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PONTOS DE REFLXÃO
LEITURA I – Act 2,1-11
Antes de mais, Lucas coloca a experiência do Espírito no dia de
Pentecostes. O Pentecostes era uma festa judaica, celebrada cinquenta
dias após a Páscoa. Originariamente, era uma festa agrícola, na qual se
agradecia a Deus a colheita da cevada e do trigo; mas, no séc. I,
tornou-se a festa histórica que celebrava a aliança, o dom da Lei no
Sinai e a constituição do Povo de Deus. Ao situar neste dia o dom do
Espírito, Lucas sugere que o Espírito é a lei da nova aliança (pois é
Ele que, no tempo da Igreja, dinamiza a vida dos crentes) e que, por
Ele, se constitui a nova comunidade do Povo de Deus – a comunidade
messiânica, que viverá da lei inscrita, pelo Espírito, no coração de
cada discípulo (cf. Ez 36,26-28).
Vem depois a narrativa da manifestação do Espírito (Act 2,2-4). O
Espírito é apresentado como “a força de Deus”, através de dois símbolos:
o vento de tempestade e o fogo. São os símbolos da revelação de Deus no
Sinai, quando Deus deu ao Povo a Lei e constituiu Israel como Povo de
Deus (cf. Ex 19,16.18; Dt 4,36). Estes símbolos evocam a força
irresistível de Deus, que vem ao encontro do homem, comunica com o homem
e que, dando ao homem o Espírito, constitui a comunidade de Deus.
O Espírito (força de Deus) é apresentado em forma de língua de fogo. A
língua não é somente a expressão da identidade cultural de um grupo
humano, mas é também a maneira de comunicar, de estabelecer laços
duradouros entre as pessoas, de criar comunidade. “Falar outras línguas”
é criar relações, é a possibilidade de superar o gueto, o egoísmo, a
divisão, o racismo, a marginalização… Aqui, temos o reverso de Babel
(cf. Gn 11,1-9): lá, os homens escolheram o orgulho, a ambição desmedida
que conduziu à separação e ao desentendimento; aqui, regressa-se à
unidade, à relação, à construção de uma comunidade capaz do diálogo, do
entendimento, da comunicação. É o surgimento de uma humanidade unida,
não pela força, mas pela partilha da mesma experiência interior, fonte
de liberdade, de comunhão, de amor. A comu-nidade messiânica é a
comunidade onde a acção de Deus (pelo Espírito) modifica profundamente
as relações humanas, levando à partilha, à relação, ao amor.
É neste enquadramento que devemos entender os efeitos da manifestação do
Espírito (cf. Act 2,5-13): todos “os ouviam proclamar na sua própria
língua as maravilhas de Deus”. O elenco dos povos convocados e unidos
pelo Espírito atinge representantes de todo o mundo antigo, desde a
Mesopotâmia, passando por Canaan, pela Ásia Menor, pelo norte de África,
até Roma: a todos deve chegar a proposta libertadora de Jesus, que faz
de todos os povos uma comunidade de amor e de partilha. A comunidade de
Jesus é assim capacitada pelo Espírito para criar a nova humanidade, a
anti-Babel. A possibilidade de ouvir na própria língua “as maravilhas de
Deus” outra coisa não é do que a comunicação do Evangelho, que irá gerar
uma comunidade universal. Sem deixarem a sua cultura, as suas
diferenças, todos os povos escutarão a proposta de Jesus e terão a
possibilidade de integrar a comunidade da salvação, onde se fala a mesma
língua e onde todos poderão experimentar esse amor e essa comunhão que
tornam povos tão diferentes, irmãos. O essencial passa a ser a
experiência do amor que, no respeito pela liberdade e pelas diferenças,
deve unir todas as nações da terra.
O Pentecostes dos “Actos” é, podemos dizê-lo, a página programática da
Igreja e anuncia aquilo que será o resultado da acção das “testemunhas”
de Jesus: a humanidade nova, a anti-Babel, nascida da acção do Espírito,
onde todos serão capazes de comunicar e de se relacionar como irmãos,
porque o Espírito reside no coração de todos como lei suprema, como
fonte de amor e de liberdade.
LEITURA II – 1 Cor 12,3b-7.12-13
Em primeiro lugar, Paulo acha que é preciso saber ajuizar da validade
dos dons carismáticos, para que não se fale em “carismas” a propósito de
comportamentos que pretendem apenas garantir os privilégios de certas
figuras. Segundo Paulo, o verdadeiro “carisma” é o que leva a confessar
que “Jesus é o Senhor” (pois não pode haver oposição entre Cristo e o
Espírito) e que é útil para o bem da comunidade.
De resto, é preciso que os membros da comunidade tenham consciência de
que, apesar da diversidade de dons espirituais, é o mesmo Espírito que
actua em todos; que apesar da diversidade de funções, é o mesmo Senhor
Jesus que está presente em todos; que apesar da diversidade de acções, é
o mesmo Deus que age em todos. Não há, portanto, “cristãos de primeira”
e “cristãos de segunda”. O que é importante é que os dons do Espírito
resultem no bem de todos e sejam usados – não para melhorar a própria
posição ou o próprio “ego” – mas para o bem de toda a comunidade.
Paulo conclui o seu raciocínio comparando a comunidade cristã a um
“corpo” com muitos membros. Apesar da diversidade de membros e de
funções, o “corpo” é um só. Em todos os membros circula a mesma vida,
pois todos foram baptizados num só Espírito e “beberam” um único
Espírito.
O Espírito é, pois, apresentado como Aquele que alimenta e que dá vida
ao “corpo de Cristo”; dessa forma, Ele fomenta a coesão, dinamiza a
fraternidade e é o responsável pela unidade desses diversos membros que
formam a comunidade.
EVANGELHO – Jo 20,19-23
João começa por pôr em relevo a situação da comunidade. O “anoitecer”,
as “portas fechadas”, o “medo” (vers. 19a): é o quadro que reproduz a
situação de uma comunidade desamparada no meio de um ambiente hostil e,
portanto, desorientada e insegura. É uma comunidade que perdeu as suas
referências e a sua identidade e que não sabe, agora, a que se agarrar.
Entretanto, Jesus aparece “no meio deles” (vers. 19b). João indica desta
forma que os discípulos, fazendo a experiência do encontro com Jesus
ressuscitado, redescobriram o seu centro, o seu ponto de referência, a
coordenada fundamental à volta do qual a comunidade se constrói e toma
consciência da sua identidade. A comunidade cristã só existe de forma
consistente se está centrada em Jesus ressuscitado.
Jesus começa por saudá-los, desejando-lhes “a paz” (“shalom”, em
hebraico). A “paz” é um dom messiânico; mas, neste contexto, significa
sobretudo a transmissão da serenidade, da tranquilidade, da confiança,
que permitirão aos discípulos superar o medo e a insegurança: a partir
de agora, nem o sofrimento, nem a morte, nem a hostilidade do mundo
poderão derrotar os discípulos, porque Jesus ressuscitado está “no meio
deles”.
Em seguida, Jesus “mostrou-lhes as mãos e o lado”. São os “sinais” que
evocam a entrega de Jesus, o amor total expresso na cruz. É nesses
“sinais” (na entrega da vida, no amor oferecido até à última gota de
sangue) que os discípulos reconhecem Jesus. O facto de esses “sinais”
permanecerem no ressuscitado indica que Jesus será, de forma permanente,
o Messias cujo amor se derramará sobre os discípulos e cuja entrega
alimentará a comunidade.
Vem depois a comunicação do Espírito. O gesto de Jesus de soprar sobre
os discípulos reproduz o gesto de Deus ao comunicar a vida ao homem de
argila (João utiliza, aqui, precisamente o mesmo verbo do texto grego de
Gn 2,7). Com o “sopro” de Deus de Gn 2,7, o homem tornou-se um “ser
vivente”; com este “sopro”, Jesus transmite aos discípulos a vida nova e
faz nascer o Homem Novo. Agora, os discípulos possuem a vida em
plenitude e estão capacitados – como Jesus – para fazerem da sua vida um
dom de amor aos homens. Animados pelo Espírito, eles formam a comunidade
da nova aliança e são chamados a testemunhar – com gestos e com palavras
– o amor de Jesus.
Finalmente, Jesus explicita qual a missão dos discípulos (ver. 23): a
eliminação do pecado. As palavras de Jesus não significam que os
discípulos possam ou não – conforme os seus interesses ou a sua
disposição – perdoar os pecados. Significam apenas que os discípulos são
chamados a testemunhar no mundo essa vida que o Pai quer oferecer a
todos os homens. Quem aceitar essa proposta será integrado na comunidade
de Jesus; quem não a aceitar continuará a percorrer caminhos de egoísmo
e de morte, isto é, de pecado. A comunidade, animada pelo Espírito, será
a mediadora desta oferta de salvação.
Padre José Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |