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PONTOS DE REFLEXÃO
LEITURA I – Is 43,16-21
Este oráculo de salvação começa por recordar a “mãe de todas as
libertações” (a libertação da escravidão do Egipto). Mas evocar essa
realidade não pode ser uma fuga nostálgica para o passado, um repousar
inerte na saudade, um refúgio contra o medo do presente (se assim for,
esse passado vai obscurecer a perspectiva do Povo, impedindo-o de
reconhecer os sinais que já se manifestam e que anunciam um futuro de
liberdade e de vida nova)… A lembrança do passado é válida quando
alimenta a esperança e prepara para um futuro novo. Na acção libertadora
de Deus em favor do Povo oprimido pelo faraó, o judeu crente descobre um
padrão: o Deus que assim agiu é o Deus que não tolera a opressão e que
está do lado dos oprimidos; por isso, não deixará de Se manifestar em
circunstâncias análogas, operando a salvação do Povo escravizado. De
facto – diz o profeta – o Deus libertador em quem acreditamos e em quem
esperamos não demorará a actuar. Aproxima-se o dia de um novo êxodo, de
uma nova libertação. No entanto, esse novo êxodo será algo de grandioso,
que eclipsará o antigo êxodo: o Povo libertado percorrerá um caminho
fácil no regresso à sua Terra e não conhecerá o desespero da sede e da
falta de comida porque Jahwéh vai fazer brotar rios na paisagem desolada
do deserto. A actuação de Deus manifestará, de forma clara, o amor e a
solicitude de Deus pelo seu Povo. Diante da acção de Jahwéh, o Povo
tomará consciência de que é o Povo eleito e dará a resposta adequada:
louvará o seu Deus pelos dons recebidos.
O nosso Deus é o Deus libertador, que não Se conforma com qualquer
escravidão que roube a vida e a dignidade do homem e que está,
permanentemente, a pedir-nos que lutemos contra todas as formas de
sujeição. Quais são as grandes formas de escravidão que impedem, hoje, a
liberdade e a vida? Neste tempo de transformação e de mudança, o que
posso eu fazer para que a escravidão e a injustiça não mais destruam a
vida dos homens meus irmãos?
A vida cristã é uma caminhada permanente, rumo à Páscoa, rumo à
ressurreição. Neste tempo de Quaresma, somos convidados a deixar
definitivamente para trás o passado e a aderir à vida nova que Deus nos
propõe. Cada Quaresma é um abalo que nos desinstala, que põe em causa o
nosso comodismo, que nos convida a olhar para o futuro e a ir além de
nós mesmos, na busca do Homem Novo. O que é que, na minha vida,
necessita de ser transformado? O que é que ainda me mantém alienado,
prisioneiro e escravo? O que é que me impede de imprimir à minha vida um
novo dinamismo, de forma que o Homem Novo se manifeste em mim?
LEITURA II – Filip 3,8-14
Ao exemplo e à pregação desses “judaizantes”, que alardeiam os mais
diversos títulos de glória, Paulo contrapõe o seu próprio exemplo. Ele
tem mais razões do que os outros para apresentar títulos (ele que foi
circuncidado com oito dias; que é hebreu genuíno, filho de hebreus, da
tribo de Benjamim; que foi fariseu e que viveu irrepreensivelmente como
filho da Lei – cf. Flp 3,5-6); mas a única coisa que lhe interessa –
porque é a única coisa que tem eficácia salvadora – é conhecer Jesus
Cristo. É claro que os termos conhecer e conhecimento devem ser aqui
entendidos no mais genuíno sentido da tradição bíblica, quer dizer, no
sentido de “entrar em comunhão de vida e de destino” com uma pessoa.
Aquilo que ele procura agora e que é o fundamental é identificar-se com
Cristo, a fim de com Ele ressuscitar para a vida nova. Os Filipenses –
e, claro, os crentes de todas as épocas – farão bem em imitar Paulo e
esquecer tudo o resto (a circuncisão, os ritos da Lei, os títulos de
glória são apenas “prejuízo” ou “lixo” – vers. 8). Só a identificação
com Cristo, a comunhão de vida e de destino com Cristo é importante; só
uma vida vivida na entrega, no dom, no amor que se faz serviço aos
outros, ao jeito de Cristo, conduz à ressurreição, à vida nova. Mais um
dado importante: Paulo está consciente que partilhar a vida e o destino
de Cristo implica um esforço diário, nunca terminado; é, até, possível o
fracasso, pois o nosso orgulho e egoísmo estão sempre à espreita e o
caminho da entrega e do dom da vida é exigente. Mas é o único caminho
possível, o único que faz sentido, para quem descobre a novidade de
Cristo se apaixona por ela. Quem quer chegar à vida nova, à
ressurreição, tem de seguir esse caminho.
EVANGELHO – Jo 8,1-11
Temos, portanto, diante de Jesus uma mulher que, de acordo com a Lei,
tinha cometido uma falta que merecia a morte. Para os escribas e
fariseus, trata-se de uma oportunidade de ouro para testar a ortodoxia
de Jesus e a sua fidelidade às exigências da Lei; para Jesus, trata-se
de revelar a atitude de Deus frente ao pecado e ao pecador. Apresentada
a questão, Jesus não procura branquear o pecado ou desculpabilizar o
comportamento da mulher. Ele sabe que o pecado não é um caminho
aceitável, pois gera infelicidade e rouba a paz… No entanto, também não
aceita pactuar com uma Lei que, em nome de Deus, gera morte. Porque os
esquemas de Deus são diferentes dos esquemas da Lei, Jesus fica em
silêncio durante uns momentos e escreve no chão, como se pretendesse dar
tempo aos participantes da cena para perceber aquilo que estava em
causa. Finalmente, convida os acusadores a tomar consciência de que o
pecado é uma consequência dos nossos limites e fragilidades e que Deus
entende isso: “quem de vós estiver sem pecado, atire a primeira pedra”.
E continua a escrever no chão, à espera que os acusadores da mulher
interiorizem a lógica de Deus – a lógica da tolerância e da compreensão.
Quando os escribas e fariseus se retiram, Jesus nem sequer pergunta à
mulher se ela está ou não arrependida: convida-a, apenas, a seguir um
caminho novo, de liberdade e de paz (“vai e não tornes a pecar”). A
lógica de Deus não é uma lógica de morte, mas uma lógica de vida; a
proposta que Deus faz aos homens através de Jesus não passa pela
eliminação dos que erram, mas por um convite à vida nova, à conversão, à
transformação, à libertação de tudo o que oprime e escraviza; e destruir
ou matar em nome de Deus ou em nome de uma qualquer moral é uma ofensa
inqualificável a esse Deus da vida e do amor, que apenas quer a
realização plena do homem. O episódio põe em relevo, por outro lado, a
intransigência e a hipocrisia do homem, sempre disposto a julgar e a
condenar… os outros. Jesus denuncia, aqui, a lógica daqueles que se
sentem perfeitos e auto-suficientes, sem reconhecerem que estamos todos
a caminho e que, enquanto caminhamos, somos imperfeitos e limitados. É
preciso reconhecer, com humildade e simplicidade, que necessitamos todos
da ajuda do amor e da misericórdia de Deus para chegar à vida plena do
Homem Novo. A única atitude que faz sentido, neste esquema, é assumir
para com os nossos irmãos a tolerância e a misericórdia que Deus tem
para com todos os homens. Na atitude de Jesus, torna-se particularmente
evidente a misericórdia de Deus para com todos aqueles que a teologia
oficial considerava marginais. Os pecadores públicos, os proscritos, os
transgressores notórios da Lei e da moral encontram em Jesus um sinal do
Deus que os ama e que lhes diz: “Eu não te condeno”. Sem excluir
ninguém, Jesus promoveu os desclassificados, deu-lhes dignidade,
tornou-os pessoas, libertou-os, apontou-lhes o caminho da vida nova, da
vida plena. A dinâmica de Deus é uma dinâmica de misericórdia, pois só o
amor transforma e permite a superação dos limites humanos. É essa a
realidade do Reino de Deus.
Padre José Barbosa Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |