz; Ele não se
separou dela por um só momento. Nela crescia, nela sofria, mas sempre com
sorriso e bondade, com os Seus olhares encantadores e atraentes. Assim O vi
e senti dentro em mim a sofrer em mim e comigo.
4. Foi um ser humano que sofreu, uma
vida divina que venceu.
5. Hoje
(quinta-feira) de manhã cedo, era tal a dor que sentia em mim, era tal a
repugnância e a vergonha que me causava o ver que todo o povo se preparava à
espera de novos acontecimentos! Parecia-me ver grupos, aqui e acolá, fazendo
comentações. Meu Deus, espera-me a sexta-feira! Que medo! Os meus olhos
parecem penetrar no íntimo de toda a multidão que ocupa as ruas. A minha
alma sente tudo. Ao lado de uma montanha, perto de entrar numa cidade, a
figueira amaldiçoada por Jesus. Mais abaixo, alguém traz à cabeça uma bilha
de água. Há encontros, falam...
6. Os olhos, mas não os do corpo, só os
da alma é que vêem tudo isto: movimento de pessoas que caminham apressadas
para um e outro lado a prepararem-me a traição, o laço para me prenderem.
7. Ai, como eu vejo a traição que me
preparam, ou preparam-na a Cristo que está em mim!
8. Vem
sobre mim o peso de todas as humilhações; nada há de mau que contra mim não
digam.
9. Ao longe, muito ao longe, há
comentações; o meu nome é falado, enxovalhado, envolto em lama como folha
que nela apodrece. Estou envergonhada
A minha alma sente tudo e desfaz-se em
dor.
10. Tudo
isto que eu sinto e vejo, por Vós passou, meu Jesus. São sofrimentos Vossos,
que tanto sofrestes por meu amor!
11.
Cravaram-se na minha alma Jesus e os Seus apóstolos Jesus via aproximar-se a
morte e, quase sem poder com aquela separação, dizia:
«É chegada a minha hora: vou morrer,
parto, mas fico convosco»
E o Coração divino de Jesus ardia em
amor.
Passavam-se as horas: o horror dos
sofrimentos aumentava e o amor crescia também.
Eu sentia como se o meu peito fosse uma
fornalha, o coração uma caldeira sempre a ferver sobre essa fornalha: quanto
mais fervia, mais deitava fora: quanto mais transbordava, mais se enchia.
Jesus fitava a Mãezinha, voltava a fitar
os apóstolos e, numa dor muito profunda, murmurava:
«Tenho que deixar-vos; não posso
separar-me de vós; eu vou, mas fico: prende-me a vós
o meu amor».
E os laços do amor de Jesus enleavam-se,
mais e mais, no Coração santíssimo da Mãezinha e dos apóstolos.
12. Corre
para mim a morte, a sepultura está pronta.
13. A minha
alma chora em silêncio, esconde os seus gemidos; vê as trevas negras da
morte, vê como já todos se preparam para me prenderem e a todo o custo
tirarem-me a vida.
Ó Horto, ó Calvário, ó morte, ó horror, ó
pavor! Que rochedo mundial me escondeu o Céu!
14. O meu
coração apavorado chora lágrimas de dor e de sangue. Sente as cordas que
amanhã lhe vão atar o seu corpo. Sente nele as bofetadas e os escarros que
ao rosto lhe hão-de ir cair. Anteciparam-se os sofrimentos: já hoje sinto
tudo.
15. Vejo a
grande coroa de espinhos em forma de capacete que há-de coroar a minha
cabeça. Sinto-me a desfalecer ao ver a agonia do Horto e a morte.
16. A minha
alma suspira e agoniza. Triste quinta-feira; oh! o que me espera! Sinto e
vejo o meu sangue que em breve vai correr do meu corpo. Já vejo a cruz!
17. Sou
escândalo no meio da multidão. A alma chora; o corpo estremece.
18. O meu
espírito está no Senhor, os meus olhares n’Ele estão. E em silêncio vou
exclamando:
«Meu Deus, meu Deus, meu Pai, meu Pai!
19. Fito os
meus olhos no Céu:
«Venha o
que vier! Tenho que dar o Céu ao mundo; tenho que comprá-lo com a
moeda do meu sofrimento»
20. Durante
a tarde sentia-me a passar por entre ruas. Seguia o meu caminho e por todos
quantos me viam era escarnecida e apontada como réu de todas as culpas e a
maior criminosa.
21. Vi a
terra do Horto, o lugar que havia de ser regado com o meu sangue. Num
impulso de amor, queria beijar e abraçar essa terra.
22. Por
mais que uma vez veio para o meu coração, grande como o céu, a montanha do
Calvário. A minha alma via nela junto à cruz a Mãezinha lacrimosa, em grande
agonia, acompanhada de mais algumas almas queridas. Vi a Madalena debulhada
em lágrimas.
23. O meu
coração dizia e repetia:
«A minha alma está triste até à
morte».
24. Cuidava
de todas as coisas e o meu pensamento estava sempre no Horto. Caminhava para
toda a parte e o coração vivia sempre lá. Não valia a pena falar tão cedo
daqueles sofrimentos: não era compreendida.
25. A dor, o pavor esmagavam o coração,
destruíam-no; o amor formava-o novamente. E assim repetidas vezes.
26. O meu coração voava para o Horto a
beber na fonte de toda a dor; levava consigo outra fonte superior ainda, era
a do amor. Este obrigava a beber outra.
27. Senti dentro de mim dois mares
imensos: um de dor, outro de amor. O do amor estava sobre o solo do
Horto e dentro dele se despejava, mas sem se esgotar, o mar de dor. O amor
tudo absorvia.
28. Um fogo devorador queimou todo o meu
Interior, atingindo-me os lábios, que estavam secos e mirrados: este fogo
era de amor, era de entrega total, era de vida.
29. O amor vibrava, o amor subia, vencia,
encobria a dor. Que coração eu tinha, grande, grande como Deus! Oh, como é
grande, grande, infinitamente grande o amor de Deus!
30. O mundo
estava todo em trevas e em guerra: era um mar imenso de revolta contra mim.
Eu sentia-me atacada e ferida por todos, mas o coração amava tanto que, para
tirar das trevas a todos quantos me feriam, ia dar a vida.
31. Em todo
o dia, não podia desviar do Horto o meu espírito. Mas uma vida em mim,
suprema, suavizava-me a dor. Esta vida tinha em si a visão e a lembrança de
ter descido à Terra enviada pelo Eterno Pai.
32.
Ofereci-me por Seu amor para pagar toda a dívida da humanidade inteira. Só a
Sua divina vontade era a minha, minha era a Sua vida, meu era o Seu amor.
33. A
vontade firme e completa de cumprir a vontade do Altíssimo foi que suavizou
a dor deste dia, que não me parecia ser de um dia, mas sim de muitos anos.
Falava, caminhava, trabalhava com o mundo no coração.
34. Do meu
coração saíam para a Cidade os mais doces e ternos olhares; eram olhares de
chamamento, olhares de compaixão. Mas oh! o que eu via sair dali, que
revolta contra mim!
35. Chorei,
chorei, ou melhor, chorou a minha alma. As minhas lágrimas eram lágrimas de
pai. Eram um incessante convite ao arrependimento. Era a hora da graça, que
não mais voltava!
36. Eu via
o que a Cidade era e o que ia ser para mim. E chorava pelo que a esperava e
por ela não se aproveitar da hora da graça que lhe era dada. Eu encobria a
dor, mas ela (a minha alma) chorava e fitava a humanidade inteira. Penetrava
tudo e em todos os corações que nela haviam de existir.
37. Sofreu
muito a minha alma com a visão de Judas de porta em porta a contratar a
venda de Jesus. Os seus olhos e cabelos já pareciam do maldito do inferno.
Dentro em mim estavam os olhos divinos de Jesus que o acompanhavam em todos
os passos e cada um que ele dava, para tão cruel traição, eram punhais a
cravarem-se no Coração divino de Jesus e duras e negras cordas a cingirem-No
duramente.
38.
Sentia-se desesperar. O desespero estava em mim, mas creio não ser meu,
porque a minha alma estava resignada e sentia paz. Aquele desespero
apavorador mexia com o mundo, envolvia o Céu; fez-me mostrar os sofrimentos
do Horto, os sofrimentos de Jesus, tudo o que Ele sofreu por nosso amor.
Nesta altura, fez-me o meu Jesus compreender claramente que aquele desespero
era o de Judas e que avivou todos os sofrimentos da Sua sagrada Paixão.
39. Comecei
a ver e a sentir uma luz brilhante, a vida do Céu; a manchar-se, a
envolver-se com a Terra. Era Jesus que vinha a sofrer.
40.
Parecia-me aparecer do Céu uns raios de sol, que davam vida à Terra, e a
iluminavam de tanta treva que a submergia. Contra este sol vinham nuvens
negras assustadoras a encobri-lo. Parecia que tinha Jesus dentro em mim a
contemplar, a fitar este sol e as nuvens formadas de todas as maldades, que
tentavam encobri-lo. Jesus lançava-se às nuvens para as abraçar, embora
apavorado com elas; o Seu divino corpo cobria-se de suor e sofria sozinho.
41. Ele fitava O mundo, gemia, suspirava,
sobre ele derramava as Suas lágrimas. Ele tinha que vir e queria vir para
fora, ser a mesma massa, mergulhar no mesmo lodo, e tinha medo: era como
atirar-se ao fogo para ser queimado. O Seu divino amor era tanto:
obrigou-O a unir-se a nós, a revestir-se
das nossas maldades. Ai, não posso dizer, não sei dizer a união de Jesus, a
união da Pureza suma ao lodo imundo!
42. De longe a longe fitava o Céu e
bendizia a Seu Eterno Pai.
43. Logo
que caiu a tarde, senti como se me tirassem um formoso vestido, que me dava
toda a graça e beleza, e me vestissem um vestido mundial , que me tornou o
escândalo de toda a gente, tal era a podridão, de que ele era feito.
44. Senti
como se assumisse a mim toda a maldade humana; Tudo entrou para mim, e eu
era o mundo.
45.
Parecia-me ter vindo do Céu e transformar-me num verme da terra. Nesta
transformação eu era um verme nojento, apodrecido, carcomido, caminhando,
minando sempre em toda a terra imunda.
46.
Causou-me tal tormento que não sabia como resistir.
47.
Principiou o meu coração a arder, e sobre este fogo abrasador caiu um mundo
de misérias, trazia com ele toda a maldade e furor infernal. Sobre este
mundo veio o Céu. Travou-se uma luta, uma grande guerra: o Céu contra a
Terra , a Grandeza contra o nada, a Pureza contra a lama.
48. O Céu
descia sobre a Terra, morta pelo pecado, morta por todos os vícios. Parecia
que todo o firmamento se desfazia em fogo. O meu Deus, que revolta! Sentia
que as almas não temiam a Deus.
49. Toda a
justiça do Céu caiu sobre mim!
50. O Céu
parecia repelir-me, não me querer fitar; mas dentro em mim ia uma força que
não olhava ter que sofrer. Abria os braços para abraçar a imensidade daquela
dor e, mergulhada nela, queria dar a vida à Terra, queria dar luz.
51.
Principiei a sentir vivamente na minha alma a revolta do Céu contra a Terra.
Eu tinha que reconciliar este com esta, eu tinha que ser reconciliado e ao
mesmo tempo dar uma nova vida. Eu era podridão e tinha que com o meu sangue
fazer apagar a mesma podridão. Eu era nada, e ao mesmo tempo estava nas
alturas, tinha a mesma vida e era a mesma justiça de Deus.
52. A
maldade do mundo foi subindo, subindo, chegou ao Céu, desafiou a justiça
divina, rejeitou o amor!
53. Para
mim tudo é desprezo, da Terra e do Céu.
54. A minha
alma vê todo o meu sangue a correr por todo o mundo e é por ele todo
desprezado e calcado aos pés. A minha carne é pela humanidade comida e por
ela logo vomitada. Que grande horror! Melhor seria ser comida pelas feras.
55. Novo
fogo se acende no coração. Tenho ânsias infinitas de me dar, de ser Hóstia
para alimento e Sangue para bebida.
1. Ao cair
da tarde, a grande Ceia do amor. Amor que grande ingratidão recebeu.
2. Veio os
ânimos e cuidados com que se prepara a Ceia: vejo que vai ser a Ceia do
amor, das maravilhas, como outra jamais seria.
3. Sinto
que Jesus vai dando aos seus as suas ordens e, parando de passos a passos,
olha com os seus olhares divinos a Cidade ingrata, o Horto de tanta
amargura, o Calvário que O espera.
4. Subi com
Jesus e com os apóstolos para a grande sala onde foi realizada a Ceia.
Quando subia a escadaria, sentia que Jesus ia faminto por ir comer com os
Seus discípulos aquela Ceia.
5. Mas
antes de principiar a cerimónia via a Mãezinha louca de dor, lacrimosa,
cabelos desgrenhados. Jesus fez-se compreender que poucas horas depois Ela
iria, assim neste estado, ao Seu encontro nas ruas da amargura.
6. Foi
grande a dor do Seu divino Coração com a visão das lágrimas da Mãezinha!
7. Vi Jesus
sentar-se à mesa com os Seus apóstolos. E ao sentar-se, falou para si o Seu
divino Coração: «Manjar divino: a Ceia do meu amor!» Todo o aposento
se iluminou e todos os apóstolos ficaram embebidos naquele amor que Jesus
irradiava pelos Seus divinos olhos, lábios e todo o Seu ser, porque todo Ele
era amor.
8. Jesus
era amor, amor, só amor; amor a enfrentar maldade e ingratidão. Judas, já
não era Judas: já se via nele um verdadeiro demónio.
9. O olhar
esgazeado do mau discípulo ficou gravado em meu coração.
10.
Desesperado, com o demónio nele e o fogo infernal, já não recebeu o amor de
Jesus.
11. Vi
Judas à mesa, mas mais retirado um pouco. Queixo comprido, olhos esgazeados,
cabelos esticados: todo ele já não parecia um homem: só se via nele um
desespero infernal.
12.
Foi doloroso e arrepiante o ler no coração de Judas os maus instintos, a
falsidade que tinha para com Jesus e ser por seus olhares venenosos
contemplado! Judas fitava Jesus com maldade e, sem querer fazê-lo, fazia-o
para disfarçar. Jesus fazia-o com doçura e bondade para o convidar a Si.
13. Ele
oferecia-lhe o Coração e queria abraçá-lo.
14. Que
doces convites a um coração de pedra, a um rochedo que não se move!
15. Dois
quadros tão diferentes: uma traição sem igual e um amor sem igual. Quantos
convites cheios de doçura a essa traição! O traidor resiste, a nada se
rende; não se sente bem ao pé do Cordeirinho vítima inocente.
16. Tinha
dentro em mim, bem gravados na alma, dois olhares: o de Jesus e o de Judas.
Que diferença! O de Jesus, terno e a espalhar amor. O de Judas, esgazeado,
desesperador. Possuía também dois corações, os dos mesmos: o de Jesus, cheio
de bondade e de santos convites; o de Judas, cheio de rancor e ódio.
17. Vem a
traição, a venda do que há de mais belo e inocente, a entrega, a falsa
entrega.
18. A
amargura da minha alma não pode subir mais alto.
19. Vi-O
depois tomar em suas divinas mãos uma bacia grande, redonda; cingir o seu
pescoço com uma toalha e seguir o lava-pés.
20. Senti
que um a quem causava muita impressão lavar-lhe os pés, a um olhar e
poucas palavras, até já se despia para, se preciso fosse, lavar-lhe todo o
corpo.
21. No
lava-pés, Jesus não só lhos lavava, mas o seu divino Coração baixava tanto
que até lhos queria beijar. Eu sentia que Jesus com o seu espírito lhos
beijava. Que lição para mim! Que humildade a de Jesus!
22. Fui
aprender a ser pequenina. Jesus, o Senhor de tudo, fez-se o mais pequenino
no meio dos apóstolos Ele amava tanto, tanto!
23. Ah! Se
eu pudesse exprimir aqui todo o amor, toda a bondade e ternura de Jesus, que
bem podia fazer às almas! Mas não sei melhor.
24. Jesus
dava do seu divino Coração para cada um dos seus discípulos o seu divino
amor, em raios luminosos como sol a aparecer no horizonte. Todos os
discípulos o receberam e deixaram-se por ele iluminar. Apenas Judas se
fechou e recusou o Seu brilho e luz.
25. Que
noite, que santa noite! A maior de todas as noites. A noite do maior
milagre, do maior amor de Jesus! O seu divino Coração estava preso
àqueles que lhe eram tão queridos. Para poder partir, tinha que ficar entre
eles; para subir ao Céu, tinha que ficar na Terra. Assim O obrigava o seu
amor divino.
26. O
sofrimento amado, quem te compreenderá?
27. Queria
que todos conhecessem aquele mistério de pão e vinho transformados no Corpo
e Sangue do Senhor! Que milagre prodigioso! Que abismo insondável de amor!
Apesar de se sentir mergulhada nele, não o compreendia para o saber
explicar; só o soube sentir, e só no Céu o compreenderei.
28. Vi o
doce Jesus a abençoar o pão.
29. Queria
saber dizer, poder mostrar, no memento da bênção, os olhares que Jesus
levantou ao Céu.
30. De
olhos fitos no Céu, em chamas de fogo, orou por tanto tempo a seu Eterno
Pai.
31. Vi o
seu rosto de tal forma inflamado, que mais parecia ter em Si só a vida do
Céu, do que ser uma semelhança nossa: não perecia homem, mas sim só Deus:
amor, só amor.
32. Que
encanto! O seu santíssimo rosto era se luz, parecia que só fogo o
rodeava; com os olhos encantadores fitos no Céu e um Sorriso doce abençoava
o pão, que pouco depois por todos distribuía.
33. Foi tal
a luz, foi tal o amor que a todos embebeu: Jesus, os apóstolos e eu!
34. E
naquele momento de amor e maravilha sem igual, senti que o mundo era outro.
Jesus dava-se a ele em alimento e partia para o Céu, e com ele ficava;
aquele amor estendeu-se por toda a humanidade.
35. Que
cena tão tocante, que cena só de amor, só de um Deus! E a Eucaristia, meu
Deus, que maravilha, quando Jesus a instituiu!
