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SENTIMENTOS DA ALMA

1945

OUTUBRO

4 de Outubro de 1945

Existe a minha dor, existe o meu prolongado e indizível martírio. Sim, existe, e bem penoso. Sofro, ai quanto sofro! Mas o meu corpo, não sei se existe. Quantas vezes vivo na dor, como se não possuísse corpo; parece-me que ele foi destruído, desapareceu. E a minha vida, não sei se a tenho nem sei se a possuo. Foi para esse mundo, para essa região, que eu desconheço. E aqui estou eu sem mundo, sem céu. Que penar, que não sei explicar! Que vida, que não sei dizer! Eu anseio por uma nova vida. Rompo por entre as minhas trevas, para a possuir.

– Ó meu Deus, que profundeza e escuridão as do meu espírito! E eu sozinha, de todo sozinha, em tanta cegueira. Posso bradar vidas e séculos; posso pedir socorro à terra e ao céu; para mim não há socorro, não há ninguém. A minha cegueira a tudo deu a morte. O abandono é só para mim. Meu Jesus, quereis-me assim? Quereis que eu assim sofra? A Vós me entrego toda e inteiramente, contanto que eu não Vos perca, contanto que a perda, que eu sinto, não seja a realidade. Reinai, Jesus, reinai no mundo, reinai no meu coração, dai-me amor à cruz, dai-me força para tudo.

É a vida da minha dor que arde no inferno, que lá ouve os maiores horrores entre os maiores tormentos. É a vida da dor, porque outra não tenho. É a dor que sofre na dor. Sinto-me quase a desesperar. Quero ver e não vejo, quero viver e não vivo. Não posso convencer-me, quero abraçar essa vida que desejo. Sinto-me na mais alta montanha de trevas, e sobre mim um céu de trevas, um céu de tremenda escuridão, um céu da mais rigorosa justiça. Sinto que Jesus espreme o meu coração no meio desta montanha e deste céu. Ele espreme, espreme, mas pobre coração que não dá nada! É palha seca, que Jesus aperta na prensa das Suas divinas mãos. Sinto-me envergonhada, não ter que dar a Jesus. Sinto-me deveras aterrada, ao ver a vida da minha dor manchada, envolta no lodo mais nojento. Mas o coração em tantas horas arde, arde em vivas chamas e quer voar à procura de nova vida, da vida real, da vida que é divina. Que sede de me dar a Jesus, e que vergonha de me aproximar d’Ele!

O demónio ou demónios trabalham com canseira para conseguirem que eu ofenda o meu Jesus, que caia no desânimo, no desespero. Vêm sempre com novas formas de pecar, vergonhosas e descaradas. Que horrorosas feras, à minha frente com feias cenas, como se fossem pessoas e a fazerem-me pecar também. Tudo me leva a crer que pequei. Num grande ataque na noite passada, em que lutei aproximadamente uma hora, sempre banhada em suor e sempre na maior aflição do coração, repetidas vezes ele falhava-me, parecia-me no mesmo momento morrer.

– Entrega-te a mim, entrega-te ao prazer – repetia muitas vezes o maldito. – Se queres viver alegre, se queres uma eternidade feliz, entrega-te a mim, renuncia a tudo o que é de Deus. Revolta-te contra Ele, não tem mais nada para te dar a não ser essas trevas e sofrimentos. Se queres possuir a luz, ama-me. Só amando-me, sairás dessas trevas e sofrimentos.

Fiquei triste com o medo de ter ofendido a Jesus e, sem querer, vi, vi a minha grande vida de sofrimentos. Tudo me estava presente: a data da minha primeira crucificação; sete anos passados, tudo vivi, hora a hora, momento a momento. Senti os medos, os pavores dessas horas amargas. Senti grande aflição do meu Pai espiritual nessa ocasião junto de mim. Senti as lágrimas dos meus, que vi chorar também aterrados. Se Jesus me mostrava todos este martírio de uma vez só, vencia a morte. Sem um milagre teria morrido. E tudo isto sofri na grande cegueira do meu espírito.

O demónio tudo aproveitava para os fins que desejava, que era o pecado, o desespero. A noite ia alta, e alta estava a minha dor e agonia do corpo e da alma. Jesus veio. A um gesto da Sua mão santíssima, fez cessar a luta infernal.

– Pára, não vences, a vitória é da minha vítima.

E, tomando-me nos Seus santíssimos braços, estreitou-me docemente.

– Minha filha, venho afirmar-te que não pecaste. Esta grande reparação sou eu que a exijo. Só a um coração puro a posso pedir. Quero levantar-te do teu desfalecimento, quero suavizar o peso da tua cruz.

Vi Jesus com ela em Suas mãos, e eu, liberta do seu peso, pude respirar e continuar a ouvir a doce voz de Jesus.

– Minha filha, tu és o mimo dos pecadores. Ai deles sem ti, ai deles sem a tua crucificação, dolorosa crucificação! Depois desta luta, não podia deixar-te em tão grande desfalecimento e não podia deixar passar as últimas horas deste dia ditoso do aniversário em que pela primeira vez te crucifiquei. Tem confiança. Nunca te enganaste nem enganarás. A tua crucificação é a mais real, a mais semelhante à minha. Oh! quanto te amo e quanto amo as almas! Tudo faço por elas. Vai para as tuas trevas, toma a tua cruz, leva-a alegre e por amor.

As palavras de Jesus são para mim como uma aragem que passa, luz que desaparece. A minha cruz! O meu penar! É quinta-feira, e já sinto nas mãos, nos pés e no coração como se as chagas estivessem abertas. Todos os tormentos se anteciparam. Vieram tantos veados a beberem o meu sangue, o sangue que banhou o horto. Levantei-me da terra depois de o regar com ele. O silêncio convidava ao descanso. Alguém dormia, mas eu estava como que desnorteada. Foi o cansaço, a agonia, a perda de sangue. Os olhos levantava-os ao céu. Suspiros e mais suspiros, dor e mais dor. Voltei a unir o rosto à terra nua. Voltei a orar ao Pai, mas ser ouvida e sem conforto. Levantei-me novamente, ou melhor, levantou-se Jesus dentro de mim. E a minha alma viu o Seu rosto divino cadavérico, coberto de sangue e suor e os olhos amortecidos. O que sofreu Jesus! Pobre de mim, pobre do mundo, que não compreende, continua a ofendê-Lo. Queria morrer muitas vezes para o fazer conhecer e compreender tudo isto.

5 de Outubro de 1945 – Sexta-Feira

Não tenho forças, só vindas do céu. Se eu pudesse deixar de escrever os muitos sentimentos da minha alma, parece-me que então podia gozar alegria. Que grande sacrifício o meu! De manhãzinha e cedo, ainda descia das escadas da prisão. Que cansaço o meu! Ao fundo delas, já tropecei e caí, não podia levantar-me. Fui logo maltratada. Fui para a flagelação e para a coroação de espinhos. Não via com o sangue, que em grande abundância me corria pelo rosto. Não podia mover-me com as minhas carnes despedaçadas. Recebi a cruz. Esmagada, curvada com o seu peso, caí debaixo dela no mesmo lugar. Fez-me lembrar as minhas crucificações, senti o mesmo peso que me fazia desfalecer. Segui com ela, mas quantas vezes voltei a cair! No caminho do calvário, na grande subida para a montanha, não pude mais. Desfaleceu o corpo, desfaleceu a alma. O meu cireneu foi Jesus. Tomou Ele a cruz, e eu, a custo, atrás d’Ele, fui seguindo o Seu caminho. Eu já sentia e via tudo o que no calvário me esperava. Fui despida e crucificada. Senti, já lá vão umas horas, e ainda sinto as chagas das mãos, dos pés e do coração; causaram-me imenso sofrimento. Quando foram retalhados os vestidos, não foi em mim, mas senti como se fosse dado no coração um grande corte com a espada numa capa roxa. Não feriu o pano, mas feriu-me a mim. Vi leiloar tudo: vestidos verdes e também vermelhos ou cardinais. Os curiosos, que desciam o calvário, quando ele foi escurecido, como se já fora noite, iam aterrados. Eu senti o seu terror. Desciam timidamente a ver quando eram pela terra engolidos. Como o solo estremecia e parecia abrir-se! Meu Deus! Mas no cimo da montanha a dor era mais, infinitamente mais. Jesus crucificado dentro de mim, e de mim passavam para a Mãezinha, que estava ao pé, e d’Ela passavam para Jesus, por uns fios, como se fossem eléctricos, dor, agonia e amor. Aqueles fios prendiam os dois Corações e faziam-Nos viver um do outro. Jesus não via com os Seus santíssimos olhos o pranto da querida Mãezinha, porque os tinha ora fechados ora levantados ao céu. Mas tudo via e ouvia com os Seus ouvidos e olhares divinos. Ó triste e dolorosa agonia! Ó abandono mais aterrador! Dentro do meu peito estava o calvário, Jesus e a Mãezinha a sofrerem com sofrimento inigualável. Eu era o calvário; Jesus e a Mãezinha, n’Eles e com Eles sofria. Um mundo de misérias, de podridão e crimes esconderam-me o céu. O meu sangue tinha de apagar tudo aquilo que me cobria e revestia. Por aquele mundo tão nojento é que eu tinha de responder e por ele mesmo é que eu era abandonada pelo Eterno Pai. Bradei, mas sem ser ouvida. Vi a esponja, vi a lança. Tinha sede, estava a arder. Os meus lábios foram molhados, e o coração murmurava: não é essa a minha sede, a minha sede é das almas. Continuei a bradar no meio do abandono e da minha cegueira. Veio Jesus a dar a luz a tanta escuridão, dar a vida a tão grande morte.

– Minha filha, no fontenário do teu coração está plantada a flor fina do amor. Nasceu, cresceu, subiu à maior altura. É à sombra dela que estão as outras mais finas flores das tuas virtudes: a flor da pureza, a da caridade e todas as outras. É o amor que conserva e guarda a pureza. Oh! como tu és pura! É o amor que faz praticar a caridade. Possui-la no mais alto grau. É o amor que aceita a dor. Se não amasses, não sofrias; se não amasses, não eras crucificada. E, porque amas o meu Divino Coração e as almas, entregaste-te ao sacrifício. O amor é tudo, o amor tudo a si atrai. O fontenário da fina flor do amor está cheio de mim, das minhas riquezas. Sou eu quem cuida e rega essa flor. Possuis as minhas maravilhas, o meu perfume. E tudo isto é para as almas. Deixa que elas venham todas a ti purificarem-se, enriquecerem-se. Minha filha, minha filha, repara, consola o meu Divino Coração. O mundo peca, não cessa de me ofender. Depressa, depressa, está a ser tarde. Ele está em tanto perigo! Ecoe em toda a humanidade a voz do seu Pastor, a voz do Santo Padre. Que a sua voz se faça ouvir dum pólo ao outro. Jesus falará em seus lábios, a luz do Divino Espírito Santo o iluminará. Depressa, depressa, o momento é de perigo. Um fogo de justiça quer abrasá-lo. O seu rigor quer destruí-lo.

Via descer do alto uns fios de fogo, e com esses fios parecia o mundo a arder, as pedras estalarem, a terra abrir-se.

– Minha filha, que mais posso eu fazer para salvar o mundo? Eu não quero castigar, mas não posso mais. Esta é a justiça de meu Pai. Salva-mo, salva-mo, confiei-to. Continua a minha obra, nova redentora.

– Meu bom Jesus, como poderei salvá-lo, se ele está em tanto perigo? Salvai-o comigo, salvai-o, se ainda é tempo.

– Filhinha amada, tu és o remédio, a salvação das suas almas. É por ti, sempre por ti que elas são salvas, mesmo que o mundo seja castigado. No momento de elas expirarem, lá irás tu com a tua medicina, medicina dada por mim, medicina divina. Serás o seu conforto e guia na vida e luz na hora da morte. És toda de Jesus, és toda das almas. Vou agora, pomba querida, dar vida ao teu coração, dar-lhe umas gotas do meu divino sangue. É o sangue virginal de Cristo, é o sangue que gera as virgens. É o sangue que vai correr em tuas veias, é o sangue que perdes por amor às almas. É uma redenção contínua. Peca-se como nunca se pecou. São contínuos os crimes da humanidade. Aceita umas gotinhas apenas. Sou o médico da tua alma. É medicina divina. Enquanto a aplico, opero milagre, para conservar-te a vida. Não pode dilatar-se o coração.

Jesus uniu os nossos corações e os nossos lábios. De longe a longe deixava cair no meu uma gota do Seu sangue divino. Ao mesmo tempo com os Seus lábios acalentava-me. Senti mais vida e disse:

– Jesus, arde-me tanto o coração, mas não sinto alegria no que recebo de Vós. Estás na cruz amado, estás na cruz sofrendo, estás na cruz gozando. São gozos dolorosos.

– O fogo do teu coração é sinal da minha passagem em ti. Tem coragem! Eu não fujo. Escondo-me nas tuas trevas, nelas vejo o teu penar. Abraça, abraça a cruz. Vai para ela. Sofre alegre, contigo estou sempre.

– Obrigada, meu Jesus.

Ai de mim! Deixei Jesus, entrei logo nas minhas trevas, na minha cegueira tremenda. Sinto-me na cruz, mas oh! que madeiro! Estou presa a ela da cabeça aos pés. São inquebráveis as cadeias que me prendem. Ah! se eu nela amasse o meu Jesus!

6 de Outubro de 1945 – Primeiro sábado

Não parece sábado, não parece o dia da Mãezinha. Quantos espinhos me ferem! Quantos mundos de trevas me atormentam! O meu espírito não vê, não sossega, não descansa. Curvei-me sob o peso da cruz. Caminhar não posso. Sinto o coração destruído, oprimido pela dor. Só a morte reina. Não encontro a vida que anseio. Perdi o céu, deixei a terra. No meio desta amargura foi que me preparei e recebi Jesus esta manhã. Que ânsias tão grandes de O amar, de Lhe dar graças, de O conhecer melhor. Nada consegui. A cegueira do meu espírito nada mais deixa viver nem reinar em mim. As palavras de Jesus, o Seu conforto divino quase só valem nos momentos em que Ele vem. Pouco depois de Ele baixar às minhas dores e trevas, disse-me:

– Minha filha, tu és a vítima que maiores encantos tem, para mim e minha Bendita Mãe. És a criatura na terra mais enriquecida por nós. Eu amo-te, Ela ama-te, e com loucura e amor. Porque muito recebeste, muito nos dás. Fiz-te a entrega dos nossos corações cheios de amor e riquezas. Que ditosa é a tua vida, cheia das maiores maravilhas e prodígios! Nunca o mundo viu nem volta a ver. O meu perfume divino, o de minha Bendita Mãe, irradia em ti, espalhar-se-á pelo mundo com o perfume das tuas virtudes. Que perfume celeste! És o nosso anjo em carne. Dei-te muito, tudo te dou. Pedi-te muito, tudo te peço. Olha, pombinha amada, já que por amor a ti e da humanidade te fiz a entrega dos nossos corações, quero que repares no coração da tua querida Mãezinha. Ela é tão ofendida! É ferida gravemente, falando da Sua pureza virginal, pureza sem igual. Que pecados graves se cometem! Tiveste a graça, minha filha, de conheceres e compreenderes como estão unidos os nossos corações, na mesa dor e amor. Recebeste toda a luz do Espírito Santo e com ela tudo vês. Estão unidíssimos os nossos corações e, nesta união, compartilham a mesma dor e amor. Podes tu, virgem amada, suavizar a dor da Virgem das virgens, da Mãe celeste, da Mãe bendita. A tua virtude e pureza atraem os corações e as almas. És, como já disse, o bálsamo que as cura, a medicina delas. Repara, repara. Com os ataques violentos do demónio, que incendeia no mundo o mal da impureza, repara, repara pelos sacerdotes. Quanto sofro, quanto vou ferido por eles!

– Não sei o que hei-de fazer, meu Jesus. Eu aceito esses ataques, eu quero reparar tudo, mas o meu temor sabeis bem que é só o de Vos ofender. Não quero poupar o meu corpo, mas, sim, uma ofensa ao Vosso Coração Divino.

– Confia, minha filha, flor mimosa, confia, que estou contigo; confia que não me ofendes. És vaso de amor, és o meu instrumento de reparação, és o farol luminoso, que no centro da humanidade eu coloquei, para a salvar. És guia das almas, és o caminho que as conduz ao céu. Dá, minha filha, ao teu Paizinho o meu Divino Coração e o da minha Bendita Mãe. Dá-lhos cheios da abundância do nosso amor e da nossa graça. São prova do nosso amor a ele, tudo é para ele distribuir às almas. Dá-lhos escritos com estas letras: vitória, vitória, triunfo, triunfo. Só vence o amor de Jesus. Hoje, minha filha, diz ao teu médico que está nele o meu coração e o meu divino amor. Dá-lhe a certeza de todo o amor, de todas as graças, de toda a protecção, a ele, à esposa e filhinhos, que lhe confiei. Por ti recebeu tudo, por ti tudo receberá. Os cuidados dele por ti, não por mim; é de mim que ele cuida. Diz-lhe que não descanse, que vá com os amigos da minha divina causa contra as prisões, desprender os voos daquele que está preso, inocente e só por amor. Vou retirar-me, não esqueças as palavras do teu Jesus. Vai para a cruz, vai para a cegueira inigualável, tormento que o mundo ainda não viu. Confia, que a tua cegueira, a tua cruz são a maior glória para mim, o maior meio de salvação para as almas. Dá aos que amas a abundância das minhas graças e do meu amor. São todos por mim amados. Vai dar às almas, vai espalhar ao mundo o perfume das virtudes: é perfume de salvação. Tenho de abreviar, vou esconder-me, e depressa, para aproveitar-me do teu martírio para curar tantas chagas e feridas. Anima-te, vai em paz.

Não recebi carícias de Jesus nem da Mãezinha. Perdi logo toda a alegria da Sua companhia divina. Sinto a necessidade de correr o mundo, a animá-lo a não pecar, a vir a Jesus e à Mãezinha. Mas as trevas não me deixam. Parece-me bradar desesperada:

– Tudo perdido, tudo perdido! Jesus, aceita o meu sacrifício. Que peso tão grande, causado por ser obrigada a ditar tudo o que vai na minha alma!

Sob este ponto, levo de rasto a minha cruz. Tento desobedecer. Não sei se são coisas minhas, se do demónio.

– Perdoai-me, meu Jesus! Não quero ferir-Vos. Venci a minha maldade!

9 de Outubro de 1945

Vejo, sinto que aqui na terra nunca mais poderei ter alegria, desta alegria que no vem das criaturas, que nos dá o mundo. A minha alegria está simplesmente, e isso basta, em aceitar e cumprir a vontade de Jesus. É a alegria da alma. Mas aceitarei eu e cumprirei com perfeição o que Jesus de mim exige?

– Ó meu Deus, nisto estão os horrores da minha alma.

Eu não quero as alegrias do mundo nem nada que a ele pertença. O que eu queria era fazer em tudo a vontade do Senhor. Sinto que nada faço; sinto que não tenho vida para O servir e amar.

– Não posso suportar esta vida que em mim existe: horrores e desesperos, meu Jesus. As minhas trevas! A noite tremenda do meu espírito! Sinto-me mergulhada nos abismos infernais, como quem se mergulha de cabeça para baixo no fundo do mar.

O meu espírito é atormentado por todas as maldades do demónio, e todo meu ser por eles está revestido. Passa um dia, dia que, para a minha alma, não tem um momento de luz. Chega a noite, e eu neste estado de alma, coberta de misérias, de mãos vazias para a eternidade. E sozinha, sem ter um guia que me aproxime de Jesus. Não sinto, mas confio que, por este viver, só uma força vinda do alto pode resistir. Confesso, por mim não posso. Vejo sobre mim todas as misérias da humanidade. Sinto-me envergonhada e confundida até diante das criaturas. Como não me hei-de sentir diante de Jesus? É impossível descrever.

Na madrugadinha de ontem, vi Jesus à minha frente, prostrado por terra na atitude do horto. Não estava com o rosto pousado em terra, como costuma estar, mas sim de cabeça levantada e o rosto voltado para mim. A Sua face santíssima não era aquela desfigurada e cadavérica, como costumo ver e sentir, mas sim bela e formosa. Os Seus lábios não se abriam para me pronunciarem palavra, mas os Seus olhares convidavam-me a tomar eu aquele lugar. Esta visão não me deu o mais pequenino momento de alegria, não senti nenhuma consolação, porque aqueles olhares de tanto convite ao horto encheram-me de grande pavor. Forçada a dizer a Jesus que sim, pois sentia em mim uma força que me obrigava a não dizer que não, disse:

– Jesus, o meu coração não Vos pode ver por terra. Tomo eu o Vosso lugar, tomo-o alegremente, para não sofrerdes Vós, para só ocupardes no Vosso trono o lugar de honra, para só Vós serdes consolado. Não sois Vós Jesus, e eu a maior miséria, a mais indigna criatura Vossa? Aqui me tendes, sou a Vossa vítima.

Jesus desapareceu, e eu fiquei como se me cravassem no coração um grande punhal, que o atravessasse dum lado ao outro, punhal que ainda não saiu. De vez em quando sinto-o, ferindo-me como se lhe tocasse já com o fim de ele ferir. Esta ferida, pelo punhal causada, escorre sangue e causa-me sofrimento em todo o corpo. Parece que faz tremer o céu e a terra, quando este punhal corta e remexe o coração. Sinto-me sempre abismada nos grandes sofrimentos do horto. Sorrio, mas não sou eu. Tudo em mim é morte, tristeza e dor, trevas e abandono, perda de Jesus e desespero de inferno.

E o demónio, meu Deus, que grande consumição! Tenho sido por ele atormentada raivosamente, com tal furor que só vindo do inferno, do inferno. Num pequeno intervalo de tempo, lutei com ele por duas vezes. Sentia ter o conhecimento da ofensa a Deus, mas nada temia, dizia:

– Quero pecar, quero satisfazer meus gostos, quero-me entregue às paixões.

Momentos angustiosos, horas de grande desalento. Perdia as forças da alma e do corpo. Quando eu estava no auge do perigo, bradei:

– Jesus, valei-me. Quem sois Vós, e quem sou eu? Que será de mim sem Vós?

A luta cessou, mas fiquei por muito tempo entregue ao desejo do prazer, sem pensar na morte e na ofensa feita a Jesus. Dúvidas sobre dúvidas, dor sobre dor, e o coração sempre sequioso por dar a Jesus aquilo que não tem: o amor de que Ele é digno, as almas que tão caras Lhe são. Por nada possuir, caio com a cruz, fico debaixo do seu peso, abandonada à borda da estrada. A escuridão não deixa que eu seja vista. A morte não deixa ouvir meus brados e gemidos. Quando deixarei esta vida?

11 de Outubro de 1945

Estou cansada de tanto sofrer e envergonhada de tantos queixumes. Tenho que dizer as grandes agonias e torturas da minha alma e não tenho coragem para o fazer.

– Ó meu Deus, que cruz levada com tanta repugnância! Levo-a arrastada e forçada, não queria conduzi-la ao seu lugar. Será este tormento útil às almas? Será de glória para Vós, meu Jesus?

Tenho a utilidade que tiver, eu tenho de obedecer. Não posso falar em consolações e alegrias, pois não são esses os sentimentos da minha alma. Abro o meu coração, só a verdade quero dizer. Desconheço a alegria e a luz, a vida e o amor. Ai de mim, não tenho nada, sou a morte, a morte, que não conhece a vida; a cegueira, as trevas, que não sabem o que é a luz. Não sei o que se passa, não sei o que me espera. Estou esmagada, sinto-me a infundir na terra com o peso das humilhações; tudo o que me pertence é destruído pela dor. Não posso suportar tanto abandono, e a cegueira do meu espírito não pode vencer mais. Quero quem me guie, quero quem me acuda e não tenho ninguém.

Na manhã deste dia, quando comunguei, como não sabia dizer nada ao meu Jesus, nada de alegria e consolação para Ele, disse-Lhe:

– Meu Jesus, quero ser toda Vossa e amar-Vos tanto quanto mereceis e quereis ser por mim amado.

Tornei-me tão pequenina e tão cheia de misérias que me senti desaparecer diante de Jesus. E Ele estreitou-me fortemente ao Seu Divino Coração e disse-me:

– Já toda me pertences, já possuo de ti o amor que desejo.

Esta voz terna saiu tão do íntimo do meu coração que me tranquilizou e fez sentir por uns momentos que estava nos braços do meu Jesus, muito unidinha a Ele. Logo depois, veio a dor destruidora consumir meu corpo e alma. Não posso, ai não posso lembrar-me que é quinta-feira, que a sexta me espera. Tudo leva uma eternidade, só estes dias se aproximam. Sinto que sobre o meu corpo, da cabeça aos pés, cai uma  chuva de sangue. Os mesmos ouvidos ouvem palavras, os meus olhos vêem gestos rancorosos contra mim. Os olhos, mas não os do corpo, só os da alma é que vêem tudo isto: movimento de pessoas, que caminham apressadas para um e outro lado a prepararem-me a traição, o laço para me prenderem. Sinto que tudo me foge, e eu vou ficar sozinha no horto na minha grande agonia. E o cálice da amargura é de vez em quando por Jesus oferecido ao céu. Ele é quem sofre, é quem oferece; eu sou sempre o encaixe d’Ele.

O demónio, o maldito demónio, abre sob mim um medonho inferno: estava mesmo a cair nele. Eram tantas, tantas as serpentes; eram monstros aterradores. Chegaram quase a tocar-me. Veio depois o demónio malicioso obrigar-me a ofender a Jesus. O meu corpo, o meu pobre corpo, oh! que instrumento de tantos pecados. Eu não queria pecar, mas parecia-me que todos os lugares do meu corpo eram mundos de crimes e dos mais maliciosos. Ele fingia que não era o causador de tanto mal; que era eu e só eu. E de verdade que eu sentia tanta vontade de me entregar àquela maldade! Que montão de malícias! Venci aqueles desejos, que espero não fossem meus, e bradei:

– Pecar não, pecar não. Meu Deus, a quem tanto devo! Meu Deus, a quem tanto devo, valei-me, valei-me.

Fugiu o demónio, e a dor ficou com o receio de ter pecado.

– Amo-te, amo-te, minha cruz bendita.

12 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Ao romper do dia, saí da prisão. Mas desta vez diferente das outras prisões. Sinto que saí da prisão do Coração Santíssimo de Jesus; senti que era o amor às cadeias que a Ele me prendiam. Senti que n’Ele reparei as minhas forças; cobrei ânimo e coragem para suportar as grandes amarguras, as grandes dores da alma e do corpo. A lembrança daquela prisão e amor de Jesus forçava-me a caminhar e a esquecer tanta dor.

 Bem depressa veio ao meu encontro a Mãezinha das Dores. Preciso foi que Jesus me enchesse d’Ele, para A poder fitar tão dolorosa e para poder suportar mais a dor que Ela por mim sentia. Ela seguiu os meus passos de rua em rua, ou para melhor se compreender, seguia os de Jesus, que levava a cruz aos Seus ombros dentro de mim. Os olhos da alma, os olhos que possuíam os olhares de Jesus, viam-na caminhar atrás, lacrimosa e com o coração atravessado de setas e mais setas. Que dor a d’Ela! Dor, que nenhuma criatura seria capaz de suportar, não poder aproximar-se de Jesus e levantá-Lo das Suas quedas. Ela queria beijá-Lo, limpá-Lo, lavar-Lhe as feridas mesmo com as lágrimas dos Seus santíssimos olhos.

Tudo isto a minha alma viu, o coração sentiu. Foi o quadro mais doloroso e triste, que o mundo pode observar.

– Ó meu Jesus, eu pensar que tudo isto foi por amor da minha alma, e eu que tão mal correspondo, nada sofro com perfeição!

A Mãezinha viu o sangue de Jesus, que Ele derramava em grande abundância pelos caminhos do calvário. A esse sangue misturava Ele as Suas lágrimas. Custa-me tanto sentir que Jesus e a Mãezinha sofrem tanto! Eu vou com Ele. Ele leva a cruz. O sangue corre, é d’Ele, não é meu. Contudo, sinto-me apavorada. Os sofrimentos do calvário são como balas de chumbo e de um e outro lado a desfazerem-me e a despedaçarem o meu corpo. Sinto que todo o mundo cai sobre mim com todas as maldades e barbaridades. Não vejo ninguém, mas sinto que todos os da pobre humanidade maltratam o meu corpo. Com este medo pavoroso fui obrigada a chamar alguém para junto de mim. Não podia estar sozinha.

– Meu Deus, tanta dor e tantas trevas!

Fui no calvário tão apressada e bruscamente! Os olhos com o sangue não podiam abrir-se, mas a vergonha obrigava a conservá-los mais profundamente fechados. Ser despida em público! Senti logo que a Mãezinha queria com o Seu manto cobrir Jesus, revestido em mim. E, como não Lhe foi permitido, as espadas, que Lhe atravessavam o Coração, feriram-Na ainda mais. Eu estava presa à cruz, e a cruz ao calvário. Sentia em mim duas vidas: uma, que não resistia a tanta dor; outra, que tudo vencia. Ou fossem duas naturezas. O coração ia perdendo a vida, e no meio de tanto abandono e tão dolorosa agonia bradava:

– Jesus, Jesus, valei-me.

Disse isto por grande espaço de tempo. Jesus não se apressou, veio devagarinho. Quando veio, disse-me:

– O calvário e a cruz são a moeda de mais alto preço para comprar as almas. É a moeda real, é sangue derramado, é o que há de mais caro. Minha filha, minha filha, criei-te para dares vidas, muitas vidas, ó rainha do mundo, mãe dos pecadores e guia e salvação. Dá-me as almas, dá-me as almas. Consolo-me, esposa amada, consolo-me, avezinha branca e pura, de ver e ouvir bater as tuas asas de arminho, à procura de nova vida. Voas, voas, minha avezinha celeste, voas sem descanso, voas sem parar e não encontras ou desconheces essa vida, que desejas. É a vida que tens, é a vida que vives, vida que não compreendes, vida que te prepara a verdadeira vida, a pátria celeste. Só lá compreenderás a vida que agora te faço viver. Deixa-me beber na tua fonte, deixa-me saciar a minha sede, deixa-me esquecer em ti as minhas mágoas. É para mim fonte de alegria, consolação e reparação e para o mundo fonte de purificação e salvação; é medicina divina, que neste fontenário preparei para as almas. Deixa-me beber, ó pastorinha divina. Divina, porque foste enriquecida; divina, porque possuis toda a riqueza que é divina.

Ouvia Jesus a beber como quem está sequioso, que não acaba de saciar-se. E com os olhos da alma via um numeroso rebanho beber também. A fonte dava para tudo.

– Bebei, Jesus, e fazei que todos bebam. Vós bebeis do que é Vosso, e as almas bebem o que Vosso é. Por isso podem ser salvas.

Jesus deixou de sorrir como sorria, quando dizia consolar-Se ao ouvir bater as asinhas brancas. Agora estava triste, muito triste. E continuou.

– Em que perigo está o mundo! Em que grande perigo estão as almas! Em que grande perigo está Portugal! Depressa, depressa, a humanidade inteira a ouvir a voz do seu pastor, a voz do Santo Padre, que é a voz de Jesus. Escuta, ó mundo, a sua voz, como trombeta que alguma coisa vem anunciar. Oração, oração e penitência, se não queres ser carbonizada, pastorinha, minha pastorinha. Guia ao meu Divino Coração o meu rebanho.

– O que quereis que eu faça, meu Jesus?

– O que até aqui tens feito, esposa querida. Coragem! A tua morte é vida, as tuas trevas são luz, por cada gota do teu sangue perdido. Perdido, porque sentes a falta, mas não perdido, porque dás a vida e a salvação. São salvas centenas, milhares e milhares de almas. Vê que riqueza! Alegra-te e tem coragem! É o teu sangue, transformado no meu, e o meu no teu; é uma transformação divina. És a nova redentora, derrama-o em vez de mim, já que eu agora não posso.

– Tudo, tudo, meu Jesus, é tudo por Vosso amor. Aceitai-me o sacrifício. Só por Vós pode ser avaliado e conhecido.

– Sossega, sossega, meu encanto, minha loucura. São sacrifícios, é a reparação o que te peço. Só de pureza se pode tirar pureza. Os anjos louvam-me, não pecam; os anjos amam e guiam para mim as minhas almas. Tu és o meu anjo em carne. Vou para o meu esconderijo, mas mais que nunca estou em ti. Quero deixar-te quase por completo ou fingir deixar-te para mais depressa te levar para mim, mas não o faço sem que tenhas junto quem ocupe o meu lugar, nem que te ampare aquele que te escolhi. Será um amparo e não luz, será um conforto e não alegria. É por mim tudo, é pelas almas. Que dias, que fim da vida doloroso te espera! Mas que morte de amor, que grande glória, poder sobre as almas lá na pátria celeste te esperam também.

– Obrigada, meu Jesus. Meu Deus, com quem se passou tudo isto?

 Em tão poucos momentos tudo esqueci. Só vejo as minhas trevas e sinto a minha dor. Não vejo nada do céu, não sinto nada de Jesus. Sou miséria, mas oh! que tremenda miséria.

16 de Outubro de 1945

Não sei sofrer, não sei viver esta vida que Jesus me dá. Não posso compreender: passando eu o dia e a noite, o mais que me é possível, unida a Jesus, chegue ao fim do dia, chegue ao fim da noite de mãos vazias e numa morte total de todas as coisas. Chego ao fim do dia e da noite como se não vivesse e nunca me lembrasse de Jesus, sem nada fazer por Ele, pelo meu próximo, pelas almas. Que vida triste, embora a finja alegre! Parece-me enganar a mim mesma, enganar a todos. Mudou-se o cenário das minhas trevas: até agora infundia-me nelas, nelas caminhava, mas sempre em terreno duro.

– Agora, ó meu Jesus, são mares universos delas, mas mares sem fundos, e eu sem saber nadar. Aprofundo-me nelas, queira não queira, mas tenho que caminhar sempre, sempre para a frente. Vou mergulhando, mergulhando como peixe que não pode nadar e como avezinha sem voos que ao chão tem de vir cair.

Caminho nesta horrorosa escuridão de espírito, como criancinha tímida que não pode nem sabe andar. No meio deste sofrimento, veio repetidas vezes a Mãezinha ao meu encontro. Umas vezes, a Mãezinha do Carmo com o Menino Jesus ao colo, de bracinhos abertos, virado para mim; outras vezes, sozinha, sendo a Imaculada Conceição. Duma vez, tanto a Mãezinha como Jesus pareciam feitos de ouro luzente. Que formosura! E sempre cheios de luz. Só esta luz do céu me podia iluminar em tanta  cegueira. Estas visões nunca foram demoradas nem me falaram. Naqueles momentos, ficava apenas como a criancinha que, estando assustada, ao ver sua mãe, lhe estende os braços e já não teme.

– Ó meu Deus, eu nada temia, mas só naqueles momentos.

Bem depressa me senti curvada e caída sob o peso da minha cruz. Mas logo sentia que Jesus a tomava em Seus ombros e caminhava com ela. Isto, para maior vergonha e confusão minha.

– Ó meu Jesus, se havia de ser eu que sofria, por Vosso amor, sois Vós que continuais ainda a sofrer por mim. Compadecei-Vos da minha miséria e não permitais que a perda que sinto de Vós seja a realidade. Sede a luz do meu espírito, pois bem sabeis que outra não tenho.

Veio, nesta noite, o demónio, mas veio tão disfarçado! Assim é que ele podia provar-me que só eu, e não ele, era causa de tanto pecado. Não quero pensar em tantas maldades dele.

– Eu não te toco. Para que fazes tu isso? Pecas tu só e queres pecar.

– Meu Deus, em que aflição eu me vi. Não podia mais. Estava toda entregue àquela vontade infernal. Não queria pecar e sentia não querer deixar o pecado. Quando pude chamar pelo nome de Jesus e da Mãezinha, parecia-me que Os invocava só com os lábios e que nada me saía do coração. Quando a luta terminou, sentia ter pena por ter terminado para satisfação dos meus maus desejos. E sentia-me tão presa ao pecado que não podia sair dele. E sentia que aquela maldade era causa de muitas e muitas mortes, muitas vidas perdidas, da alma e do corpo. Que horrores, que desordens eu sentia na minha alma! Que rancores de morte! Parecia-me que de mim, pedra de tantas maldades e tão grandes escândalos, saíam espadas que iam ferir e matar. E, depois disto, depois de tantas maldades, não ter um guia, não ter uma luz. Poderá ser, sair livre de pecado?

– Confio, Jesus, confio.

18 de Outubro de 1945

Deixei cair dos ombros a minha cruz e caí também desfalecida, não capaz de poder levantar-me. E não me atrevo a levantar os olhos ao céu. E para quê, se não vejo? Cegou o meu espírito, e sinto como se cegassem também os olhos do meu corpo. A minha cegueira só vê morte e miséria por toda a humanidade. E toda esta humanidade eu vejo representada dentro de mim. Apavoro-me ao vê-la. O meu coração sente, e os meus ouvidos ouvem o eco estrondoso de trovões destruidores, e os olhos da alma vêem o relampejar faiscante de nuvens negras, que caem do alto, saídas das mãos do Eterno Pai. É justiça, é justiça divina. Jesus vem aflitivo ao meu coração, tira dele um cálice amargurado, transforma-o, junta-o ao d’Ele e oferece-o ao Seu Pai. Mas Ele já não quer aceitar. Vejo-O a desviar d’Ele Seus olhares e a Sua santa face. O quadro é tristíssimo. Que amargura a de Jesus! Ai pobre de mim! Tudo isto me leva ao abatimento. Jesus quer acudir ao mundo e já não pode. Vem a mim buscar a minha dor. Sinto-O a levar das minhas veias todo o sangue para, assim unidos, satisfazer Seu Pai, e nada consegue.