36. Nunca
senti tanto ao vivo as ternuras e o amor de Jesus com os seus discípulos.
Todos os discípulos comungaram das mãos de Jesus, abrasados em amor. Hei-de
dizer que Judas comungou também. Ele estava mais afastado: Jesus estendeu a
Sua divina mão para o lado dele com o Manjar celeste.
37. Judas
ficou logo como um condenado do inferno, tal era o seu desespero.
33. Jesus
falava sempre com a mesma doçura e meigos sorrisos.
39. E os
apóstolos, naquela hora mais que nunca, se encheram de Jesus , se inflamaram
de amor e chegaram a compreender tudo quanto Ele lhes dizia.
40. Só
na sala da Ceia experimentei, por alguns momentos, a grandeza do Seu
amor, grande como o Céu e a Terra, grande como a mesma grandeza de Deus.
41. Como
Ele amou; como Ele ama! Os Seus desejos, que vivêssemos d’Ele e para Ele.
42. A
Mãezinha, retirada um pouco, mas presente, compartilhava de tudo isto.
43. Não sei
como eu era o alimento, eu era a Hóstia.
44. O meu
coração era o cálix, era o vinho, era o pão. Todos vinham comer e beber a
este cálix. Dali em diante toda aquela cena seria renovada. Mas, oh! Que
horror, o que eu vi: tantos Judas a comerem e a beberem indignamente! Que
línguas tão sujas! Mas mais horror ainda: mãos tão indignas a distribuírem
este Pão e este Vinho!, mãos indignas, corações cheios de demónios! Que
horror, que horror de morte! Senti tanta dor, que de dor e horror parecia-me
rasgar a alma e despedaçar o coração
45. Senti
também em mim a língua de Judas, língua que ardia de fogo infernal, depois
que comeu o Pão e bebeu o Vinho abençoado por Jesus.
46. Judas,
quase logo, saiu com a saca do dinheiro , para O ir vender.
47. Fugiu
desesperado a vomitar fora aquela Ceia celeste que por Jesus lhe tinha sido
dada. E continuou a sua traição.
48. Toda a
assistência ficou em paz e amor.
49.
Convívio de grande intimidade! As conversas são animadoras.
50. Que
conversação de tanta sabedoria e paz!
51. Queria
poder fazer sentir a todos os corações o que é o amor de Jesus para com a
alma que verdadeiramente O ama.
52. Senti o
amor com que João se inclinou ao Seu santíssimo peito e o amor que, naquele
momento, Jesus lhe fez sentir.
53. Como se
uniram tão docemente o Coração divino de Jesus ao coração do discípulo
amado! Jesus consolava-Se no Seu discípulo e este no seu Mestre. Esta união
suavizou a dor angustiosa de Jesus.
54. Senti
que o doce Amor dava a gozar e sofria Ele amargamente. Naqueles momentos,
muito concentrado, em profundo silêncio, viu todo o Horto e Calvário. E
sobre Ele caiu como fera furiosa toda a humanidade.
55.
Seguiu-se depois a despedida de Jesus da bendita Mãezinha: foi a despedida
mais dolorosa. Ficaram esmagados de dor os seus santíssimos Corações.
56. Senti
como se a Mãezinha beijasse e abraçasse pela última vez Jesus. Que doçura
era a d’Ela! Que triste foi a despedida! Oh, como falavam um ao outro
aqueles Corações!
57.
Uniram-se os Seus rostos santíssimos e seus lábios. Mais unidos ficaram para
a dor os seus inocentes Corações.
58.
Uniram-se os Seus divinos Corações e rostos. Uniram-se os Seus amores para
não mais se separarem. Choravam as Suas almas.
59. Jesus
beijou-A; e aquele beijo foi de despedida. Deixou no Coração da Mãezinha
raios de fogo: foram fios, foram prisões de amor que Os deixaram para sempre
unidos. Jesus foi para Horto e ficou com a Mãezinha. A Mãezinha ficou foi
com Jesus.
1. A minha
alma viu Jesus descer e caminhar para o Horto.
2. Vi e
senti a Mãezinha à descida da escadaria, envolta num manto, com os olhos
lacrimosos a fitar Jesus que já ia ao longe.
3. Que
triste separação! Que dor a de Jesus ao despedir-se da Mãezinha! Ele bem
sabia que Ela, poucas horas mais tarde, queria abraçá-Lo, tomá-Lo para os
Seus braços, curar-Lhe as feridas, e não havia de poder, nem ao menos,
confortá-Lo um pouco com as Suas doces palavras de Mãe.
4. Jesus,
um pouco já retirado, fitou-A novamente, como que a dar-Lhe um novo adeus.
Ela fitava o Seu Jesus no cimo da escadaria. Ele desapareceu, mas ficaram
sempre unidos.
Por Jesus vi os Seus olhares dolorosos,
já sem O ver e o quanto o Seu santíssimo Coração O seguia e adivinhava o que
Ele ia padecer. Que união de dor e de amor era a daqueles dois Corações!
6. Sinto
que tudo me foge. E eu vou ficar sozinha no Horto, na minha grande agonia.
7. Fujo
para a solidão, para, em silêncio, poder chorar. Oh! quantas lágrimas de
perda!
8. A cada
passo que dava eram montanhas que caíam sobre mim!
9. De passos a passos sentia como se
parasse para descansar: a alma estava fatigada.
10. Todo o
caminho foi espinhoso: grandes varas de espinhos entrelaçados feriram o meu
corpo. As ânsias e sede de amor estendiam-se a todo o mundo; e a recompensa
a esse amor foram espinhos tão vivos, tão penetrantes que, nesse grande
enleio, me cercaram o coração. As chamas de amor que dele saíam avançavam
aos espinhos, subiam às alturas.
11.
Esforçada com esforços interiores, esforços da alma, caminhei para o Horto.
12. A minha
alma caminhou para o Horto, arrastada pelo amor, naquele estreitado abraço
do coração a todo o sofrimento.
13. Cheio
de mansidão, Jesus, com os seus ‘olhares divinos, via ao longe, lá ao fundo,
de casa em casa, Judas a contratar a venda; pendurada no braço trazia a saca
com o dinheiro. Jesus tudo via, mas nada dizia aos seus apóstolos.
14. Chorava
escondido, chorava de dor.
15.
Caminhava à frente dos apóstolos, triste e silencioso. Eu vi também
que os apóstolos não se preocupavam nem sofriam pelo que iria acontecer; iam
cheios de cansaço.
16. Estes,
mais cheios que nunca, com toda a tranquilidade seguiam seu Mestre.
17. Seguiam
cansados pelas grandes maravilhas e coisas que tinham visto e ouvido de
Jesus. A viagem foi silenciosa, mas, naquele silêncio, quantas coisas lhes
dizia Jesus! Como os amava e lhes falava naquele silêncio aquele divino
Coração, tão oprimido pela dor e também pelo cansaço!
18. E
enquanto que Ele caminhava ofegante, por todo o Seu santíssimo corpo corriam
gotas de água.
19. De
longe a longe, olhava para trás, a fitar a Cidade que ficava ao fundo. Os
Seus olhares divinos viam tudo, apesar do escuro. E do Coração saía este
doce queixume: «Não olho à tua ingratidão; vou morrer por ti».
20. Ele
abismou-se no sofrimento, recolheu ao seu divino Coração toda a ingratidão e
maldade que ali viu. Aquele abismo de ódio e de dor conduziu-O ao Horto: e
Ele conduziu-me a mi
21. O
Coração divino de Jesus sentia-se espezinhado pela humanidade. E junto ao
d’Ele, no mesmo sofrimento, era o da Mãezinha. Eu sentia como se o Coração
d’Ela voasse para Jesus e que a violência da dor com ele arrastava todas as
veias do Seu corpo
22. Já a
caminho do Horto passaram-me pelo coração os suspiros e as lágrimas da
Mãezinha e via-A, não com os olhos do corpo mas com os da alma, no pátio do
aposento da Ceia, com o Seu Santíssimo rosto entre as mãos a chorar
amargurada de dor.
23. Sentia
como se levasse a Mãezinha dolorosa dentro em meu coração como outrora em
Seu ventre puríssimo Ela tinha trazido Jesus. O meu coração era o sacrário
que a recebeu a Ela com todas as Suas dores, como Ela foi sacrário que
recebeu a Jesus com toda a Sua vida divina e humana. Com que recolhimento eu
A levava!
24. Jesus
ia a chegar ao Horto e Ela ainda chorava. Jesus via bem e sentia as lágrimas
de Sua bendita Mãe.
1.
Arrastada por correntes de amor, subi ao Horto
2. Via as
oliveiras do Horto, o luar empalidecido e o brilho das estrelas triste, como
triste estava o Coração divino de Jesus. Tudo aparecia por entre a folhagem
das oliveiras, mas com tristeza que só convidava ao silêncio e ao retiro.
3. Por
entre a escuridão das oliveiras, Jesus apressou o passo, foi para a gruta
orar.
4. Vi as
próprias oliveiras do Horto com a sua vasta folhagem muito verde como que a
cobrir Jesus, a ser testemunha do Seu sofrimento e como que se d’Ele se
compadecesse.
5. Os
apóstolos adormeceram.
6. Na
solidão sentia-se ajoelhar para orar.
7. Ó Horto cheio de agonia, ó Horto cheio
de tristeza!
8. Um Horto
mundial ladrilhado de pedra dura, rochedo inquebrável.
9. Oh,
quantos sofrimentos a minha alma vê para ela e para o corpo!
10. Sente a
dor do beijo ingrato, que este rosto vai levar;
11. Sente a
bofetada.
12. O meu
rosto escarrado, os olhos vendados.
13. Sinto a
negação de S. Pedro, vejo a lareira rodeada, ouço o galo. A dor é indizível,
assim como a da tremenda bofetada.
14.
Sinto-me escarnecida, de tribunal em tribunal na algazarra do povo!
15. Vejo a
argola que está na coluna; sinto no coração as prisões que me vão prender a
ela.
16. Vejo os
açoites que em pouco hão-de açoitar meu corpo, e, nesses momentos;
açoitam-me a alma: ouço o zunir das cordas e das varas, e a alma vê o rancor
com que é açoitada.
17. Sofro
como se fosse coroada de espinhos com o corpo despedaçado.
18. Pelos
açoites, levada à varanda de Pilatos, com uma cana na mão.
19. Sobre
os meus ombros tenho uma velha capa E eu, no maior abatimento, no meio de
tantos algozes!
20. Vejo a
multidão do povo, ouço as suas exclamações: tenho que ser condenada à morte!
21. Tenho
uns momentos em que me parece morrer, sem poder resistir a tão grande dor.
22. Vem
para o Horto o Calvário.
23. Vejo os
caminhos por onde hei-de cair com o peso da cruz.
24.
Apavoro-me com a vista da subida da encosta. Como vou eu subi-la! Cheia de
maus-tratos. Principio a tremer, e todo o solo treme comigo.
25. Sinto a
crueldade com que hei-de ser despida; sinto sair nos vestidos a pele e
pedaços de carne.
26. Sinto
como se me despissem não só no corpo, mas também na alma. A dor que na alma
penetra é mortal.
27. Vejo os
cravos e o martelo que me vão pregar.
28. A cruz
ao alto! E vejo-me nela crucificada!
29. Todos
os sofrimentos se antecipam!
30. Ai, ai,
ai, o que é a dor! o que são os sofrimentos do Horto! O mundo não os
conhece, não sabe o que sofreu Jesus! Mas eu sinto-O, sofredor dentro de
mim. E em mim que a Sua sagrada Paixão é renovada.
31. Ó meu
Jesus! Só sentindo se pode avaliar quanto Vós sofrestes! Que loucura de
amor, o Vosso!
32. O
coração é que recebe todos os maus-tratos. Parece-me que ele, desfeito em
sangue, rasteja pelo solo do Horto. Rasteja como se fosse uma serpente
venenosa sobre a qual todos descarregam as maiores barbaridades para lhe
tirarem a vida.
33. O
coração amava mais do que foi ferido. O amor venceu.
34. O meu
coração fez-se como uma nuvem que, em vez de absorver água, absorvia toda a
dor e martírio; dor e martírio este que se transformava em sangue que ia
regar todo o Calvário e, nele, a humanidade inteira.
35. Tinha a
visão do sangue que ia derramar e ao mesmo tempo, das flores que nasciam
desse sangue. Por entre estas flores estenderam-se sebes espinhosas, de
espinhos agudíssimos e a maior parte deles banhados em sangue. Via o fruto e
via a ingratidão; via a glória e via a maldade.
36. Senti
no coração uma indiferença tão grande a estes sofrimentos, que não há
palavras que descrevam a agonia que esta indiferença de tanto sofrimento me
causou. Não havia compaixão para a minha alma, para a minha dor ou melhor,
direi — para a dor de Jesus.
37. Jesus
não ia ter o Calvário dum só dia, ia-o ter de muitos e muitos séculos.
38. E
àquela hora onde estava a Mãezinha?
39. Oh,
como a minha alma A via e o coração A sentia tão ao longe, no pátio à
descida das escadas, fitando os caminhos, o lugar onde Jesus estava! O seu
santíssimo Coração, ligado ao de Jesus, adivinhava tudo o que Ele ia sofrer
e em união com Ele sentia a mesma dor.
40 «Meu Filho, meu querido Filho, como
Tu sofres!» murmurava o Seu santíssimo Coração.
Profundos suspiros, copiosas lágrimas rolavam pelas suas santíssimas faces.
41.
Passavam pelo meu coração lágrimas sem conta, derramadas por Ela.
42. Quanto
sofria Ela com a Reparação e despedida de Jesus!
43. Tive a
visão, que seria para horas mais tarde, duma grande multidão que seguia a
Jesus e atrás dela caminhava a Mãezinha com ansiedade, em profundos suspiros
e lágrimas. Era o caminho do Calvário e a Mãezinha queria ver e ir ao
encontro do seu divino Filho.
44. Jesus
sofria em grande agonia: sofria com os sofrimentos que O esperavam e sofria
com os sofrimentos da Mãezinha.
45. Ele via
onde Ela estava, via a distância que Os separava. Que dor sem igual!
46. A dor
rasgava-me o coração e a alma.
47. Vi o
grande aposento onde foi feita a venda de Jesus e depois onde Judas
desesperado foi arremessar a saca do preço do sangue inocente.
48. Vi, ao
longe, uma árvore na qual estava pendurado Judas. Dela o vi cair ao solo,
rebentar e, no mesmo solo, se espalhar o que o corpo dele continha. Foi a
venda, a entrega de Jesus, o beijo traiçoeiro que o levou àquele acto,
àquele desespero.
49.
Sentia-me a única e verdadeira árvore do mundo que se transformava em
rebentos floridos e dava a estes uma nova vida, a vida do Céu. Mas para isso
tinha que enfrentar todo o Horto, todo o Calvário e morrer na cruz. Não
importava a morte: o que era necessário era dar novas vidas.
50. O amor
obrigava-me à dor. De lábios mudos, olhos cerrados entreguei-me a tudo. Lá
fui para a morte.
51. Eu em
mim sentia ter que morrer e queria morrer: sem a morte não poderia terminar
os trabalhos a que tinha vindo à Terra.
51. Nesta
altura, sentia Jesus a fitar o mundo. E com profunda tristeza dizia o seu
divino Coração: «Tanta ingratidão para tanto amor!» Não eram bem
aceites os Seus padecimentos, o Seu divino sangue, a Sua morte!
52.
Lançou-se sobre mim o peso brutal da humanidade. O seu peso esmagou-me,
abriu-me o peito, tirou-me a vida; mas outra vida superior, sublime, muito
sublime, deu-lhe entrada no coração e abrasou toda a humanidade em amor,
Triunfou da morte e abraçou toda a ingratidão. Foi tal a irradiação e
loucura de amor que fez esquecer toda a crueldade humana.
53. Abracei
o Horto, ou Alguém o abraçou dentro do meu coração. Mas este abraço foi
eterno Jesus, com a Sua luz, fez-me ver e compreender que era o Seu abraço
eterno com as almas, que era a Sua vida eterna de amor com elas.
54. E no
Horto que chamei a mim o mundo : revesti-me dele, assumi a mim toda a
responsabilidade.
55. Sobre o
solo do Horto, levantou-se um mar imenso, cujas ondas se debatiam contra
mim.
56. Tudo à
volta de mim era mar; batiam em mim as ondas furiosas como se eu fora o
cais.
57.
Derrubada por elas, caía na terra imunda e manchada; todas as manchas eram
minhas! Tremia -de pavor e parecia-me que toda a Terra tremia.
58. Estava
coberta de iniquidades que atraíam sobre mim a justiça do Eterno Pai.
59. Oh!
quantas lágrimas de perda, quantas lágrimas de vergonha por me ver revestida
de todas as maldades e estar assim na presença do Eterno Pai!
60. A
vergonha de mim mesma e o peso da justiça divina obrigavam a terra a
abrir-se e a eu esconder-me nela.
61.
Abismei-me naquele solo duro.
62. Fiquei
envolvida no solo do Horto como se fosse num manto .
63. E eu,
toda mundo, toda podridão e pecado, tomei-me responsável para diante do
Eterno Pai. Era só eu a pagar-Lhe esta inigualável divida. Para um mundo de
pecado e de podridão um mundo de sangue e purificação.
64. Todo o
meu ser ficou Horto. Todo o meu ser ficou sangue.
65. Fui
posta naquele solo duro, para ser responsável por toda a gente e para duma
grande parte ser escândalo: estes eram revoltosos, carrascos e assassinos
para mim.
66. O meu brado ao Céu rompeu por entre a
solidão, pelas trevas da noite, por entre a folhagem verdejante das
oliveiras.
67. Bradava tanto ao Céu, mas este brado
ficava como que perdido num bosque: nem o Céu me escutava e atendia.
68.
Afastou-se tanto, tanto de mim o Céu, que fiquei como se da Terra não
pudesse fitar o firmamento. Tudo tinha desaparecido: só o Horto ficou!
69. O Eterno Pai retirava-se, parecia não
existir. Mas a Sua justiça descia como que em nuvens negras a esmagar-me.
70. O solo
do Horto e a justiça divina eram para mim pedras de moinho que me desfaziam
em dor e pó.
71. Eu era
o grãozinho de trigo moído, transformado em farinha; mas essa farinha
continuava a ser moída, até desaparecer. Eu era o cachinho de uvas apertado
entre a prensa. E depois de ter dado todo o sumo, até esse tinha para ele
novas prensas que o faziam dar tudo até extinguir-se.
72. O
sangue escorria por entre essas suas pedras ; por entre elas estendia meus
braços a oferecer ao Pai o cálix amargurado. A justiça do Eterno Pai caía
sobre mim, mas abrandava-se para a Terra culpada.
73. A noite
escura e serena, que não deixava mover uma só folha das oliveiras, a não ser
quando a dor tudo obrigava a tremer, convidava-me à solidão e a ver
todo o abandono, mesmo até do Eterno Pai.
74. Quando
os apóstolos dormiam, Jesus manteve-se sentado por um pequeno espaço de
tempo junto deles.
75. Quando
Ele mais precisava dos apóstolos, os Seus amigos companheiros de tanto
tempo, menos os tinha, maior era a sua despreocupação: dormiam sossegados, a
bom dormir. Jesus sofria com este afastamento.
76. De
olhos fitos no Céu, falava para Seu Eterno Pai. As estrelas cintilantes eram
luzeiros que, por entre o olival, vinham iluminar o Horto escurecido. Para
Jesus elas não cintilavam, não davam luz: a Ele não respondia o Eterno Pai!
Contudo, a Sua alma divina amava infinitamente, e infinitamente o Seu
Coração divino amava.
77. A minha
dor chegava até Deus, mas o Seu abandono juntava-se ao da humanidade.
78. É
terrível o abandono do Céu, quando da Terra me parece não ter ninguém por
mim!
79.
Sentia-me de pé, com o cálix nas mãos trémulas, que nunca deixava de deitar
fora: o que dentro dele caía era sofrimento que nunca tinha fim era como um
copo a receber água duma fonte, sem nunca o retirar dela.
80. Jesus
dentro em mim tomava o cálix da amargura e frequentes vezes o oferecia ao
Eterno Pai. Eu era Jesus e Jesus era eu; nós os dois éramos a mesma oferta
ao Céu.
81. Em meu
coração sentia os Seus lábios a repetirem, uma e outra vez: «Pai, Pai,
Pai! Afasta-me este cálix, se é possível; mas faça-se a Tua vontade. Eu
quero morrer para dar a vida.»
82. Vi o
rosto de Jesus belo, muito sereno, com os olhos fitos no Céu. Foi no momento
da aceitação, quando pedia para o Pai lhe afastar os sofrimentos, mas no
mesmo instante queria só a vontade d’Ele.
83. Os seus
divinos olhos sentia-os na minha alma como dois sóis ao raiar.
84. Naquela
dolorosa agonia , não eram os meus lábios, mas sim o Coração que dizia:
«Jesus, se é possível, afastai de mim este sofrimento!» Mas logo me
atirava para Ele, de braços abertos, como se fosse queimada pelas chamas a
atirar-me ao mar de frescura e suavidade. «Não se faça a minha, mas a
Vossa vontade. Ó meu Deus e meu Senhor, quero consolar-Vos e dar-Vos as
almas.»
85. Vi uma
estrada imensa, coberta de fortes enleios espinhosos: todos aqueles espinhos
haviam de ferir-me. E O meu bom Jesus fez-me compreender e ver, com uma luz
muito clara na alma, que aqueles espinhos haviam de ferir através dos
tempos, enquanto que houver o mundo, não a mim, mas ao Coração divino do meu
Jesus. Eu gostava de saber exprimir melhor a grandiosidade desta estrada
espinhosa e a forma como Jesus era ferido. Mas não sei; soube apenas ver e
compreender. Fiquei-me naquela dor e angústia pavorosa.
86. Vi a
querida Mãezinha em cuidados, em amargura, em ânsias. Onde estava o seu
Jesus? Que sofria Ele àquelas horas?
87. Ele
orava com o seu santíssimo peito sobre uma pedra dura, e cercado de grandes
varas de espinhos, que se enleavam umas nas outras. Era tal a Sua dor que
causava espanto e admiração aos anjos, que do firmamento, como se fossem
estrelas, O contemplavam. Só o Céu compreendia a dor de Jesus. Depois do
Céu, era a Mãezinha a compreendê-la e vivê-la. Como Jesus e a Mãezinha se
amavam e viam um através do outro! Toda a Terra ignorava, mesmo os
discípulos de Jesus, a dor de tão amantes Corações!
88. Como a
agonia aumentasse, lancei-me com o rosto em terra.
89. No duro
chão, numa escuridão aterradora, fortes tremuras me invadiram o corpo.
90. Em mais
que um lugar me prostrei por terra. A um lugar mais ermo fui orar
sozinha; e depois busquei a companhia daqueles que amava. Que
sossego e descanso o deles!
91. E o
cálix da minha amargura, na noite silenciosa do Horto, era oferecido ao
Eterno Pai, enquanto que despreocupados dormiam os amados do meu coração.
92. Naquele
solo duro e nu, tremi de pavor parecia que os meus sofrimentos faziam lume,
formavam labaredas que faziam ferver meu sangue.
93. Eram tais os arrancos que o coração
dava, que parecia obrigar o corpo a rolar pelo chão e a suar o sangue.
94. Lá
senti que as minhas veias se entrelaçaram umas nas outras, como linhas em
novelo. Com grande dor se abriram e verteram sangue, que ensopou a terra.
95. Senti
como se tivesse a minha roupa colada ao corpo e banhada em sangue.
96. Ó
Paixão, ó dor e amor de Jesus, que não és conhecida!
97. Com
Jesus orei e suei sangue; com Ele dentro de mim a sentir o coração aberto,
como se fosse o meu, dava a toda a humanidade passagem pelo coração e com
Jesus dizia a todos: «Eu sou o caminho, a verdade e a vida.»
98. Vi
Jesus com antecipado sofrimento, com o Seu Divino Coração aberto, a dar de
beber às almas. Umas arrumavam-se d’Ele, com aborrecimento; desprezavam
tudo, nem no sangue de Jesus queriam tocar. Outras bebiam-no friamente, com
indiferença como se nada fosse. Vinham outras que o bebiam com maior amor.
Iam outras que bebiam com loucura e não queriam deixar de beber. Veio outra
que passou sobre todas, e, numa sede insaciável, bebeu, bebeu, entrou pela
chaga do Coração Divino de Jesus, perdeu-se n’Ele, não apareceu mais.
99. O
sangue regou a Terra: um orvalho fecundo, um orvalho de amor. Ia ser para as
almas, no decorrer dos tempos, orvalho de vida e de salvação.
100. Sentia
que o sangue que dava fazia desaparecer todas as manchas do pecado. Mas no
mesmo momento sentia e via que novas manchas, novos vícios se divisavam ao
longe, muito ao longe, porque não queriam aproveitar-se daquele mar de
sangue, daquele mar de purificação.
101. Via-me
a lavar o mundo com o meu sangue. E a árvore da cruz florescia à minha
volta. Mas logo uma derrota do mal derrotava tudo, ia até ao tronco. As
minhas veias eram as raízes desse tronco, e para que o trono não morresse e
continuasse a dar a vida, tinha que continuar a sofrer e dar o meu sangue. A
derrota, a destruição, que a minha alma viu, levou-me à agonia.
102. Sem eu
querer, dentro em mim repetia: «A minha alma está triste até à morte!»
103. Após
uns momentos, senti-me saída dum sepulcro: a pedra que o cobria ficou de
lado. Saía gloriosa, a triunfar sobre todos os sofrimentos. Este sentimento
e visão gloriosa, que senti ser também antecipada, nenhum alívio me deu.
104. Em
minhas mãos tinha o cálix que oferecia ao Eterno Pai. E novos enleios de
espinhos o vieram cercar. Esses espinhos deram luz que iluminava e deram
brilho ao cálix. Toda a luz e todo o brilho subiam ao Céu. Só a alma ficava
na noite escura, silenciosa e triste.
105.
Prostrada por terra, numa gruta retirada...
106. Veio
um conforto do Céu.
107. Não vi
ninguém, mas senti que do Céu desceu alguém que viesse fortificar a minha
alma, levantar-me da terra nua, aliviar-me da minha agonia, para depressa
continuar. Quem me aliviou a minha alma? Senti que foi um enviado do Eterno
Pai. Mas o Seu abandono continuou.
108. O
Calvário com a cruz não desapareceu. O mundo com a sua maldade continuou a
agravar os sofrimentos.
109. Fiquei
mais forte para o que me esperava.
110.
Apavorada a minha alma, a lutar com todo o martírio, senti como se um canal
descesse do Céu e dentro dele me introduzisse. Aquele canal tinha a vida
divina. E toda a minha vida terrena, todo o meu ser de misérias foi por ela
trespassado com raios de sol doirados e penetrantes. Que mistura, que
mistura: a Terra com o Céu! Se eu soubesse exprimir-me como soube sentir,
levava uma vida inteira só a falar disto, sem acabar.
111. Lá, no
Horto, com Jesus a agonizar, vi os apóstolos reunidos, a dormir
despreocupados.
112. Os
apóstolos dormiam. Judas aproximava-se.
113. Jesus,
cheio de doçura e mansidão, chamou os apóstolos para o grande acontecimento,
para a prisão. -
114. Ouvi-O
exclamar: «Levantai-vos, vinde! É chegada a hora.»
115. À voz
de Jesus vieram sobressaltados.
116. Era
necessário que eles viessem ver e enfrentar tão grande amor, com tão grande
ingratidão.
117. Eu
ouço o barulho da gente, o tilintar das armas.
118. Vejo a
grande multidão de soldados e mais homens que se aproximam para prender
Jesus com varas nas mãos levantadas ao ar; trazem neles o furor do inferno.
119.
Desfalecido, com os vestidos ensopados em sangue, numa profunda tristeza e
quase sem vida, Jesus espera. Vê aproximar-se a soldadagem e o traidor.
120. Ouço
uma voz que com toda a doçura diz: «Amigo meu, a que vens? É com um beijo
que entregas o teu Senhor? Que mal te fiz Eu, a não ser amar-te? É assim que
correspondes?» E logo aparece Judas que beija Jesus.
121. Recebo
em meu rosto o beijo de Judas. Que beijo cruel! Mas que ainda mereceu dos
lábios bondosíssimos de Jesus a palavra terna de «amigo». Que doçura a do
Seu Coração Divino!
122. No
mesmo momento vejo uma lança muito aguda, que vem espetar-se no Coração
Divino de Jesus. Ele vai com ela para a prisão, no meio dos maus-tratos; não
Lha tiraram mais.
123. Por
aquela grande ferida saem raios doirados, a espalhar amor.
124. Fiquei a sentir, por muito tempo,
que aquele beijo, ingratidão e traição se iam repetir, através de todos os
tempos.
125. «A quem buscais? Sou Eu, aqui Me
tendes.”
126. Vejo os soldados cair por terra e
ouço a voz de Jesus dizer: «Já vos disse que sou Eu. Se Me buscais, aqui Me
tendes.”
127. Vêm os soldados; prendem-No. S.
Pedro desembainha a sua espada, corta a orelha.
128. Vejo o troar de espadas, as armas
dos soldados. Que grande combate, se Jesus com os Seus olhares divinos e o
levantar da Sua mão, não acalmava e fazia tudo serenar!
129. Vejo Jesus colar a orelha.
130. Opera o milagre: cola-a, nenhum
ferimento deixa! E com que doçura e bondade o faz o Senhor!
131. Jesus remedeia o mal de S. Pedro com
tanta doçura. Com a mesma doçura Se deixa prender e entrega aos malfeitores.
Se eu pudesse mostrar a ternura, a mansidão e o amor de Jesus para com todos
os que O ofendiam! Não há nada na Terra que se possa comparar a Ele.
1. Vi, à
saída do Horto, que O acompanhava uma grande multidão de soldados com armas
e homens com paus.
2. Vi ir
Jesus manietado no meio de numerosíssimo povo reles e soldados. Meu Deus!
meu Deus! como eu vi o meu Jesus maltratado!
3. Ao
deixar o Horto, Jesus caiu à força de pontapés, que Lhe foram dados, bateu
com os Seus divinos lábios em pedras, já ficou muito ferido.
4. Debaixo daquela chuva de maus-tratos e
de crueldades eu senti, dentro do meu peito, o Seu divino Coração palpitar
tão aflito pela dor e pelo cansaço que já parecia dar ali a vida.
5. Oh! com
que custo subimos a subida que se seguia ao Horto!
6. Caía repetidas vezes e tinha que
levantar-se e subir sem ter quem me auxiliasse.
7. Suportei
todos os tormentos daquela vil canalha.
8. Senti
como que a garganta se apertasse e os lábios se colassem: era muda sem ser
muda.
9. Jesus cerrou os lábios, não falou mais
naquele trajecto, mas o Seu divino Coração falou sempre: era um livro
eterno, o livro do amor. Não o lia, mas compreendia-o. O meu divino Mestre,
naquele momento, fez-me compreender tudo, toda a grandeza o Seu infinito
amor.
10.
Acompanharam-nos à presença dos pontífices.
11. Eu
sentia no meu corpo os vestidos colados com o sangue já seco. Na grande sala
de Anás vi multidão que seguia a Jesus: eram homens, só homens com
armas e paus.
12. Senti a
cruel bofetada.
13. Vi o
grande ingrato que se atreveu a esbofetear Jesus; vi o rancor com que Lhe
deu a bofetada. Deu-Lha a Ele em meu coração. O grande ingrato era alto,
magro, moreno, mal-encarado.
74 Foram
tantas as gargalhadas e o bater das palmas, como se fosse praticada a mais
bela das acções!
15. E Jesus
recebeu a bofetada na maior serenidade e mansidão.
16. Como
Jesus se fazia pequenino e estava humilhado! O príncipe, na sua vaidade,
elevou-se às alturas; via-se como que adorado por quantos o rodeavam.
17. Em nada
se assemelha a dor do rosto à dor do Coração. Ai, meu Deus, se eu pudesse
mostrar a dor que Vos causaram!
18. Subi,
depois, um novo escadório, de mãos atadas, já quase de todo desfalecida.
Subia coberta de bordoadas e de pontapés, com o rosto coberto de escarros.
19. Vi a
braseira onde esteve S. Pedro e os que a ela se aqueciam.
20. Fui
levada à presença de homens severos, de carácter mau, sentados em trono como
reis.
21. Senti
essa autoridade orgulhosa, ainda antes de lavrar a sentença contra o
Cordeiro inocente, com um furor diabólico rasgaram de cima a baixo os seus
vestidos.
22. Senti
todo aquele orgulho e grandeza falsa.
O Senhor de tudo era, entre todos, o mais
pequenino! Que confusão, a minha!
23. Vi
tanto ao vivo os maus-tratos que deram ao meu Santíssimo Senhor, que me fez
compreender: se não fosse a vida divina que tinha n’Ele, teria sido
impossível conduzi-lo com vida até ao cárcere. Para maior confusão
minha, compreendi bem que fiz parte do número dos algozes que maltrataram o
Senhor.
24. Senti a
alma ir ao cárcere, ao encontro de Jesus.
25. Estava
de semblante tristíssimo, desfigurado e gelado; já quase parecia um cadáver.
26. Tremia
de frio: tinha perdido tanto sangue! Oh! que desfalecimento era o Seu!
27. Eu
senti a Sua tristeza, enfraquecimento e suores, que Lhe banhavam o corpo.
28.
Associei-me à Sua dor e tristeza, e como Ele fiquei desfalecida.
29. Mesmo
na prisão estava de mãos atadas!
30. Muito
triste disse-me: «Vê, minha filha, não se contentaram só em Me prender,
deixaram-me também algemado! Gomo é grande a ingratidão dos homens!»
31. E
dizia, sob o peso da sua dor infinita: «Filhos meus, filhos meus, sou
vosso Pai; tratais-Me assim? Estou aqui nesta prisão só por amor de vós.»
32. Vê-Lo
assim, de mãos atadas, feito um criminoso, quanto custou ao meu duro
coração!
33. Ouvi a
voz de Jesus a dizer-me dentro em meu coração: «Minho filha, estou preso,
manietado por teu amor; digo por teu amor, porque o que Eu fiz por todas as
almas, fazia-o só por ti. Acompanha-Me na minha santa Paixão.»
34. Estava
sozinho, sem ter quem O confortasse e fizesse um carinho e Lhe provasse
amor.
35. Que
pena eu tive! Por mais que Lhe quisesse dizer, quase nada disse, não pude
consolá-Lo, não soube amá-Lo!
36. O meu
pobre coração queria lançar-se a Seus pés para ser por Jesus calcado e
humilhado. Queria aquecê-Lo com o meu amor, e não o tinha!
37. Jesus
com muita doçura convidou-me a ficar com Ele: «Fica, minha filha, comigo
presa por meu amor, que Eu por teu amor Me deixei prender; e preso estou
também.»
38.
Lembrei-me então d’Ele preso nos sacrários, pois agora na Terra outra prisão
não tem.
39. O meu
coração, da prisão voava às prisões dos sacrários. Inseparável união!
40.
Abracei-O com ternura e disse-Lhe: «Sim, meu Jesus, vinde para o meu
coração, seja ele a Vossa prisão, mas uma prisão de amor. Não permitais que
eu Vos ofenda, nem consinta que outros Vos ofendam.»
41. Senti a
união de Jesus.
42. Senti
os meus pulsos algemados com as mesmas algemas de Jesus.
43.
Parecia-me que os meus cabelos estavam ensopados em sangue, assim como a
roupa que tinha, ensopada estava também e colada ao meu corpo.
44. Senti o
corpo tão magoado e cansado.
45. De mãos
atadas, olhos cerrados, na tristeza mais profunda, de lábios mudos.
46.
Senti-me sozinha na prisão, enquanto que tudo descansava.
47. Sentia
a dor de abandono em que me tinham deixado aqueles que me eram mais
queridos. Onde estavam as palavras afirmativas de não me deixarem?
48. O
silêncio era profundo. Reinavam as trevas. Só a dor murmurava no coração.
49. Sentia
a dor de alguém que chorava ao ver quanto eu sofria: esse alguém era amor de
Mãe. Em silêncio uni a minha dor a essa dor.
50.
Pareceu-me que despertei dum sono profundo. Despertei num sobressalto:
51 Vi a
cruz, a coroa de espinhos, os açoites, a lança, os martelos e os cravos!
52. Vi a
montanha do Calvário e no cimo dela a cruz levantada ao alto. Não estava
nela ninguém. Jesus fez-me compreender que era minha, que eu fosse para ela
de boa vontade.
56. Com
Jesus rompi por entre todos os sofrimentos.
57. Foram
buscar-me à prisão.
58. Senti
que foram abertas as portas da minha prisão e conduziram-me dela para fora.
59.
Esperavam-me grandes multidões de gente: meu Deus, o que ouvia de
gargalhadas!
60. A dor
da minha alma era tão grande que não a sei dizer; apenas a soube sentir.
61. Descia
das escadas da prisão; que cansaço o meu! Ao fundo delas, já tropecei e caí:
não podia levantar-me.
62. Caíram
sobre mim os algozes: que raiva infernal! Que desgraça de bofetões e
pontapés!
63. Fui
levada logo por umas grandes escadarias à presença dos juízes. Como
eu sofri ao sentir Jesus, grandeza sem igual, diante deles ser tão
pequenino, ser mesmo um nada! E eles, os verdadeiros nadas, cheios de
orgulho e vaidade, cheios de grandeza sem nenhum poder! Abateu-se o
Poderoso e elevaram-se, no seu orgulho, aqueles que nada tinham.
64. Vi a
lareira onde se aqueciam os inimigos de Jesus e uma falsa e provocadora
mulher que fazia o lugar de correio.
65. Senti,
retirado um pouco, que estava alguém aterrado e tímido, mas ia-se
aproximando: S. Pedro.
66. Era por
eles interrogado e trocavam uns para os outros seus olhares maliciosos.
67. Que
cara maliciosa era a da mulher que como policia investigava S. Pedro!
68. Vi 5.
Pedro a negar Jesus, mas sentia que aquela negação foi feita só por temor.
69. O galo
cantou. Na alma senti o seu canto e tive a visão do abrir e fechar do seu
bico. Retirou-se S. Pedro para chorar. As lágrimas corriam em meu coração
como dois regatos.
70. Oh!
Como foi grande o seu arrependimento!
71. Se eu
tivesse a mesma dor de arrependimento dos meus pecados!
72. O galo
cantou no meu coração repetidas vezes. Jesus sofria horrorosamente, mas em
silêncio.
73. Sentia
sobretudo a dor infinita de Jesus e o Seu amor e mansidão para com todos.
Quanta amargura, quantas mágoas em Seu Coração, naquele Cordeirinho
inocente!
74. A minha
alma acompanhou Jesus novamente aos tribunais.
75. O meu
coração e a minha alma com Ele correram as ruas de tribunal em tribunal, à
voz de ódios, de calúnias, desgraças, escárnios.
76. Sai da
prisão, prisão que eram trevas, e as ruas que passeava, trevas eram.
77. Vinha
de mãos atadas, mas mais atado vinha o meu coração: nem podia palpitar, nem
os lábios abrirem-se para pronunciar palavra.
78. Sentia
o sofrimento da traição e todos os que pela traição foram causados. No meio
dos maus-tratos, ao barulho e vozearias que me faziam, o coração sentia um
amor louco, um afecto indizível pelo mesmo traidor. Oh! se ele quisesse vir
de novo a este coração! Se ele quisesse reconciliar-se!
79. E o coração segredava-lhe, ao receber
estes sofrimentos: «Tenho sede das vossas almas, quero possuí-las.»
80. Fui
interrogada por senhores absolutos, cheios de soberba, convencidos de que
tudo podiam fazer. Em frente de tanta grandeza, oh, como eu era pequenina!
81.
Acompanhei Jesus a casa de Herodes com grande nojo.
82.
Enfrentei toda aquela malícia, a sua falsa presunção, soberba e
autoridade.
83. Vi e
compreendi bem toda a malícia dos Herodes.
84.
Senti-me diante de Herodes de olhos baixos, lábios mudos, coberta com uma
velha capa e a ouvir os escárnios e algazarra do povo.
85. Sentia
tanta dor de ser tratada como louca. Essa loucura era amor, era a
loucura das almas.
86. Voltei
a Pilatos
87. Senti a
grande soberba, indizível soberba dos que se julgavam senhores. Senti a
humildade e a pequenez de Jesus.
88. Fui
para a flagelação.
89. Com que
modos bruscos O despojavam dos Seus vestidos, até à cinta!
90. Vi a
coluna e Jesus preso a ela com grossas cadeias de ferro.
91.
Senti-me ajoelhada e presa à coluna. Uma chuva de açoites caiu sobre o meu
corpo e outra chuva de pedaços da minha carne e gotas do meu sangue caíam à
minha volta, deixando manchado de sangue o solo e os que me rodeavam.
92. O meu
corpo foi despedaçado por bolas de ferro, ou coisa semelhante.
93.
Pareceu-me ficar os ombros, as costas e o peito descarnados: todo o corpo
numa ferida em sangue.
94. Caí
desfalecida ao pé da coluna e vi Jesus, dentro em mim, no mesmo sofrimento.
95. Senti
os olhares divinos de Jesus levantarem-se para o Seu Eterno Pai, num amor
indizível.
96. Senti que Jesus inclinava a cabeça
sobre o peito; cerrou os olhos e ia a expirar. Esta cena repetiu-se mais que
uma vez.
97. Vi a
sacrossanta cabeça de Jesus coroada de espinhos que davam ao divino corpo um
banho de sangue. Eu via e era em mim: eu era com Ele açoitada e coroada com
a mesma coroa de espinhos.
98. Senti o
grande capacete de agudos espinhos violentamente cravado na minha
cabeça: e alguém com varas batia-lhes para eles penetrarem ainda mais fundo.
99. A coroa
não me cingia só a frente: não tive lugar nenhum na cabeça que não fosse por
eles ferido. As dores eram insuportáveis!
100. Que
chuva de sangue caiu da minha cabeça da coroa de espinhos!
101. Não
via com o sangue que, em grande abundância, me corria pelo rosto. Não podia
mover-me com as minhas carnes despedaçadas.
102.
Vestida com vestes de rei, mas vestida por escárnio, puseram-me na mão uma
cana. Que barbaridade contra mim! Era tão grande o número dos que
procuravam inventar maior proeza nos sofrimentos tratando-me mais
cruelmente!
103. A
seguir vi as escadas pelas quais Jesus subiu depois de ser açoitado e nas
quais deixou marcados selos do Seu divino sangue.
104.
Senti-me levada por alguém, que me deu a mão, à varanda de Pilatos,
105. na
figura dolorosíssima do «ecce homo»:
106. a cabeça ia cheia de espinhos, o
rosto coberto de sangue, todo o corpo ferido e despedaçado. Vi e ouvi a
grande multidão que, a uma só voz, sem se condoer de mim, bradava a minha
crucifixão.
107. A
minha alma sentiu e o meu corpo também que me levaram presa e alguns por
escárnio a ouvirem a opinião duma multidão de grande ralé e vil canalha que
me condenavam à morte. Os meus ouvidos ouviam, a uma voz só, a palavra de
«morra, condene-se!» Oh, que gritos, os da multidão!
108. Recebi
a sentença de morte.
109. Vi a
cruz que, pouco depois, senti a meus ombros para seguir para o Calvário.
110.
Esperava o povo ver Jesus, em grande multidão, como para um festejo: queriam
ouvir a sentença e regozijarem-se ao ouvir condená-Lo.
111. Senti
a dureza de todos os corações: não se moveram ao ver Jesus açoitado, coroado
de espinhos e condenado à morte!
112. E
Jesus, inocentíssimo, não tinha uma palavra para o povo. Sofria em silêncio.
Tudo aceitava e ainda mais loucamente os amava o Seu divino Coração.
113. Uns
fitavam a Jesus com compaixão, outros com ódio. Além apareceu-Lhe a
Mãezinha; doutro lado a Verónica e depois ainda algumas mulheres.
114. Viu a
minha alma a grande montanha do Calvário e no cimo a cruz ao alto, onde eu
havia de estar crucificada. Esta cruz chegava ao Céu e fazia-se abrir e
resplandecer.
1. Recebi a
cruz.
2. Não a
coloquei eu, mas senti que ma colocaram aos meus ombros.
3.
Esmagada, curvada com o seu peso, caí debaixo dela no mesmo lugar.
4. Foi tal
o peso que me fez sentir que me infundia no solo.
5. Fez-me
lembrar as minhas crucificações: senti o mesmo peso que me fazia desfalecer.
6. Caminhei
sobrecarregada com o seu peso esmagador. E como caminhei eu? Como se fosse
um vermezinho da terra, escondido sob ela.
7. Segui as
ruas tristes do Calvário. Tristes, sim, não tinham luz: eram sombrias. Só
nelas se ouvia a zombaria e algazarra do povo.
8. Aqueles
caminhos, toda a humanidade os preenchia! A cruz — Jesus e eu envolvíamo-nos
nela: era como um rolo sempre a enrolar.
9. Caminhei
morta para o Calvário. E sobre a minha morte levei a morte de toda a
humanidade. Que peso, sobre mim!
10. Não foi
a cruz que levei em meus ombros, foi o mundo inteiro: senti-o bem!
11. Ouvia o
burburinho do povo.
12. Tudo
eram gritos e vozearias atrás de mim. Não eram gritos de dor, mas de ódio e
afronta.
13. Via a
multidão que me acompanhava: poucos amigos, quase só inimigos. Os amigos
enterneciam-se; os inimigos descarregavam sobre o meu corpo, sem dó nem
piedade, grandes chicotadas.
14. O
coração sentia as gargalhadas vindas de longe, dadas por escárnio e alegria.
15. Junto a
Jesus caminhavam os dois ladrões com as suas cruzes.
16. A alma
viu a Mãezinha, quase de rosto coberto, a caminhar, lacrimosa, muito
apressada à procura de Jesus.
17. Rompia
por entre as multidões a ver onde O poderia encontrar.
18. O meu
coração adivinhava o quanto sofria o Coração da Mãezinha e com que ansiedade
Ela andava à procura.
19. O Seu
santíssimo Coração estalava, desfazia-se em dor e fazia estalar e desfazer o
de Jesus.
20. Mesmo
sem Eles se verem, eu sentia a união, a dor, amargura de um e outro Coração.
21. Quase
no princípio, Jesus caiu: feriu gravemente o seu santíssimo rosto e peito.
22. Todo o
desfalecimento, tristeza e feridas do Seu santíssimo corpo se reproduziam no
meu.
23. Caiu
outra vez, e eu caí também.
24. Os
espinhos, ao eu cair, penetravam cada vez mais fundo: a cabeça era uma dor
só; o rosto, pisado e em sangue, manchava as pedras onde batia repetidas
vezes.
25. O
sangue que corria — ou, antes, que eu sentia como se ele corresse —
passava-me aos lábios, sufocava-me; por vezes perdia a respiração.
26.
Sobrecarregada, caminhava curvada, com o ombro em ferida, a qual se avivava
com o peso da cruz. Como ia muito curvada, sentia e via cair dos meus olhos
para o chão repetidas lágrimas de sangue.
27.
Seguiam-me algumas mulheres: choravam amargamente, à vista de tantos
sofrimentos. Caminhava e fitava-as com olhar de compaixão. O coração
murmurava-lhes: «Não choreis por mim, mas por vós. Chorai as vossas
culpas: são a causa das minhas dores.»
28. À
minha frente caminhava Jesus, com a cruz aos ombros. De vez em quando
voltava para trás o Seu santíssimo rosto: fitava em mim os Seus olhares,
cheios de ternura, que me convidavam a segui-Lo e a levar por Ele a minha
cruz.
29. Que
olhares que tão docemente convidam e atraem a si as almas! Eu não podia
suportar em mim aquele convite de Jesus; não podia sentir aquela dor.
30. Eu
percorri muitos caminhos, abraçando fortemente a minha cruz: amava com todo
o amor os espinhos que cercavam toda a minha cabeça.
31. Sentia
como se fosse eu que conduzia ao cimo da montanha toda aquela tralha, todos
aqueles instrumentos de martírio. Levava-os com tanto amor,
apertava-os a mim, guardava-os como se fosse o maior tesouro: eram as chaves
do Céu.
32. A cruz
pesava sobre mim. Mas Jesus não me deixou sozinha: acompanhou-me, a levá-la.
33. Caí
tantas vezes com o peso da cruz!
34. Fui
arrastada por cordas, com o rosto em terra, a distância de metros.
Grandes covas me ficavam nas faces com as falhas da carne que junto às
pedras ficava, e essas mesmas ensanguentadas.
35. Numa
queda, o desfalecimento era tanto que não fui capaz de levantar-me. Um furor
infernal puxou-me com tanta crueldade!
36. Com
cordas fui arrastada para trás a tanta distância!
37. Sentia
as cordas na cintura e no pescoço: cortavam-me, feriam-me.
38. Eu era
como que uma bola que rolava de cima a baixo e de baixo a cima pelo meio dos
sofrimentos. Era a bola de entretenimento dos algozes! Descia, quando pelo
furor era arrastada; subia, quando a violência me fazia subir, e sobretudo o
amor, sim!
39. Os meus
olhos não queriam ver os horrores das misérias que sentia.
40. Ia cega
para a dor, mas tinha vista clara para o amor: era ele que me obrigava a
caminhar e a vencer.
41. Subia a
encosta com todo o sofrimento, mas com todo o amor para dar a vida.
42. Maior,
muito maior que a fúria dos algozes, era a força do amor que me arrastava.
43. Saiu-me
ao encontro a Mãezinha. Fitou-me, eu fitei-a a Ela. Uniram-se os nossos
corações na mesma dor.
44. Quantas
coisas um ao outro disseram os nossos corações!
45. As
trocas dos nossos olhares não se demoraram: tive que caminhar à frente,
maltratada, empurrada, arrastada!
46. Que
olhar de dor e de amor! Sem tempo para o poder contemplar, devido à pressa
que levava, ficou-me o coração preso a Ela; e ia caminhando sempre. Ela
caminhava, guiada pelo olhar que Lhe tinha ferido e atraído o coração e a
alma.
47. Em todo
o percurso não perdi mais a união com Ela: eu não arrastava só a cruz,
arrastava-A também a Ela, ou melhor, arrastava a Sua dor.
48. A dor
dos nossos corações não se separou: era como que dois fios eléctricos que
dão ligação um para o outro.
49.
Acompanhou-me, longe na aparência, mas unidos na realidade. Os nossos
corações sofriam num só coração; as nossas lágrimas tinham a mesma amargura,
a mesma dor e sentimentos.
50. Os
nossos corações falaram sempre.
51.
Caminhava silenciosa: a alma chorava, enquanto que o coração sangrava.
52. Sobre
mim pesava a montanha medonha de toda a humanidade.
53. Sentia
como se, a cada passo que dava ofegante a dar a vida, desse uma cavadela no
rochedo mais duro, que tinha que amolecer com o meu sangue.
54. A meado
do caminho, foi tão grande a queda e a descarga de açoites que sobre o meu
corpo caíram!...
55. Fiquei
com um joelho em terra e outro no ar: a um puxão brutal pelas cordas, que
mais parecia do inferno que da terra, caí para a frente. Os espinhos da
cabeça enterraram-se profundamente; o meu rosto foi ferido até mostrar os
ossos. Os lábios abriram-se-me em sangue e beijavam a terra na qual me
feria.
56. Os
olhos da minha alma estenderam-se pela humanidade. Que olhares, que tantas
coisas lhe segredavam e a tantas a convidavam!
56. Todo o
meu corpo vai chagado. Os meus olhos escorrem sangue, os ouvidos também. A
minha cabeça são só espinhos banhados em sangue. A cada arranco pelas
cordas, arrancos furiosos, os meus ossos pareciam desligar-se.
57. Vem ao
meu encontro a mulher, a mulher querida, compadecida da minha dor. Com que
ternura e amor limpa do meu rosto o suor, o sangue e o pó! Os laços da mais
estreita amizade prendem os nossos corações. E indizível o que queria dela,
os louvores que queria dar-lhe. Oh! como queria que ela fosse falada por
este acto tão heróico!
58. Eu
sinto como se o meu rosto e o amor do meu coração — que não é o meu amor —
ficassem no pano imprimidos.
59. Ela
aperta-o ao coração como o maior tesouro; e, na verdade, o é!
60. Aquele
retrato sem igual havia de ser visto enquanto o mundo existir.
61. Jesus
não só deixou o Seu santíssimo rosto retratado, mas junto lhe deu como
prémio o Seu santíssimo Coração abrasado de amor. Que agradecimento, o
d’Ele!
62. Que
grande foi a recompensa que ela d’Ele recebeu!
63. Se eu
soubesse amar a Jesus como a Verónica O amou!
64. Caí com
a cruz: ela pesava sobre mim. Um braço dela caiu-me sobre o peito e feriu-me
o coração. Por uns momentos fiquei desfalecida, como se não tivesse vida. Os
algozes fitaram-me curiosos, pensando eu ter morrido. Um novo furor me
arrastou fortemente e fez bater nas lajes: novas fontes de sangue se abriram
dos espinhos da minha cabeça. Mas, mesmo assim, do meu coração só caía amor
e compaixão por eles. A marcha tornou-se cada vez mais acelerada; a raiva
dos algozes ansiava ver-me no cimo do Calvário, para completarem seus maus
intentos. «Para que me feris assim, se vou morrer por vós?»
Segredava-me Jesus no coração.
65. A
Mãezinha, de mãos cruzadas, seguia Jesus, trespassada de dor.
66.
Seguia-O em doloroso pranto. Mais duas mulheres A acompanhavam.
67. Jesus
caminhava com a cruz aos ombros e, na maior parte do caminho, ia como de
rosto voltado a fitar Sua bendita Mãe, que caminhava atrás.
68. Que dor
a d’Ela! não poder aproximar-se de Jesus e levantá-Lo das Suas quedas! Ela
queria beijá-Lo, limpá-Lo, lavar-Lhe as feridas, mesmo com as lágrimas dos
Seus santíssimos olhos.
69. Atrás
d’Ele caminhava uma mulher; não lhe vi o rosto, vi-lhe uma farta cabeleira
estendida.
70. Ia a
cada passo a expirar. Caí, e sobre mim ficou a cruz. Não por dó, mas por
receio queriam alguém que a levasse. Houve quem caminhasse com ela: não por
amor, mas por ser mandado.
71. Esse
auxílio não foi voluntário, não recebi dele consolação.
72. Mas
mesmo assim, quanto amor senti o meu coração dispensar-lhe!
73. Só
perto da montanha me foi tirada a cruz, mas eu sentia-me como se sempre
levasse o seu peso.
74. Ia
quase sem vida e como se levasse a cruz. O sangue que vertia tornava-se em
prisões que me uniam a ela.
75. Os
lábios iam cerrados, mas o coração parecia falar a todos e a todos mostrar o
seu amor.
76. Amava
aqueles que na viagem me confortavam e davam provas de amor; amava a todos
que me maltratavam e desprezavam.
77. O meu
coração parecia cobrir toda a Terra.
78. Amava
tanto, tanto! Não me cabia no peito coração tão amoroso. Este amor parecia
queimar todo o meu ser.
79. Uma
vida do alto sustentava meu corpo já cadavérico,
80. Pior
ainda do que o de um leproso desfeito. O coração ia sequioso; havia de
vencer pelas almas, havia de morrer por elas.
81. A sede
do coração, a sede de morrer, a sede de abrir o Céu, para fazer aparecer e
brilhar o sol nas almas, subia, aumentava, vivia mais, quanto mais se
aproximava o Calvário e o momento de dar a vida. Sede insuportável, sede
indizível: sede que não era minha.
82. Os meus
lábios moribundos tinham sede ardente, mas o coração mais sequioso estava:
quer beber a amargura até à última gota; tudo quer sofrer porque a todos
ama; tudo quer dar para tudo receber.
83. A sede
ardente que no coração levava era a força do meu caminhar.
84. A
vida fugia! O Calvário não chegava!
85. A
montanha subia, subia.
86. Parecia
subir às nuvens!
87. Era tão
alta: chegava da terra ao céu! E eu sem forças para subir!
88. Quanto
mais caminhava, mais desfalecia e mais alta, difícil e dolorosa eu via a
montanha.
89. Quanto
mais se aproximava o fim da montanha, mais difícil se tornou a subida: mais
agonia, mais sangue, mais abandono e mais dor!
90.
Desfalecida, não podia dar um passo sem sentir as carnes a desfazerem-se, os
nervos a destruírem-se.
91. As
golfadas de sangue eram quase contínuas e o desfalecimento levava-me à
terra.
92. Todos
os sofrimentos à minha frente aniquilavam-me o coração: era um aperto que o
sufocava e lhe tirava a vida.
93. Um amor
irresistível saído do coração prendia-me mais e mais à cruz. O amor
ultrapassava todas as dores.
94. Nesta
loucura de amor foi-se aproximando a montanha, que, sendo para mim — ou para
Jesus que em mim subia — montanha de morte, ia ser para a humanidade
montanha de vida. A dor aumentava em união com o amor.
95. Todo o
meu viver se mergulhava na Paixão dolorosa de Cristo: todo Ele, todas as
Suas chagas e feridas se estamparam em mim como verdadeira realidade. O meu
coração a arder de amor ia preso ao Pai celeste: era a Ele que eu amava, era
por Ele que eu amava as almas.
96. Eu fui,
ou pareceu-me que ia, por um outro mundo superior a este, enquanto que o
coração cá em baixo sofria a dor mais triste e profunda. Era tão pequenino
para tanto sofrer!
97. O
coração amava e lá, no cimo chegava ao céu, a alma via nele a cruz de Jesus
e Ele nela crucificado. Eu tinha que juntar-me a Ele.
98. A cruz
de Jesus era um farol que entrava dentro em meu peito a iluminar tudo:
Sentia-me atraída para ela. Para a abraçar, para a possuir, ia caminhando.
99. Era
cruz de triunfo que brilhava mais que o sol.
100. O meu
caminho é cheio de espinhos e de sangue; e Jesus, todo ferido, era cruz, dor
e amor.
101. Que
segredos indizíveis a alma via em tão grandes sofrimentos, em tão dolorosa
viagem! E, por último, no Calvário! As trevas negras da noite não impediram
que a alma pudesse perscrutar todos aqueles segredos, segredos que só a
sabedoria dum Deus pode e sabe revelar.
102. Eram
segredos, mistérios de Redenção.
103. Foi
unida a essa sabedoria, de quem eu nada sei dizer, que eu me senti obrigada
a sofrer e a agonizar.
104. Seguia
para o Calvário triste, humilhada, sempre o mesmo verme a abrir caminho, sem
perder a vida do Céu.
105. Eram
tais e em tão grande número os sofrimentos que eu não podia: sentia-me
desfalecer.
106.
Desfaleceu o corpo; desfaleceu a alma.
107. No meu
caminho apareceu-me o Coração divino de Jesus, não sofredor, mas formoso e
cheio de glória a saírem do Seu santíssimo corpo, de cima a baixo, mas com
maior abundância do Seu lado aberto, da chaga do Seu sagrado Coração, raios
brilhantes de fogo que vinham todos para mim. Levantou a mão, com um dedo
apontou para o Céu, e disse-me: «Caminha, que Eu te ajudarei».
108.
Caminhava com muitas lágrimas que fazia cair sobre Jesus e a Sua cruz, como
orvalho só de amor. Eu segui, mas não levava a cruz; nem levava nada. Alguém
a sustentava e levava por mim. Era Jesus o Cireneu de todos os meus dias, o
Cireneu de cada momento da minha vida.
109. O meu
coração não se desprendia de Jesus: só d’Ele esperava a força. Os meus
olhos não podiam desligar-se do Céu. Caminhava, mas sempre com eles bem
fixos lá. O Céu, o Céu, o fim de todo o meu sofrer! Dar honra e glória ao
meu Deus e salvar as almas. Aceitar e fazer a vontade do Pai.
110.
Bendita a cruz! Bendito Jesus que assim ma dá!
111. O
coração ofegante parecia estalar com as ânsias de ver novos mundos de pureza
e amor para entregar a Jesus.
112. O amor
vencia, apesar de me parecer que comigo arrastava o mundo.
113. Não
era eu que caminhava: era uma outra Vida que o meu ser tinha. Essa ida abria
um novo caminho nos caminhos da amargura. No entanto, estes ficavam
amolecidos, regados com o meu sangue.
114. O meu
corpo dava sangue, como um chafariz: regava os caminhos por onde passava.
115.
Parecia que era eu que derramava o sangue no caminho do Calvário, e ao
mesmo tempo era o sangue de Jesus que me regava a mim e me abriu com ele uma
estrada nova, que me conduzia ao Seu divino Coração. Era estrada única, era
estrada de salvação.
116. Senti
que Jesus me levava com Ele. Ele era o caminhante e o condenado. Ele era o
que sofria. Mas transmitia para o meu coração a dor que sentia no d’Ele.
117. A
estrada continuava aberta em Seu divino Coração. Todos tinham licença de por
ela caminharem. Parecia romper por entre um rochedo, deixando-o aberto em
pedras, das quais podia fazer lindas obras. Para isso era preciso serem
regadas com o sangue de Jesus: e eram-no na verdade. Do Seu divino corpo ele
corria em abundância, assim como a chuva de gotas de suor. Não bastava
ainda: era necessário dar a vida e eram essas as ânsias de Jesus!
118. Já
perto do fim da montanha, sentia Jesus a morrer. Ele já não podia dar um
passo: passava mais caminho arrastado cruelmente do que a caminhar pelo Seu
pé. Ele não via, com os olhos colados pelo sangue. Seu santíssimo corpo já
gelava, sem estar na cruz.
119. Ao
terminar da viagem, senti que Jesus caiu no meu coração; queria levantar-se
e não podia: os vestidos prendiam-se; o desfalecimento não o deixava. Os
algozes pelas cordas arrastaram-No a metros de distância.
120. Vi-O e
senti-O no meu coração levantar os olhos para o Céu, em sinal de socorro.
121. Os
Seus divinos olhos, para o mundo cerrados, iam abertos para Seu Eterno Pai.
122. Eu
sentia em mim o desfalecimento de Jesus. Eu queria subir e não podia. Eu
queria ajudá-Lo, mas, terra como era, não me foi possível!
123. Que
cansaço mortal ao terminar a montanha!
124. Que
dor, a minha, deixar Jesus tão sozinho!
125. A tudo
me associei a Ele, e com Ele queria morrer, apesar de ver que era morte
pavorosa.
126. A tudo
me sujeitei, vencendo a minha repugnância por amor a Jesus.
127. Foi
tão longa a viagem! Não me pareceu uma viagem de umas horas, mas sim de
anos, de muitos anos.
1. Cheguei
ao Calvário, e desfalecida, sem vida. Levava no coração um peso imenso.
2. Caí
desfalecida, com o rosto em terra, junto à cova, que já estava aberta para
ser levantada a cruz.
3. Senti
como se viesse sobre mim um mundo de feras. Que raiva e que peso imenso elas
descarregaram sobre mim! O coração ficou sempre esmagado e a bater em grande
aflição: parecia expirar a cada momento, e expirar em trevas e medonha
cegueira!
4. Que
desespero sinto em mim! E desespero de amor. Tudo me causa horror: a morte,
o abandono, ó meu Deus! De joelhos, levanto os olhos para o Eterno Pai:
dou-Lhe o meu sinal de aceitação a tudo. Entrego-me à morte. Baixo os olhos,
entro em mim e num abraço mais íntimo estreito tudo ao meu coração.
5. Abraçar
aquilo que me causa tédio e nojo!
6.
Tiraram-me as cordas que me cercavam o pescoço e a cinta: que enormes dores!
Elas estavam enterradas na carne, ensopadas em sangue. Ao serem arrancadas,
deixavam-me no corpo marcas com grandes feridas.
7. Ao
serem-me tirados os vestidos, foram tirados com tanta pressa que chegaram a
rasgar-se. Que dores violentas ao irem com eles pedaços de carne!
8. Os
olhos, com o sangue, não podiam abrir-se, mas a vergonha obrigava-me a
conservá-los mais profundamente fechados: ser despida em público!
9. Só a mesma graça divina me podia
segurar de pé. Quero exprimir-me melhor: não a mim, mas a Jesus.
10. Senti
logo que a Mãezinha queria com o Seu manto cobrir Jesus, revestido em mim.
11. Senti a
vergonha de Jesus: que coisa tão profunda! Não sei o nome que hei-de dar
àquela vergonha.
12. Meu
Deus, que nudez a de Jesus, que pudor sem igual! Com a vergonha todo
o Seu santíssimo corpo estremeceu.
13. O Seu
rosto divino ficou como que incendiado.
14. Foram
tantas as risadas de escárnio, que ecoavam em todo o Calvário!
15. De
longe Jesus levantava para o Céu os Seus olhares; baixava-os de novo, para
mais intimamente sofrer no Seu Coração.
16.
Estenderam-me na cruz.
17. Senti
como se fosse eu mesma a deitar-me sobre o madeiro e a estender as mãos e os
pés para ser crucificada. Era um abraço eterno à cruz, a obra da redenção.
18. Os
membros de Jesus estavam nos meus, o Seu divino Coração no meu estava.
Éramos os dois num só corpo a sofrer. Foi violentíssima a crucifixão. Sentia
quase como que se me arrancassem os braços e pernas fora, tal era a força
com que eram puxados para chegarem ao ponto marcado da cruz.
19. Que
brado tão doloroso de socorro saiu de dentro de mim para o Eterno Pai! Que
olhares tão enternecidos saíam dos meus olhos a fitarem o firmamento, a
movê-lo à compaixão!
20. Vi o
soldado que com grande crueldade dava as marteladas: era destemido, de olhar
cruel e aterrador.
21. Via-o
levantar o martelo ao alto e com toda a força o deixava cair no cravo.
22. Ecoava
dentro em meu peito o som estrondoso do bater dos cravos. Fiquei com os meus
pulsos e pés abertos como se fossem por eles trespassados:
23. Sentia
que das feridas dos cravos corriam fontes de sangue.
24. Sentia
como se outro cravo, mais duro e doloroso, me cravassem no coração.
25. Foi
dolorosíssima a abertura das chagas.
26. Senti
como se os cravos me trespassassem todos os nervos.
27. Não
senti só os pés e as mãos rasgadas: todo o peito o foi também. Parecia nada
ter dentro: tudo tinha sido esgotado.
28. A dor
aumentou, e o último momento da vida, se não fosse um milagre, era no mesmo
instante.
29. Ao ser
a cruz voltada para revirar os cravos, foi meu rosto no solo muito ferido e
uma golfada de sangue me veio aos lábios.
30. Que
doloroso foi o retirar dos cravos!
31. Todas
as dores das feridas e fúria dos soldados vinham bater no meu coração; e
sentia como se os soldados mo despedaçassem e esmigalhassem a dentada, tal
era a sua raiva.
32. Via as
línguas blasfemadoras que blasfemavam contra mim.
33. O meu
Calvário, o meu Calvário!
34. Foi
Jesus, não fui eu, que assim foi ferido. Mas não sei exprimir-me doutra
forma.
35. As
pancadas que apertavam os cravos não eram só para o Calvário: pareciam ecoar
no mundo inteiro.
36. Nem o
som das fortes marteladas sobre os cravos que entoavam ao longe, nem a vista
de tanto padecer, moviam os corações!
37.
Crucificada, fui levantada ao alto.
38. Que
grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixar a cruz cair na cova com
tanta força! Pareceu cair num poço.
39. Com o
estremecer da cruz, avivaram-se mais as feridas dos espinhos. E uma chuva de
sangue caía deles, banhava-me o rosto.
40. Todo o
meu corpo restava coberto de espinhos como um ouriço: tudo era dor, tudo
era sangue.
41. Não
cessei mais o meu brado ao Céu: “Socorro, socorro!”.
42. Fiquei
com Jesus tão presa à Sua dor e agonia, que nada havia que nos separasse.
43. Ao lado
de Jesus foram crucificados os dois ladrões. Eu sentia que os sofrimentos,
as cruzes deles sobrecarregavam sobre mim, sobre a cruz de Jesus que em mim
estava. Sentia sair do Coração divino de Jesus o mesmo amor, as mesmas
graças: um aceitava-as, o outro repelia-as.
44. Que
corações aflitíssimos rodeavam a cruz!
45. 5.
João, as três Marias .
46. Mas o
coração da Mãezinha em nada se parecia com os outros.
47. A
Mãezinha com os olhos fitos em Jesus, com duas fontes de lágrimas a
correrem-lhe pelo seu santíssimo rosto, agonizava com Ele.
48. Jesus
não via com os Seus santíssimos olhos o pranto da querida Mãezinha, porque
os tinha ora fechados, ora levantados ao Céu; mas tudo via e ouvia com os
seus ouvidos e olhares divinos.
49. Estes
iam penetrar toda a dor que no mais íntimo do coração A faziam agonizar.
50. Do alto
da cruz murmurava: «Mãe, minha Mãe, até Tu serves para meu martírio! A
tua dor aumenta-mo: nem ao menos Tu podes aliviar-me!»
51. Ela
murmurava: «Tu és meu Filho, eu sou Tua agonia».
52. A
Mãezinha, quanto sofreu com Jesus! Na cruz, no Calvário, era Ele com Ela um
só coração, uma só alma, uma só dor, um só amor.
53. Como
Ele, eu queria enxugar as lágrimas da Mãezinha, consolá-La na sua dor,
fazer-Lhe o que Ela bem depressa ia fazer a Jesus, mas com Ele já morto.
54. A todos
os momentos eu tinha que abraçar-me a mim mesma, para mais em mim estreitar
o Coração da Mãezinha. Quanto mais Ela sofria, mais eu A amava, mais Ela era
mais a minha Mãe.
55. No cimo
da cruz, continuámos os três na mesma dor.
56. Vi
amontoados os vestidos de Jesus, depois retalhados e leiloados.
57. Senti
como se fosse dado no coração um grande corte com a espada numa capa roxa:
não feriu o pano, mas feriu-me a mim.
58.
Feriu-me a maldade e crueldade com que o fizeram.
59. Que
doloroso foi: os Seus vestidos retalhalhados e alguns pedaços tão ensopados
em sangue que se colavam à minha alma como se fossem sinapismos! Que dor,
como os senti tão ao vivo! O sangue, as carnes do inocente Jesus nos pedaços
do Seus vestidos!
60. Com o
peso do corpo, as chagas abriam-se cada vez mais;
61. O
sangue caía das mãos e pés com abundância.
62.
Oprimida pela violência da dor produzida pelo rasgar das chagas, senti como
se uma veia junto do coração se rasgasse também: e dele saiu muito sangue
que se espalhou pelo corpo, para romper por todas as feridas.
63. Sentia
todas as chagas, mas mais vivamente a do ombro; e a cinta ainda parecia ser
cortada pelas cordas.
64. Os
nervos estremeciam: pareciam encolher-se.
65. A dor
atingia o seu auge.
66.
Cingiram à minha cabeça o capacete dos espinhos que me causaram tanta dor e
quase me faziam desnortear. E o coração quase deixava de palpitar. Não eram
mãos que no alto da cruz apertavam esse capacete, mas era o rancor mais que
infernal de tantos corações.
67. Sentia
como se me escarrassem e açoitassem mesmo no alto da cruz! Sentia os açoites
na alma, como se me fossem dados no corpo.
68. Ao
ouvir as maiores injúrias, sentia correr no meu corpo bagadas do suor da
morte.
69.
Parecia-me que todo o corpo e alma se rasgavam de dor, à semelhança de pano,
fio a fio.
70.
Custou-me tanto a crueldade e ingratidão daqueles que desdenhosos ocupavam o
Calvário!
71. Senti
que em muitos corações aumentava o ódio, o aborrecimento contra Jesus — um
desejo de O ver desaparecer dos seus olhares venenosos, fosse como fosse,
custasse o que custasse.
72. O
inocentíssimo Jesus estava num gemido contínuo.
73. Ondas
de insultos, tormentos e maldades caíam sobre mim.
74. Não
sentia ali só os maus-tratos do Calvário, mas sim os de todo o mundo.
75. Os meus
olhos mergulhados nas trevas nada podiam ver; neles tinham outros olhos que
viam tudo, tudo através dos tempos, todo o sofrimento que até ao fim do
mundo havia de ferir um Coração que junto ao meu estava.
76. Da cruz
fiquei a ver em todo o mundo todos os sofrimentos que, no decorrer dos
tempos, a cada momento, iam renovar a Paixão de Cristo, que de mim se tinha
revestido.
77. Sentia
os golpes de toda a humanidade, pessoa por pessoa: uns com toda a crueldade
e maldade, outros forçados e até inconscientes do mal que faziam.
78. Tudo
sentia, tudo me estava presente: o passado, o presente, a ingratidão e
maldade do futuro.
79. Eu
queria poder chorar as minhas culpas e as de todo o mundo. Se eu tivesse a
dor e o arrependimento da Madalena! Mas não, não tinha! Só tinha as ânsias
de me abraçar à cruz por amor de Jesus.
80.
Sentia-me abraçada à cruz: queria sofrer, queria morrer.
81. O
meu calvário morto tinha lágrimas; estas mergulhavam nelas a
humanidade inteira. Esta morte bradava, e junto a ela havia a dor infinita e
as ânsias infinitas de ao mundo dar a vida.
82. Na cruz
crucificada, continuei a sentir que o meu corpo não era mais que um cadáver.
Jesus é que era a vida. Eu morta, mas com Ele ia viver.
O Seu divino Coração em agonia bebia
sofregamente todo o sofrimento, na ânsia de me comunicar a sua vida e dela
me fazer viver:
83. Via
muito bem que a Sua dor era um maná, o bálsamo fecundo, a vida das almas.
84.
Pareceu-me que o meu coração se transformou todo no de Jesus: todo ele era
amor. Tinha uma sede devoradora dos sofrimentos, porque via que só estes,
com a morte, podiam dar a vida e abrir o Céu. Dei-me, dei-me toda ao
martírio.
85. Fiquei
na cruz e fui a cruz. Do coração saíram umas prisões que enlearam a cruz:
eram prisões de amor. Este amor da cruz lançou raízes para a Terra e delas
nasciam árvores de vida, árvores florescentes. Eu fui tudo isto, e de tudo
isto fugi.
86. O
Coração divino de Jesus não deixava em mim de amar. Era dentro do meu
coração que Ele amava a humanidade inteira. E eu não podia deixar de amar a
cruz: via e sentia que só ela era a vida.
87. De
braços abertos e olhos no Céu, oferecia-me ao Pai como vítima e à
humanidade oferecia o coração e o amor.
88. O
sangue regou todo o Calvário. Era como se regasse o mundo inteiro, todo ali
presente.
89. Via o
mundo a fugir àquele sangue, e eu queria salvá-lo: doutra forma não pode.
90. Eram
tantos os que o desprezavam e fugiam dele a passos de gigante! E Jesus
louquinho de amor, sem poder desprender os braços da cruz, chamava-os e
convidava-os a entrarem no Seu divino Coração aberto.
91. Queria
desprender os braços para apontar o Seu divino Coração ao mundo e dizer-lhe:
«Antes de ser aberto pela lança, está aberto pelo amor: é para te
receber!»
92. O
Coração estava aberto num abismo infinito de amor e de perdão.
93. Jesus
amou, Jesus ama; Jesus perdoou, Jesus perdoa. Ó bondade incomparável!
94. A Sua
resposta a tudo era amar, amar com amor infinito.
95. A
estrada ao Seu divino Coração, sempre aberta, ia sendo sempre a estrada
luminosa que dava passagem a todos quantos queriam ir a Jesus. Oh! Se a
minha alma, na sua ignorância soubesse mostrar a beleza infinita desta
estrada que ao mesmo tempo era para Jesus motivo da maior agonia, ao ver que
tão pequenino número ia ao Seu divino Coração ansioso e tão grande (número)
se desviava d’Ele e fugia por caminhos errados!
96. Eles
rejeitavam a entrada no divino Coração! Oh, que agonia! Jesus queria-os
oferecer ao Eterno Pai e eu queria-os oferecer a Jesus. Que confusão! Que
vergonha! De nada valiam os sofrimentos de Jesus e o Seu sangue derramado! E
de nada valia o meu martírio! Jesus envergonhava-me diante de Seu Pai e eu
envergonhava-me diante de Jesus. A minha agonia subia, subia às alturas.
Jesus, tomando o cálix do meu coração, levantou-o, ofereceu-o repetidas
vezes ao Eterno Pai e dizia-lhe: «Recebe, meu Pai, o tributo deste
martírio, o incenso deste amor.» De verdade eu queria ter sempre
um turíbulo de incenso de amor para oferecer a Jesus.
97. Num
martírio dolorosíssimo de alma e corpo, nas três horas de agonia, fitei o
Coração divino do meu Jesus.
98. Tanto
queria em vez d’Ele sofrer só eu; e nada conseguiu. Sofri com Ele, com Ele
agonizei.
99. Com os
olhos da alma no Céu, o coração em Deus, aceitei tudo: amava e, porque
amava, sofria.
100. A
santíssima alma de Jesus chorava, eu sentia as suas lágrimas. «Meus
filhos por que me feris? Por que procedeis assim?» Eu ouvia este
murmúrio do Seu divino Coração.
101. O
Coração suspirava silenciosamente e murmurava, ao receber os insultos e
maus-tratos: «É assim que me amais? É assim que retribuís amor para o meu
amor?» Mas logo acrescentava: «Pai, perdoai-lhes, que não sabem o que
fazem!»
102. O
coração amava tanto, parecia que ia lançar-se aos pés de todas as criaturas,
a pedir-lhes para a todas possuir.
103. Senti
na alma uma chuvada de açoites: não porque os algozes o fizessem naquele
momento, mas sim porque o desejavam fazer. Jesus, dentro do meu peito,
levantou os olhos ao Eterno Pai, já quase moribundo com a dor angustiosa que
aqueles maus intentos Lhe causavam, e murmurou: «Meu Pai, custa-me a
ingratidão, mas perdoai-lhes, que desconhecem que sou Teu Filho!»
104. Senti
que Jesus estendeu os Seus olhares divinos pelo Calvário por toda a
humanidade,
105.
Palpitava de amor pelo mundo endurecido e culpado; e palpitava de dor,
quando ao Pai pedia compaixão.
106. E a
Mãezinha, junto à cruz, unia às de Jesus as Suas lágrimas também.
107. Vi as
Suas lágrimas e a firmeza como Ela se mantinha com os olhos fixos no Seu
Jesus.
108.
Contemplava as Suas chagas, via o sangue correr por todas as carnes
despedaçadas!
109. Ela
queria abraçá-Lo, limpar-Lhe o rosto cheio de escarros e pó, todo
ensanguentado e recolher em si todas as gotas do precioso sangue de Jesus,
que também era Seu.
110. Ela
queria fazer em vida o que ia fazer depois d’Ele morto.
111. Ela
queria que os seus santíssimos braços fossem asas que pudessem levantar voo
para a cruz do Seu Jesus, para O abraçar e mais unir a si. Que união sem
igual! Que loucura de dor e amor naqueles dois Corações num só Coração!
112. Havia
nos Seus Corações santíssimos a mesma dor, as mesmas ânsias: as ânsias de
darem lugar, de resguardarem para sempre n’Eles o mundo inteiro, tão
revoltoso e cruel. Como Jesus amava! Como amava a Mãezinha! Eram dois mantos
de fogo num só manto a cobrirem, a amarem o mundo inteiro. Que amor
infinito! Compartilhei do mesmo amor, da mesma dor, da mesma alegria. Dor de
um Deus feito Homem. Amemo-Lo, amemo-Lo sem cessar! Amemo-Lo noite a dia! O
meu coração anda como a avezinha perdida a mendigar amor, sempre amor para
Jesus.
113. Jesus
mal podia mover Seus lábios para bradar ao Eterno Pai, mas o Seu divino
Coração estava num brado contínuo.
114. O
brado ia para o Eterno Pai, mas era para o mundo; mas este, duro e surdo,
não o ouvia, não se comovia.
115. No Calvário, tudo passava
despercebido: o brado moribundo já não passava pelos ouvidos nem penetrava
nos corações.
116. Poucas
vezes Jesus levantou os Seus olhares divinos ao Eterno Pai, mas os olhos da
Sua alma santíssima estavam n’Ele sempre fixos.
117. Com
Jesus suspirava, com Ele gemia, com Ele me condoía da pobre humanidade.
Juntava aos Seus divinos olhos os meus, já quase moribundos, levantávamo-los
ao Céu em grande agonia, a pedir socorro ao Eterno Pai.
118. Ó
agonia tristíssima, ó trevas angustiosas!
119. O
mundo, ó almas! Como Jesus nos amou! Amemo-Lo também! Não chega a ser nada a
nossa dor, em comparação da Sua. Foi dor infinita, foi dor de um Deus feito
homem. Amemo-Lo, amemo-Lo sem cessar! Amemo-Lo noite e de noite! O meu
coração anda como a avezinha perdida a mendigar amor, sempre amor para
Jesus.
120. O meu
coração amou tanto, tanto que não se poupou a revestir-se de todo o
lodo imundo para em si o consumir e fazer desaparecer. Amou tanto, tanto que
se entregou ao Pai como réu de toda a culpa, para repará-la. Amou
loucamente, até dar a vida para que nós possuíssemos a eterna vida do Céu.
121. Era
abandonada pelo Eterno Pai! Bradei, mas sem ser ouvida.
122. Senti
a Jesus no alto da cruz, na cruz que era eu. E em mim era Ele também.
Era preciso uma escora, era necessário um conforto. Em vez dessa escora e
conforto senti como que o Céu baixasse com todo o seu peso de justiça a
esmagar-me fortemente no grande madeiro da cruz. A agonia aumentou e com
ela o abandono. O Eterno Pai não queria dar conforto. Só exigia a reparação.
Era o Juiz a pedir-me contas de todos os males da humidade. «Meu Pai, meu
Pai! Dei-Te tudo; já perdi todo o meu sangue!»
123. O peso
da justiça divina sobre mim era tão grande, tão infinito: parecia
arrancar-me dos braços da cruz, a infundir-me na terra, a ser a mesma terra!
124. Era
noite, noite tremenda.
125. Ó
agonia, ó abandono, ó escuridão!
126.
Clamei, clamei sem cessar: «Pai, ó meu Pai! Até Tu me deixas; até Tu me
abandonas!»
127. Não
era eu que bradava: era o meu coração; não era eu que o queria fazer, mas a
força da dor e da agonia me obrigava.
128. Com os
olhos no Céu, aterrada de trevas e abandono, ouvia sair do coração este
brado muitas e muitas vezes: “Pai, Pai, Pai! Não desvies de mim Tua face!
Não afastes de mim Teus olhares!»
129. O meu
brado doloroso e moribundo ecoava ao fundo da montanha;
130. ecoava
como a dinamite na rocha. Mas o Céu, sim, o Céu para mim parecia
fechado.
131. Fiquei
na cruz com Ele e Ele comigo, à espera de dar a vida para novas vidas.
«Pai, Pai, meu Pai!» bradava em extrema agonia Jesus dentro em mim. O
mundo, em resposta a este brado agonioso, dava crueldades, mais crueldades:
ingratidão, mais ingratidão.
132. Sentia
uma sede abrasadora e o maior dos abandonos. Ouvi do meu coração sair
este brado: «Tenho sede, tenho sede!» Compreendi que era Jesus e
lembrei-me que Ele tinha sede das almas.
133. Ao
receber insultos, ao sentir a sede devoradora do meu divino Coração,
segredava o amorosíssimo Jesus, cheio de meiguice: «Meus filhos, tenho
sede de vós! É assim que me saciais?»
134. No
mesmo instante senti passar nos meus lábios uma esponja uma e outra vez. A
sede dos lábios ficou a mesma; e a do coração aumentou.
135. Era
uma sede tão ardente, que só o amor dos corações de todo o mundo podia
saciá-la.
136. O
brado continuava: – Não é a sede dos lábios que quero saciada, mas sim a
sede do coração: a sede das almas! –
137. E foi
esta sede, até ao último momento, a vida de todo o meu sofrer.
138. No
alto do Calvário, não perdi a união com o Eterno Pai.
139. Sentia
em mim duas vidas, ou fossem duas naturezas: lima que não resistia a tanta
dor, outra que tudo vencia.
140. A
minha alma possuidora daquela vida que não era dela, via no Céu o
triunfo e a vitória da cruz. Mas outra visão levava-me a agonizar: a visão
de todos os crimes, ingratidões e maldades de toda a humanidade.
141. E
nessas horas de agonia foi a mesma vida divina que venceu no meu corpo
chagado, cadavérico. O amor, unido à graça e à vida divina, triunfou na dor,
triunfou na morte.
142. Eu
dava ao mundo a mesma Vida que eu era, que do Pai recebia.
143. Ainda
sem ter expirado, senti que me rasgaram o coração; essa dor antecipou-se,
porque depois de morrer não a podia sentir.
144. Senti
abrir-se-me o lado e ir a lança lá dentro atravessar-me o coração: foi como
uma espada finíssima aquele corte. Ficou sempre vivíssimo em
todo o tempo de agonia, assim como o amargor do fel.
145. Quando
assim sentia o coração, lancei um olhar ao mundo e disse-lhe: «É por ti
que estou assim!»
146. Bradei
ao Pai, mas sempre resignada.
147. Faz-se
noite no Calvário.
148.
Desciam apavorados um grande número dos que me tinham feito sofrer. Iam uns
atrás dos outros a esconderem-se como formigas no seu celeiro;
149. e já a
temerem qualquer acontecimento. Era o temor e não o amor a causa desse
pavor.
150. A
pouco e pouco, todo o Calvário ficou em silêncio; só os suspiros de Jesus se
ouviam. Só a dor reinava, aumentada com o rancor de muito? corações que,
abafados não sei pelo quê, já não falavam.
151. Depois
dos maus-tratos, blasfémias e calúnias fiquei a sentir o silêncio do
Calvário:
152. um
silêncio cheio de remorsos. Só dois Corações, muito unidos como se fora um
só, falavam um ao outro: eram só dor, só amor.
153. A
Mãezinha, ao pé da cruz, firme como uma estátua, de dor quase morria com o
Seu Jesus
154. Eu
sentia que do Coração divino de Jesus caíam para o Coração santíssimo da
Mãezinha muitas graças, muita vida e muito amor. E tudo isto Lhe suavizava
a Sua indizível dor e Lhe dava Vida para que se mantivesse firme, Sem cair
junto do Seu divino Filho, até que Ele expirasse.
155. Só com
a graça divina Ela resistiu sem desmaiar.
156. No meu
peito sentia o arquejar de Jesus.
157. Unido
ao meu, palpitava o Seu divino Coração também.
158.
Palpitava com tal força e desembaraço, que uma palpitaçã0 não dava lugar a
Outra Os Seus lábios divinos gravaram-se em mim como que um gravador a
dizer: «Tenho sede!» Quando o meu coração sentiu isto e compreendida
a sede de Jesus disse-Lhe. «Quem me dera poder saciar Vos meu Amor!»
159. Sentia
como que os Seus divinos olhos agonizantes estivessem em minha alma e
ficassem por um pouco entreabertos como que a fitar o Calvário a humanidade.
160. Cerrou
os Seus divinos Olhos e dizia: «Vou morrer. Aproveitai-vos do meu divino
sangue da minha morte, se quereis salvar-vos; morro para dar-vos o Céu.»
161. Jesus
já não podia mais: ansiava morrer para dar luz e fazer viver.
162. O Seu
divino Coração murmurava: «Filhos meus, filhos meus! Amo-vos tanto, até
morrer por vós.
163. É chegada a hora do amor: morro
por vós, não posso fazer mais».
164. Sentia
que o meu coração estava colado, enraizado com raízes de amor a todos os
corações humanos.
165. E a
ingratidão dos homens sempre a ferir-me, sempre a levar-me à morte!
166. Pude
segredar a todo o mundo: «Pode a tua ingratidão exigir mais de mim?»
167. E à
Mãezinha segredei: «Minha Mãe, aceita o mundo que é Teu! É filho
do meu sangue; é filho da Tua dor. Para o salvar, tens que cooperar comigo».
Neste segredo íntimo, com os olhos fitos no Céu, acrescentei: «Está
tudo consumado!»
168. A
Mãezinha ficou sempre como que na mesma cruz a compartilhar da mesma dor, do
mesmo martírio, e louca de amor, no mesmo fim da salvação.
169. D’Ela
para mim havia um canal de salvação. Tudo passava do meu coração para o
d’Ela, ou antes, do Coração de Jesus que estava em mim. Por Ela todas
as almas recebiam as graças e os frutos da redenção.
170. Muito
profundamente e ao vivo, senti a união das dores de Jesus com a Mãezinha e o
quanto Ela com Ele cooperava na nossa salvação. De quanto Lhe somos
devedores!
171. Senti
Jesus a dar as últimas gotas de sangue. Sentia que elas ferviam: era o amor
em que Ele ardia que as fazia ferver.
172. Ele
dizia: «Por ti fiz tudo: dei todo o meu sangue e amei-te a mais não
poder-te amar».
173.
Agonizava e repetia muitas vezes: «Pai, Pai, Pai aceita a minha agonia!»
174. «Nas Tuas mãos entrego o meu
espírito. É para Ti o meu último suspiro!».
175. Nem um
brado, nem um gemido era ouvido e aceite ao Eterno Pai. Até a entrega do
espírito parecia não ser aceite!
176. Que
aflitiva agonia! Eu murmurava continuamente: «Jesus, Jesus!» E dentro
em mim outra voz repetia: «Pai, a Ti, nas Tuas mãos, entrego o meu
espírito».
177. Com
Jesus ia desfalecendo; com Ele me sentia morrer:
178. o meu
corpo e a minha alma toda a desfazer-se em lepra!
179. A alma
tremia com dor e com medo, como o corpo treme de frio.
180. Estava
entregue ao abandono. Era completo: não tinha mais que esperar, nem ao
menos o Eterno Pai!
181. Dentro
em mim Jesus ia expirando.
182. Só de
longe a longe dava um suspiro; e nesse intervalo de tempo estava como se não
tivesse vida.
183. Mal
podia bradar ao Seu Eterno Pai.
184. Eram
os últimos arrancos.
185. Perto
de dar o Seu último suspiro, a um impulso do coração, vieram-Lhe ainda aos
lábios algumas golfadas de sangue. E correram no Seu santíssimo rosto as
últimas lágrimas.
186. Vi-O
levantar para o Céu, pela última vez, os Seus olhares e inclinar em seguida
a Sua sacrossanta cabeça.
187. Senti
como se Ele os não desviasse da Mãezinha.
188. Saíram
do Seu divino Coração uns raios doirados para o Coração Imaculado da
Mãezinha Dolorosa, junto à cruz: foi como se fossem de Jesus para Ela o Seu
adeus.
189. Senti
no coração os Seus últimos olhares e a doçura e o amor que Ele, ao expirar,
deixou cair sobre mim.
190. As
ternuras do Coração espalhavam-se para os que estavam crucificados ao lado:
para a direita eram aceites; para a esquerda, recusadas. Sentia a revolta do
que as recusava e o amor do que as recebia.
191.
Esgotavam-se-Lhe as forças, fugia-Lhe a vida; mas não se esgotava, nem d’Ele
fugia, o Seu divino amor: estendeu-se pelo Calvário, e do Calvário ao mundo,
como sopro de ar, como perfume delicioso.
192. Na
ânsia de me dar inteiramente, no amor mais puro e louco, chegou o momento de
dar a vida.
193.
Parecia-me não ter mãos e pés para tão grandes chagas. Já não tinha coração
para ser mais ferido: Já toda a dor o tinha atingido.
194. Eu era
vítima e hóstia. Antes de expirar, senti como se fosse ligada à cruz da
cabeça aos pés com medonhas serpentes: eram como cadeias que me prendiam ao
madeiro. Causavam-me pavor.
195. No
cimo da montanha, tremenda montanha, voltei a bradar; mas a violência da
dor, à semelhança da água que toca a roda do moinho, fez rolar a montanha. E
esta ficou sobre mim.
196. Todo o
meu ser era coração para amar e se entregar ao Pai.
197. O
coração ia morrendo lentamente. E aquela vida que me tinha trazido à Terra,
ia-se avizinhando novamente do Céu.
198. A
agonia era tão grande: fazia que todo o meu ser se escangalhasse até às
próprias entranhas.
199. Senti
como se me corressem pelo rosto e todo o corpo os suores frios da morte.
200. Um
brado doloroso, sumido, passou pelo meu coração: foi Jesus a agonizar.
201. Foi
tal o esforço e a violência da dor que parecia desprender-se da cruz.
202. O
brado dolorosíssimo e agonizante ecoou em todo o Calvário, ou melhor, eu
senti como ele ecoasse no mundo inteiro; e este todo estremecesse.
203. Mexia
e remexia a Terra.
204. O Céu
parecia abrir-se em fendas de fogo.
Ouvi como que um eco estrondoso de
trovão.
205. O véu
do Templo rasgou-se e caiu.
206. Toda a
terra tremia. Era um poder supremo que a fazia estremecer.
207. Senti
como se o pé da cruz se enterrasse mais para o fundo.
208. Que
medo, que medo, que pavor vindo da terra; que pavor vindo do Céu!
209. Era
noite no Calvário. A terra abriu-se, abriram-se grandes fendas. Todos
fugiram. Só as almas amigas de Jesus ficaram a fazer-Lhe companhia.
210. Os
olhos da minha alma estiveram sempre fixos no Céu a pedirem perdão e
misericórdia para a Terra.
211. Senti,
primeiro no coração e depois passou-se ao corpo, um frio gelador: foi a
morte a avizinhar-se. Jesus expirou.
212. No
mesmo momento o segredo da morte reinou no Calvário e na minha alma.
213. O Céu
abriu-se quando Jesus expirou. Já todos, do Calvário, podíamos passar ao
Céu.
214.
Reconciliou-se a Terra com o Céu: já todos podíamos viver a mesma Vida:
215.
Uniu-se de tal forma o Céu com a Terra que me fez sentir e lembrar o que em
pequenina tinha visto: a massa do padeiro no cilindro; aquela roda que
misturava tudo. Que movimento! A mesma massa, o Céu e a Terra!
216. Ficou
o Céu reconciliado com a Terra.
217. Um som
harmonioso encheu o Céu e a Terra.
218. O
Calvário estava em trevas. E eu fui descer a um lugar de trevas
e eu mesma fui a luz que tudo iluminei. Digo «eu», mas não fui eu,
porque eu mesma sou trevas e morte. Mas foi aquela vida que viveu em mim,
que triunfou no Calvário e na cruz.
219. Desci
como que a um inferno, mas não a um inferno de fogo, de maldição e
tormentos, mas a um inferno só de tremenda escuridão, onde não entrava luz
nem alegria: era um inferno de cegueira e ansiedade. Senti como que Nosso
Senhor estivesse em mim, contente, de braços abertos, como quem se sustenta
no ar entre aquela multidão, como uma pomba batendo asas, transmitindo a
mesma alegria e fazendo com que voasse essa multidão toda. Mas como, meu
Deus! Vivo e não vivo, sou eu e não sou; estou no mundo e parti. Senti que
desci a esse inferno, mas, de novo, saí, e que, atrás de mim, levava um
bando sem número de pombas brancas que voavam atrás de mim; não digo bem,
voavam esses seres que não eram corpos atrás desse corpo glorioso.
220. Eu
senti a alegria do Céu e muitas almas.
221. Eu
senti e vi tudo e fiquei sempre mergulhada na dor, na cegueira, e na morte.
222. Voara
a Sua alma santíssima e eu fiquei na mesma dor, a sentir a mesma perda da
Mãezinha.
223. A Sua
vida divina separara-se de mim.
224. Fiquei
como se a alma me tivesse deixado e eu não tivesse vida.
225. A
mesma vida divina tinha sido sempre a força de tanta dor.
226. Jesus
tinha expirado; e eu fiquei neste arrebatamento, sem pertencer a Deus sem
pertencer à Terra.
227. A
morte de Jesus escureceu o Calvário da minha alma.
228. O
silêncio da morte reinou no Calvário da minha alma.
229. Pouco
depois vi dar a lançada em Seu divino lado.
230. Foi
dentro em mim que Ele foi alanceado.
231. O
Coração foi aberto: deu as últimas gotas de sangue,
232. o
resto do Seu preciosíssimo sangue e, por fim, gotas de água.
233.
Ficaram raios do Coração a iluminar a Terra; enquanto que o sol, como que
envergonhado, se escondia entre as nuvens que estremeciam, juntamente com o
solo do Calvário.
234. De
todas as Suas chagas saíam raios de luz, como sol por frestas.
235. A
minha alma viu Jesus a ser descido da cruz: a santíssima cabeça pendurada,
um braço já estendido e a Mãezinha já sentada ao pé da cruz, de braços
abertos para O receber. Mas ai, quanto isto me custou! Estremeci, parecia-me
sentir o corpo de Jesus sem vida, frio e gelado.
236. Senti
como se Ele estivesse morto em mim e eu, com Ele, nos braços da Mãezinha:
éramos um só corpo, um só cadáver.
237. Senti
a Mãezinha estreitá-Lo ao Coração e a fazer-Lhe tudo aquilo que pouco antes
ansiava fazer-Lhe no alto da cruz.
238. As
lágrimas da querida Mãezinha caíam sobre o meu rosto.
239. Eu era
Jesus e Ela era minha Mãe; eu era o mundo e Ela era a Mãe do mundo.
240. Queria
consolá-La e abraçá-La e não podia. E então Jesus, sem estar morto em mim,
mas vivo ao meu lado, disse-me: «Minha filha, as lágrimas de minha Mãe
santíssima são semelhantes àquelas que Ela derramou outrora
sobre mim no Calvário. Ela bole não chora por ver o seu filho Jesus morto em
seus braços, mas chora por ver tantos filhos, a maior parte dos seus filhos,
mortos pelo pecado, em toda a humanidade. Que dor, a do seu santíssimo
Coração e que dor a do meu divino Coração com a visão desta perda, desta
morte quase total! Dá-me a tua dor, repara os nossos Corações tão feridos.
Tem coragem!» Foi tal a dor que senti, que me parecia morrer.
241. Foi o
amor que levou Jesus a dar a vida. E a Mãezinha continua a mesma missão do
amor: a amar-nos como a Jesus.
242. Por
entre aquelas nuvens negras da morte, rompeu Jesus; sobressaiu, foi brilhar
mais além. Venceu tudo e de tudo triunfou. Mas eu não O acompanhei naquele
vencimento, naquele triunfo, naquela luz: fiquei sempre na minha dor,
amargura e agonia. Ele foi, mas ficou sempre comigo, no meio do gozo, da luz
triunfal; unido a mim transformado em mim sofria. Queria saber falar desta
separação de Jesus, para o gozo, e ao mesmo tempo, da união dolorosa dentro
em meu corpo. Mas não sei. O que sei, é que a agonia continuou.
243. Jesus
morreu e viveu sempre. Senti que Ele morreu e sentia que Ele vivia. Ó vida,
ó vida celeste!
244. De
repente iluminou-se toda a minha alma, com uma luz que iluminava o mundo.
245. Senti
como se de cima a baixo, se rasgasse um véu: Jesus apareceu-me com a Sua
luz e deu-me a Sua vida.
246.
Ressuscitou e fez ressuscitar a minha alma. Com mais luz e dor mais
suavizada, no meu coração ouvi que Ele me dizia: «‘Ouvi, filhos meus, a
voz de Jesus que vos chama! Chama-vos porque vos quer, Ouvi e estai atentos:
é a hora da graça que passa! Recebei-a, reparai-a, aceitai-a! Bato com
insistência e peço com todo o ardor do meu divino Coração:– Vinde a
mim, chamo-vos com amor de Pai – ».
247. Numa
angústia lancinante repeti os meus actos de fé: «Creio, Jesus, creio que
foi para mim o vosso Nascimento, o vosso Horto, o vosso Calvário. Creio,
Jesus, creio!» Os meus abismos eram tão negros e profundos que só um
Deus podia penetrar neles: Foi assim que Jesus fez. Desceu à minha
profundeza, trouxe à superfície e iluminou o meu pobre ser, com uns
raiozinhos da Sua luz.

ALEXANDRINA MARIA DA COSTA nasceu a 30 de
Março de 1904 na freguesia de Balasar, concelho da Póvoa de Varzim,
arquidiocese de Braga, e aí morreu no dia 13 de Outubro de 1955.
Desde a infância denota robustez física,
temperamento vivo e brincalhão: “Os fidalgos – dizia a mãe – têm um bobo
para os fazer rir, e eu não sou fidalga, mas também tenho aqui quem esteja a
fazer festa!”.
1911-1912: Frequenta a primeira classe na
Póvoa de Varzim, pois em Balasar só havia escola primária masculina; a
feminina só foi introduzida em 1931. É na Póvoa de Varzim que, preparada
pelo P.e Álvaro Matos, recebe a primeira Comunhão:
«... Fitei a Sagrada Hóstia que ia
receber de tal maneira que me ficou tão gravada na alma, parecendo-me unir a
Jesus para nunca mais me separar dEle. Parece-me que me prendeu o coração. A
alegria que eu sentia era inexplicável».
1913-1917: Pelos nove anos de idade,
começa a trabalhar nos campos; mais tarde, é obrigada àquelas fadigas como
serviçal, para ganhar o seu pão.
1918: No Sábado Santo daquele ano, salta
de uma janela, da altura de mais de três metros, para escapar à paixão de um
homem que se infiltrara em sua casa. Em consequência da queda, começou a
sofrer de mielite comprimida na espinha dorsal, doença que só mais tarde
virá a ser descoberta através de exames clínicos, e da qual resultará uma
parálise progressiva (relatório clínico do Dr. Manuel Dias de Azevedo).
Passam-se mais seis anos de doença, ora a
pé, ora de cama.
1924: Em Junho, com muito sacrifício,
toma parte no Congresso Eucarístico de Braga: a partir de então não voltará
a sair de casa a não ser de maca!
1925: Em 14 de Abri, acama
definitivamente. Sua irmã, Deolinda, torna-se a sua enfermeira, pois a mãe
tem de tratar dos trabalhos do campo. Deolinda trabalha como costureira em
casa.
1928: Por ocasião de uma peregrinação
paroquial a Fátima, volta a acalentar a esperança da cura, mas a graça não
lhe é concedida. Lemos na Autobiografia: «Morreram os meus desejos de
ser curada, e para sempre, sentindo cada vez mais ânsias do amor ao
sofrimento e de só pensar em Jesus».
1930: No mês de Maio, escreve na capa de
um livrinho: «Ó minha querida Mãe do Céu, vinde apresentar ao Vosso e meu
querido Jesus, nos vossos sacrários, as minhas orações, e fazer mais
valiosos os meus pedidos... Dizei-Lhe também que quero muitos sofrimentos,
mas que não me deixe sozinha nem um momento».
Nessa altura, todas as manhãs repete,
entre outras, a seguinte oração: «Uno-me em espírito, neste momento, e desde
este momento para sempre, a todas as Santas Missas que de dia e de noite se
celebram na terra. Jesus, imolai-me conVosco a cada momento no altar do
sacrifício; oferecei-me conVosco ao Eterno Pai pelas mesmas intenções por
que Vós mesmo Vos ofereceis».
1931-1932: Durante as suas orações e
ofertas a Jesus, começa a sentir um calor intenso que parece queimar-lhe o
coração; sente-se como que arroubada. Num desses momentos ouve no seu íntimo
a seguinte inspiração: sofrer, amar, reparar.
Não percebe o que essas palavras exijam
dela: «Ó meu Jesus, que quereis que eu faça?», pergunta uma e mais vezes,
mas em resposta não sente senão aquelas três palavras.
1933: Em 16 de Agosto, vem a Balasar
pregar um tríduo ao S. Coração de Jesus o P.e Mariano Pinho, S. J.. Nessa
ocasião, a Alexandrina obtém que ele seja o seu director espiritual. Aquele
sacerdote inspira-lhe muita confiança: gradualmente ela lhe irá expor os
problemas da sua alma.
1934: «Foi em Setembro de 1934 que eu
compreendi que era a voz de Nosso Senhor e não uma exigência, como julgava.
Foi então que Ele me pediu e falou assim: “Dá-me as tuas mãos, que as
quero crucificar; dá-me os teus pés, que os quero cravar comigo; dá-me a tua
cabeça, que a quero trespassar com a lança, como Me trespassaram a Mim.
Consagra-me todo o teu corpo; oferece-te toda a mim!..”»
A frase «compreendi que era a voz de
Nosso Senhor» é muito significativa. Com efeito, a verdadeira experiência
mística é caracterizada pela iniciativa de Deus, particularmente forte: de
uma força tal, que a alma possa reconhecê-la não como vinda de si própria,
mas de Deus.
No princípio de Outubro, escreve ao seu
director: «Diz-me Jesus que se serve de mim para que, por mim, vão a Ele
muitas almas e, por mim, sejam excitadas a amá-Lo na SS. Eucaristia»
(Cartas ao P.e Pinho: 4-X-34).
A 14 de Outubro, a Alexandrina, com o
sangue feito sair por meio de um alfinete, escreve no verso de uma estampa:
«Com o meu sangue Vos juro amar-Vos muito, meu Jesus, e seja tal o meu amor,
que morra abraçada à cruz! Amo-Vos e morra por Vós, meu querido Jesus, e nos
Vossos sacrários quero habitar, meu Jesus».
Numa carta ao P.e Pinho, escrita em 1 de
Novembro, lê-se: «(Jesus) exige de mim que, assim como Ele me era fiel em
habitar em mim para me consolar, queria que eu Lhe fosse fiel em habitar em
espírito em todos os sacrários para o consolar e amar».
1935: Jesus diz-lhe: «Dá-me o teu
sangue pelos pecados do mundo. Aluda-me no meu resgate. Sem mim não podes
nada; comigo terás poder para tudo, para acudires aos pecadores e a muitas,
muitas coisas» (Cartas ao P.e Pinho: 3-1-35).
Em 30 de Julho, depois da Comunhão Jesus
ordena-lhe: «Manda dizer ao teu director espiritual que, em prova do amor
que dedicas à minha Mãe Santíssima, quero que se/a feito todos os anos um
Acto de Consagração do mundo inteiro... Assim como pedi a S. Margarida Maria
para ser o mundo consagrado ao meu Divino Coração». (Cartas ao P.e
Pinho: 1-8-35).
A Alexandrina responde: «Sou a Vossa
vítima, a vítima da Eucaristia a lampadazinha das vossas prisões de amor, a
sentinela dos vossos sacrários! O Jesus, eu quero ser vítima dos sacerdotes
a vítima dos pecadores a vítima do mundo inteiro, vítima da paz, vítima da
Consagração do mundo à Mãezinha».
1936: A 7 de Junho, festa da SS.
Trindade, a Alexandrina experimenta pela primeira vez a morte mística, que
exteriormente se apresenta como uma morte aparente; fenómeno misterioso que
tem sido comparado pela teologia cristã à transformação da lagarta em
borboleta, na medida em que Deus, através dele, purifica as almas e as
torna cada vez mais sublimes. (Santa Teresa, S. João da Cruz).
No dia 11 de Setembro, o P.e Pinho envia
ao Card. Pacelli o pedido para o mundo ser consagrado ao Coração Imaculado
de Maria.
1937: A 2 de Fevereiro, a Santa Sé
encarrega o Arcebispo de Braga de estudar o caso da Alexandrina e de
fornecer informações claras acerca do pedido da consagração do mundo a
Maria. (Cfr. Cristo Gesù in Alexandrina, pág. 707).
No êxtase de 31 de Outubro, diz-lhe
Jesus: «Minha filha, Eu escolhi-te para coisas mais sublimes! Servi-me de
ti para comunicar ao Papa o desejo que tenho que seja consagrado o
mundo à minha Mãe Santíssima» (Cartas ao P.e Pinho: 1-11-37).
1938: Depois de um retiro espiritual
iniciado em 30 de Setembro, no seu quartinho, sob a orientação do P.e Pinho,
Jesus prediz-lhe, no êxtase de 2 de Outubro, que ela iria sofrer toda a Sua
santa Paixão pela primeira vez em 3 de Outubro, e em seguida todas as
sextas-feiras, das 12 horas às 15.
«Não disse que não a Nosso Senhor.