– Ó meu Deus, ó meu Deus, o que posso eu fazer por esta pobre humanidade?

O meu corpo está como o linho no sedeiro: está dilacerado, dilacerado. O meu sedeiro são espinhos, posso dizê-lo, por vezes insuportáveis. Se Jesus não se apressa a terminar os meus dias, só se for Ele. Eu, por mim, não resisto a este martírio, não venço tanta cegueira. Estou esgotada de tanto me infundir nos mares das minhas trevas, sem saber nadar. Tenho de caminhar. E é por esta cegueira que hoje mesmo tenho de chegar ao horto. Eu já o vejo, é para mim. Vejo-o, porque é de dor, é de amargura. E a minha cegueira mostra-me tudo o que é dor. Por detrás de mim já fica a cidade, cidade de crueldades, cidade de ingratidões. À frente o horto, ao lado o calvário, onde hei-de dar a minha vida.

– Ó horto, cheio de agonia! Ó horto, cheio de tristeza. Ó gruta, onde vou orar. Ó solo, onde vou prostrar-me.

A alma tudo vê e tudo sente. Sente já o rasgar das veias deste corpo. Vê a terra, que vai beber o sangue; sente a dor do beijo ingrato, que este rosto vai levar. Ai, ai, ai o que é a dor! O que são os sofrimentos do horto! O mundo não os conhece, não sabe o que sofreu Jesus. Mas eu sinto-O sofredor dentro de mim. É em mim que a Sua sagrada paixão é renovada. Que mistura num só corpo! Jesus e eu, eu e Jesus. Eu queria poder desenhar num painel os sofrimentos de Jesus, que sinto na minha alma, e poder gravá-lo em todos os corações, para eles sentirem e compreenderem o que sofreu Jesus, para não pecarem mais, para não mais O ofenderem, para só O amarem, para só o amor divino ser o fogo de todos os corações, de toda a humanidade.

– Ó meu Deus, eu queria salvá-la. Meu Jesus, sou vítima dela. Ó meu Jesus, procurai, a ver se encontrais mais alguma coisa que eu Vos possa dar.

19 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Quando, nesta manhã, fazia a minha preparação para a vinda de Jesus, o primeiro sentimento mais doloroso da minha alma foi ver e sentir dentro do meu peito Jesus coroado com agudos espinhos. Apesar da minha cegueira assustadora, eu vi o Seu rosto divino banhado em sangue e a cabeça coberta de medonhos espinhos, que bem profundo a penetraram. Neste sentimento doloroso, recebi Jesus e percorri o calvário. De um lado e do outro surgiam espinhos dispersos, que vinham ferir-me até ao mais íntimo. Os meus lábios cerrados nada diziam. Só um Deus, só a Sua força divina podia vencer em mim.

Chegou o calvário, aquele calvário tão doloroso e triste. Ao ser crucificada na cruz, senti as marteladas e vi os braços, que cruelmente se levantavam com o martelo na mão, para de novo e com mais fúria o deixarem cair. Vi as línguas blasfemadoras, que blasfemavam contra mim. O coração sentia tudo aquilo; a dor era dolorosíssima. E, dentro do meu peito, estava o mundo, o mundo mais duro que um rochedo. Nenhum sofrimento sensibilizava, nem o sangue de Jesus amolecia tal dureza.

Veio ao encontro destes sofrimentos o demónio. Assaltou-me em forma de homem. Quando o pressenti, quis apertar o crucifixo e a Mãezinha, mas já não podia. Nos sofrimentos da manhã, não tinha sentido a prisão e vim a senti-la na cruz e presa pelo demónio. Queria levantar os olhos ao Sagrado Coração de Jesus e não fui capaz. A cegueira do meu espírito não me deixou ver, e também o maldito não me deixou abrir os olhos. Parecia-me estar completamente presa por ele. Nos momentos que foram de maior angústia, soltou-se-me a língua.

– Ó meu Deus, que medo de pecar! Ó luta, ó luta infernal. Ó Jesus, venha já o inferno, se Vos hei-de ofender.

Fiquei na dúvida, dolorosa dúvida de ter pecado. E continuei na cruz. Nos meus olhos e no meu rosto estavam os olhos e o rosto de Jesus. Lágrimas de sangue rolavam por ele. Vi descer o Eterno Pai, todo envolvido numa grande nuvem. Fora dela vi a Sua face e um braço levantado ao alto com uma enorme foice; descarregava-a sobre mim com raios de fogo faiscante. As minhas trevas não me deixavam ver o céu nem sentir que o meu brado de agonia ia ter a ele. Ele estava próximo de mim, para descarregar a Sua justiça, mas estava longe, longe, para ouvir o meu brado e ter de mim compaixão. Quando Lhe bradava, Ele voltava para o lado a face e não Se dava por satisfeito, descarregando mais a Sua foice de justiça. As lágrimas de sangue continuavam, e eu não podia resistir mais a tanta dor e agonia. Eu assim esperei por Jesus, que não se apressou. Quando veio, disse-me:

– Dá-me, minha filha, toda a tua sede de amor, que eu dou-te toda a minha sede das almas. Dá-me a tua dor e cegueira de espírito, que eu dou-te a minha luz, sem que a vejas. São trevas e dor, que dão a vida. Dá-me tudo, tudo quero transformar em mim, para oferecer ao meu Eterno Pai. O que te fiz sofrer, eu o sofri também. A reparação, que Ele de ti exige, de mim exigiu também. És a nossa vítima amada. Repara, repara agora tu, já que eu não posso. Em que perigo está o mundo! Olha como as almas nadam nesse mar, nesse universo de misérias.

– Ó meu Deus, o que eu vi de almas, nadando loucas, sujas, nojentas, enlameadas. Era um mar de podridão.

– Minha filha, esse mundo pertence-te. Tem coragem! Não são inúteis os teus sofrimentos. As tuas trevas, o teu calvário, a tua imolação sem igual são para elas motivo de salvação. Tem coragem, chaveira do meu coração divino e do de minha Bendita Mãe, depositária e senhora deles. Entra, entra com a humanidade, guarda-a nestes Corações, que são de amor.

– Entro, entro, meu Jesus, com todos os que me são queridos. Devo-lhes tanto! Entro com todos os meus, entro com o mundo inteiro. Quero salvar a todos.