Preveni o meu director espiritual de tudo o que Nosso Senhor me disse.
Esperava o dia e a hora com grande aflição, pois nem eu nem o meu director
fazíamos ideia do que se ia passar. Na noite de 2 para 3 de Outubro, se era
grande a agonia da alma, também foi grande todo o sofrimento do meu corpo...
Foi neste sofrimento que eu fui para a primeira crucifixão. Que horror eu
sentia em mim! Que medo e até pavor!».
A experiência da Paixão revivi-a,
conforme nos surge através da narração da Alexandrina, não nasce,
propriamente, do sentimento, da emotividade, da meditação e reflexão dela,
ainda que as suas disposições tenham podido ser, sob certos aspectos, um
elemento útil para abrir caminho ao carisma divino.
1939: A 20 de Janeiro, durante o êxtase,
Jesus confia-lhe que continuará a reviver a Paixão daquela maneira até o
mundo ser consagrado à Mãe Imaculada. (Carta ao P.e Pinho).
A 20 de Março, pouco tempo depois da
eleição de Pio XII, Jesus prediz-lhe que será esse Papa a consagrar o mundo
a Maria.
A 28 de Junho, prediz-lhe a guerra, em
castigo dos graves pecados cometidos pelo mundo; e então ela oferece-se
vítima pela paz. (Carta ao P.e Pinho).
1940: A 4 de Julho oferece-se vítima com
outras almas em união com Nossa Senhora, para obter que ao menos Portugal
seja poupado aos horrores da guerra. Jesus aceita a oferta e afirma
categoricamente: «Portugal será poupado à guerra». (Carta ao P.e
Pinho). Assim aconteceu.
Em Dezembro, Jesus assegura-lhe que
também o Santo Padre seria poupado aos horrores da guerra, mas que haveria
de sofrer muito, moralmente. (Carta ao P.e Pinho: 6-12-1940).
1941: Encontra-se pela primeira vez com o
Dr. Manuel Dias de Azevedo. Daí em diante, aquele médico prestar-lhe-á
assistência com todo o carinho e dedicação até à morte.
No dia 29 de Agosto, o P.e José Alves
Terças, da Congregação dos Missionários do Espírito Santo, assiste à Paixão;
seguidamente publicará um relato do que viu e ouviu no nº 10 da revista
«Vida de Cristo, a Paixão dolorosa», vol. V, Lisboa, 1941.
1942: É-lhe tirado o seu director
espiritual. No dia 27 de Março, sofre pela última vez a Paixão na sua forma
de participação física (cfr. Apresentação).
Na sexta-feira seguinte, 3 de Abril,
Sexta-feira Santa, não volta a sofrer a Paixão na referida forma, mas revive
no seu íntimo as várias fases dela (participação interior; cfr.
Apresentação). No mesmo dia, Jesus diz-lhe: «Não temas, minha filha, que
não és mais crucificada. A crucifixão que tens é a mais dolorosa que se pode
imaginar na história». (Diário, 3-4-1942). Quer dizer que, desde então,
ela participaria mais intensamente ainda em todos os sofrimentos morais e
espirituais se Jesus, na Sua Paixão, sem manifestações externas.
Neste período, as suas condições físicas
agravam-se muito; chegam a tal ponto que, em certo dia, parece estar prestes
a exalar o último suspiro e recebe a Santa Unção; dita as suas
últimas disposições.
Contrariamente ao que se esperava, não
morre fisicamente, mas começa para ela uma segunda morte mística, que irá
durar perto de dois anos.
Nesse mesmo período, começam também o
jejum e a anúria completos, que vão durar até à morte. Alimentar-se-á apenas
da Hóstia consagrada, durante mais de 13 anos!
No dia 31 de Outubro o Santo Padre faz a
consagração oficial do mundo ao Imaculado Coração de Maria. (Cfr. Cristo
Gesù in Alexandrina pág. 117).
1943: De 10 de Junho a 20 de Julho, é
internada na clínica «Refúgio da paralisia infantil» da Foz do Douro, sob a
observação do Dr. Gomes de Araújo. A autoridade eclesiástica
dispusera que se procedesse a um rigoroso controle acerca do jejum e da
anúria, em que muitos não acreditavam; também os médicos desejavam verificar
o fenómeno com o máximo rigor. O relatório elaborado pelo Dr. Gomes de
Araújo conclui com estas palavras: «E absolutamente certo que durante 40
dias em que a Alexandrina esteve internada no “Refúgio» não comeu nem bebeu,
nem urinou, nem defecou .
1944: Apesar do referido teste,
continuam a espalhar-se dúvidas e falatórios sobre o seu jejum e a sua vida
cheia de carismas; para ela, isto e motivo de indizíveis sofrimentos, tanto
mais que se encontra privada de um guia espiritual. A Providência divina vem
ao seu encontro deparando-lhe um Sacerdote salesiano a cuja direcção se
confia. Este, ao dar-se conta de que na Alexandrina há o dedo de Deus,
impõe-lhe que dite o seu diário até à morte.
Faz-lhe de secretária heróica sua irmã
Deolinda, «aquele anjo que Deus pusera ao seu lado como enfermeira».
No dia 1 de Dezembro, dá-se o matrimónio
místico, ou seja o estado de união amorosa entre Deus e a sua alma. Jesus
diz-lhe: «Tu és esposa e és mãe, mãe que não deixa de ser virgem.
És mãe dos pecadores…».
No dia seguinte, sábado, Nossa Senhora
confirma-lhe as palavras do Filho e acrescenta: «Aceita o meu santíssimo
manto, aceita-o... Podes cobrir com o meu manto o mundo inteiro, chega para
todos. Aceita a minha coroa... és rainha».
1945: Sofre por ter a impressão de que é
causa de pecado e de que ela é o próprio pecado personificado, e repara
pelas várias categorias de pecados.
Acentuam-se, tornando-se mais frequentes
e violentos, os assaltos do demónio.
Ao mesmo tempo, experimenta
diversos graus da transformação da sua alma em Cristo: «Quero, minha
filha, dilatar-te o coração, quero fazê-lo grande, grande como o meu divino
amor... Envolve-o no mundo que nele depositei». (Diário, 3-3-45).
E, passados alguns meses: «Tomou em Suas
divinas mãos o meu coração e fez dele uma grande bola que momentos depois
colocou no lugar do coração. E disse-me: «Minha filha, o teu coração é
uma bola de amor...». (Diário, 22-6-45). «Minha esposa, minha rainha,
vives de Mim, a tua vida é a minha, estou transformado em ti, eis porque a
tua vida é divina... Tu és a fonte e Eu a água que corre nela, que lava e
purifica...». (Diário, 1-9-45).
1946: As articulações dos braços e das
vértebras desconjuntam-se; o Dr. Azevedo resolve enfaixar-lhe o corpo todo
e colocá-la em cima de tábuas; assim ficara até à morte. (Diário, 4-10-46).
Novos exames de teólogos e médicos
deixam-na num estado lastimoso. (Diário, 26-11-46).
1947: Sente-se muito mal de saúde e
escreve por seu próprio punho, com indizível sacrifício, a sua
carta-testamento aos pecadores: “Levei a minha vida a sofrer, e levarei o
meu Céu a amar e a pedir a Jesus por vós, ó pecadores. Convertei-vos e amai
a Jesus; amai a Mãezinha Vinde, vamos todos para o Céu! Se sentísseis, por
algum tempo, os martírios que por vós sofri, estou convencida que não
pecaríeis mais; e, se conhecêsseis o amor de Jesus, então morreríeis de dor
por O terdes ofendido. Não pequeis! Não pequeis! Jesus criou-nos Jesus e
Pai!». (Diário, 25-7-1947).
1948: Cheia a transbordar da caridade de
Cristo, intensifica o seu apostolado paroquial e o auxílio aos pobres que a
ela recorrem cada vez mais numerosos; auxilia as vocações, o Seminário e as
Casas Religiosos de formação.
Aumenta sempre mais o número das pessoas
que a vão visitar para se aconselharem. Jesus diz-lhe: «Acodes com a tua
dor. Confia que a tua dor é para as almas mais do que a água é para os
peixes; a tua dor é para as almas mais que o sol é para a terra».
(Diário, 6-2-48).
A 14 de Julho, escreve por sua mão o
epitáfio a ser gravado na própria campa: «Pecadores, se as cinzas do meu
corpo vos têm utilidade para vos salvardes, aproximai-vos, passai por cima
delas, calcai-as até que desapareçam, mas não pequeis mais, não ofendais
mais vezes o nosso Jesus. Pecadores, tantas coisas queria dizer-vos! Não me
chegava este grande cemitério para as escrever!... Convertei-vos! Não
ofendais a Jesus, não queirais perdê-Lo eternamente. Ele é tão bom! Basta de
pecar! Amai-O! Amai-O!»
A 23 de Setembro, recebe a última visita
do seu segundo director, obrigado a voltar para a Itália. Ela continuará, no
entanto, a enviar-lhe as páginas do seu diário até à morte.
Depois de lhe ter sido tirado também o
segundo director, Jesus diz-lhe: «... Eu sou o Artista divino e faço no
teu nada a arte mais maravilhosa... E com a tua cegueira que Eu dou luz às
almas». (Diário, 1-10-48).
1949: Jesus promete-lhe que chamará junto
da sua campa muitos pecadores e que os há-de converter. (Diário, 2-9-49).
A Virgem do Rosário aparece-lhe com o
terço nas mãos e diz-lhe. «O mundo agoniza e morre no pecado. Quero
oração, quero penitência. Enrola, minha filha, neste meu rosário os que
amas... enrola o mundo». (Diário, 1-10-49).
1950: No êxtase de 28 de Julho, Jesus
diz-lhe: «Dá-me a tua reparação, e escuta a minha urgente mensagem. Eu
quero que Sua Santidade o Papa, o meu querido representante na terra, faça
ao mundo o seu último apelo... Oração, oração e penitência, renovação de
vida, vida nova, vida pura...».
Mais tarde, em 1 de Setembro, acrescenta:
«Minha filha, une à minha angústia a tua angústia, à minha agonia a tua
agonia e ao meu o teu calvário: é Calvário de dor, é Calvário de salvação».
(Diário, 1-9-50).
A Alexandrina participa nos sofrimentos
de Cristo e recebe até os estigmas, que ficarão sempre invisíveis, mas
dolorosíssimos. Jesus diz-lhe:
«Minha filha, tiro bálsamo das Minhas
chagas para as tuas, ocultas, mas dolorosas, bem profundas, para que as tuas
mãos semeiem pelas chagas dolorosas a minha semente divina e para que os
teus pés não caminhantes, pela chagas abertas arranquem dos caminhos errados
as almas que correm para a perdição... Tiro bálsamo das feridas da minha
sacrossanta cabeça para a tua, para suavizar a dor dos teus espinhos, para
mais forte poderes com este sofrimento arrancar dos espíritos as más
inclinações e pensamentos criminosos... Do meu Divino Coração tiro bálsamo
amoroso, bálsamo de fogo, para que me ames e faças amado, para que ateies
este fogo, este amor, para que possuas sempre a ternura e a doçura do meu».
(Diário, 1-9-50).
1951: No êxtase de 19 de Janeiro, Jesus
solicita: «Depressa, depressa, mais orações, mais penitência!...
Depressa, depressa a renovar a vida e os costumes... Depressa, filhos meus».
A Alexandrina responde: «Depressa, dizeis Vós; agora digo eu: Esperai
Vós... Vós dizeis «depressa» para que se convertam; e eu digo: «esperai,
dai-lhes tempo, Jesus... Sou a vossa vítima, Jesus, sou a vossa vítima, e
quero perdão para o mundo». (Diário, 19-1-51).
A alma vítima torna-se cada vez mais
semelhante à Vítima divina. A identificação da Alexandrina com Cristo vem a
realizar-se desde há anos:
«Tu vives com a minha vida, sofres com
a minha dor, amas com o meu amor. Vives com a minha vida, porque com ela te
faço viver; sofres a minha dor, porque ta faço sentir, porque és vítima para
Me repararem. Amas com o meu amor porque to infundi em teu coração para com
ele me amares e fazeres que Eu seja amado».
(Diário, 23-11-51).
1952: A 18 de Janeiro, lemos no Diário:
«Não sei que sinto a mais no coração. Parece que dentro dele tem alguém que,
à semelhança dos pescadores, deita redes e mais redes para apanhar este
mundo imenso de almas. Quantas mais redes saem para fora do coração, mais
redes tem para deitar. E que ânsias infinitamente grandes de as possuir
todas, todas cheiinhas! Que tarefa, que canseira incessante!”.
A partir desse ano, aumenta muitíssimo o
número das pessoas que vão vê-la e pedir-lhe conselho; as conversões não têm
conta.
Apesar de tudo isso, sente muito
acerbamente outro sofrimento: a impressão de que toda a sua vida e o seu
martírio tenham sido inúteis: «Tornou-se por completo inútil todo o meu
viver». (Diário 16-5-52).
1953: Porém, a 9 de Janeiro, diz: «Só a
esperança e a confiança são o bálsamo do meu sofrer. Não sinto que confio,
mas confio... A vida sem dor seria para mim insuportável... Não há nada
que se compare com a doçura da cruz, quando a aceitamos e levamos por amor».
(Diário, 9-1-53).
A propósito da agonia no Calvário, diz:
«Eram segredos e mistérios divinos.., eram segredos, mistérios de redenção».
(Diário, 1-5-53).
A Alexandrina compreendeu o grande valor
salvífico do sofrimento. E Jesus diz-lhe: «Sou o Sol, a Vida, o amor do
teu coração... É sol, vida e amor divino. Dou-me, comunico-me por ti às
almas... Estás na vida pública de Jesus». (Diário, 15-5-53).
No êxtase de 20 de Novembro, Jesus
diz-lhe também: «Escolhi este calvário por amor dos pecadores, por amor
da humanidade inteira... Sou Eu, Jesus, a dar-lhe o título «Calvário dos
pecadores»». (Diário, 20-11-53).
A 25 de Dezembro tem o último êxtase
público, êxtase que sucedia normalmente à Paixão vivida no seu íntimo.
1954: Ao comemorar neste ano o 12º
aniversário do início do seu jejum e anúria completos, Jesus confia-lhe:
«Pus-te no mundo, faço que vivas só de Mim para mostrar ao mundo o
valor da Eucaristia e o que é a minha vida nas almas. És luz e salvação para
a humanidade». (Diário, 9-4-54).
Em Maio, escreve ao P.e Pinho: «Oh! Como
eu precisava do meu Padre junto de mim para lhe abrir a minha alma, para lhe
mostrar um livro de páginas sem fim que tenho no coração. Livro este que só
à luz da eternidade se pode compreender e ler todo. Nele estão escritas as
ânsias de me dar, de me consumir no amor de Jesus e de a Ele conduzir todas
as almas, todas, mesmo todas. Não posso consentir na perda de uma só... Ai,
quanto fala este livro!». (Cartas ao P.e Pinho, 2-5-54).
Este livro vivo é o próprio Jesus
crucificado com quem a Alexandrina se sente identificada.
No mês de Setembro, Jesus diz-lhe: «A
tua vida é a minha Paixão contínua.., é paixão mística, mas de tal forma que
nela encerra toda a minha santa Paixão». (Diário, 24-9-54).
Poucos dias volvidos, lê-se no Diário:
«Neste momento, pela chaga do Seu Divino Coração saiu um clarão tão grande e
uns raios tão luminosos que irradiavam tudo. Pouco depois, de todas as Suas
chagas divinas saíam raios que me vinham trespassar os pés e as mãos. Da Sua
sacrossanta cabeça para a minha passava-se também um «sol» que me
trespassava todo o cérebro. Falando do primeiro clarão e raios que saíam do
Seu Divino Coração, disse Jesus com toda a clareza: «Minha filha, à
semelhança de Santa Margarida Maria, Eu quero que incendeies no mundo este
amor tão apagado nos corações dos homens. Incendeia-o, incendeia-o. Eu quero
dar, Eu quero dar o meu amor aos homens, Eu quero ser por eles amado. Eles
não mo aceitam e não Me amam. Por ti quero que este amor seja incendiado em
toda a humanidade, assim como por ti foi consagrado o mundo à Minha
Bendita Mãe. Faze, esposa querida, que se espalhe no mundo todo o amor dos
Nossos Corações». (Diário, 1-10-54).
Apesar de tudo isto, sofre terríveis
crises de fé e sente-se em trevas. Lemos no Diário: «Repeti o meu creio
com muito custo; dizia a Jesus o meu creio, espero e confio,
mas a parecer uma mentira constante». (Diário, 8-1 0-54).
1955: A 7 de Janeiro, Jesus prediz-lhe a
morte:
«Estás no teu ano! estás no teu ano!
Confia, tem confiança em Mim!».
A 11 de Fevereiro, Jesus conforta-a:
“Coragem, minha filha; o teu quarto, a tua vida, quantos ensinamentos dão ao
mundo! É a escola divina a ensinar os humanos. É luz de Deus a iluminá-los
nas trevas». (Diário).
No dia 13 de Outubro, aniversário da
última aparição de Nossa Senhora em Fátima, a Alexandrina vai para o Céu: o
seu coração, consumido pelo amor, cessa de pulsar às 20 horas e 29 minutos.
Por sua expressa vontade foi sepultada
de rosto voltado para o Sacrário da sua igreja, como sinal do seu amor a
Jesus Eucarístico.
Em 18 de Julho de 1978, obtidas todas as
licenças precisas, o caixão contendo o corpo da Serva de Deus foi trazido do
cemitério para a igreja paroquial de Balasar e colocado em local previamente
preparado, do lado esquerdo do altar-mor (para quem olha de frente),
cumprindo-se assim, mais à letra o que ela escrevera na Autobiografia e se
lê esculpido numa placa de mármore fixada na parede por cima da nova campa:
«Quero ser enterrada, se puder ser, de
rosto virado para o sacrário da nossa igreja. Assim como na vida anseio
estar junto de Jesus Sacramentado e voltar-me para o sacrário as mais vezes
possíveis, quero depois da minha morte continuar a velar o meu sacrário e
manter-me voltada para ele. Sei que com os olhos do meu corpo não vejo o meu
Jesus, mas quero ficar assim para melhor provar o amor que tenho à Divina
Eucaristia».

I. «PAI,
CHEGOU A HORA»