– Coragem, flor de amor, que o meu coração adorna. Flor de pureza, flor de caridade, que sempre o asseia. Coragem, rainha das flores, rainha das rainhas. Acabaram para ti as minhas consolações. Acabou para ti a minha luz e tudo o que é gozo. É para salvares o mundo. Ao ser conhecida a tua vida, os meus prodígios, as minas maravilhas em ti, o poder que tens sobre os pecadores, muitos dos que têm feito sofrer hão-de sentir remorsos quase desesperadores. És a vítima das vítimas, a alegria dos meus olhos, o amor do meu amor.

– Eu sinto-me humilhada e confundida!

– Escuta o que te digo. Não te tenho dito que nas tuas misérias é que eu me escondo? Não posso fazer nas almas o que quero e como quero?

Jesus disse-me estas palavras em tom de quem ralha e ralha seriamente. Fiquei logo tímida. E Jesus, sorrindo, disse-me:

– Queres ouvir meus ralhos, e a sensibilidade do teu coração não aguenta com nada. Olha a criancinha tímida diante de seu pai… Alegra-te, não temas. Não te ralho, porque sofres como eu quero; amas-me como eu desejo. É por isso que saem dos meus lábios as palavras mais encantadoras. És minha e és das almas. Não temas a tua cegueira, a tua vida sofredora. Tudo vai a caminho do seu fim, venho em breve. Recebe agora três gotas do meu divino sangue em honra das três horas da minha agonia. Recebe-o antes que percas todo o sangue tens em tuas veias. Quero sempre esta mistura: o sangue da vítima deste calvário, da maior vítima da humanidade com o sangue da vítima do gólgota, de Cristo Redentor. Assim tens todo o poder e tudo vencerás. O céu é teu. A tua morte sem luz será de amor.

Jesus tomou em Suas mãos o Coração, introduziu-o no meu e, como quem aperta uma mola, deixou-me cair três gotas do Seu sangue divino. Depois disto beijou-me, acariciou-me, estreitou-me ao Seu peito santíssimo e disse-me:

– Descansa aqui por um pouco, toma conforto, minha pomba amada, para continuares depois o teu sofrimento inigualável de levares ao termo final a tua cruz. Descansa sem as minhas alegrias e consolações. E vai depois pedir ao mundo oração e penitência.

Descansei encostada a Jesus, como quem descansa fatigada à sombra de uma árvore. Não sentia alegria nem sentia dor. Estava como quem dormia. Momentos depois, senti-me sem Jesus, e continuou a dor. Ele não se demorou como de costume, apressou a visita. Veio logo a minha cruz, e, até ao terminar deste dia, das coisas mais pequeninas às de maior importância, nas quais devia sentir alegria, tudo foi tristeza profunda e o navegar da minha cegueira. Bendito seja Jesus! Sou a Sua vítima.

23 de Outubro de 1945

Tenho medo, muito medo. Oh que medo!

– Meu Jesus, meu Amor, vede como estou apavorada. Quero fugir do mundo, quero esconder-me. A vida que possuo aterra-me.

É vida de dor, é vida de cegueira. Mas oh que cegueira! Não vejo os caminhos que me levam a Jesus; não vejo o amor d’Ele, de que tenho imensa pena. Em todas as coisas sinto e vejo perdê-Lo e em nada aproximar-me d’Ele. Quero ir ao Seu Santíssimo Coração e não posso. Morro por saciar-me n’Ele e não consigo. Sou ceguinha e sempre mergulhada na mais triste cegueira. Quero dar almas a Jesus, sinto que Ele as quer e está louquinho por elas. Sinto que Ele anda como um mendigo a mendigar.

– Meu Deus, que dor a minha!

Com esta cegueira não consigo apanhar uma alma para Jesus. E com os olhos da alma vejo-os a fugir d’Ele, loucas para o pecado. Sinto que Jesus chora em meu coração, e a minha alma vê-O nele de mãos estendidas a pedir-me para eu Lhe dar as almas, que com tanta amargura Ele vê fugir, e para O deixar saciar no meu coração.

Pobre de mim! Sinto que Jesus não pode beber. Está seca, sequíssima, esta fonte. Não Lhe dou o amor que Ele deseja, não Lhe dou nenhum, não o tenho, não o tenho. Não Lhe dou as almas, por quem Ele suspira; não sou capaz de as prender. Ai a minha cegueira! Ai a minha morte! A minha perda de Jesus e os grandes horrores do inferno!

– Ó vida, como suportar-te! Ó dor, como vencer-te! Ó Jesus, ó céu, vinde a mim.

Sinto grandes tentações contra a fé. Por vezes parece-me não acreditar na vida de Jesus, nas Suas coisas, nas Suas grandezas, maravilhas e prodígios.

– Meu Deus, parece-me que nada é verdadeiro. Tende dó de mim, quero confiar e confiar cegamente.

Parece-me que não estou no mundo, que desapareci dele para tudo, que só nele ficou a minha dor, a minha cegueira, a minha miséria com uma vergonha sem fim. O susto de ver junto de mim todos os que me são queridos. Tenho medo. Se eu pudesse esconder-me de todos! É noite, nunca mais é dia para mim. Nunca mais neste mundo poderei ter um momento de alegria.

– Perdoai-me, Jesus, os meus desabafos. Alegro-me em sofrer por Vosso amor, sem possuir esse amor.

O demónio consome-me o meu espírito e rodeia-me de várias formas: em forma de cães e feras raivosas, com cena feiíssimas à minha frente. Outras vezes, para prenderem-me mais a eles, vêm em forma de cães festeiros, engraçados, mas com olhares maliciosos e enganadores. Cansam-me tanto estas coisas. Tive um ataque tão violento com este maldito! Fez-me lembrar a morte. O coração quase que estalava, e me rebentava o peito: era um palpitar demasiado. O suor banhava-me o corpo. E eu, entregue àquelas maldades, que ele dizia serem só minhas, não me esforçava por chamar Jesus. Só no momento do transe, quando o fogo parecia queimar-me tudo, bradei:

– Jesus, Mãezinha, pecar não, pecar não. Valei-me.

Fiquei libertada. Foi de noite a luta e noite quase sem dormir e sempre unida a Jesus. Mas, depois de tão tremendo combate, tinha vergonha de me unir a Ele e de com Ele viver nas Suas prisões de amor. Ai com que humilhação eu me preparei para O receber! Depois da comunhão, que me pareceu ser sem fervor nem amor, recebi de Jesus a graça de me fazer desaparecer esta vergonha e esquecer que tinha tido tão grande combate. Fiquei na cruz, ferida com espinhos variados.

– Bendita cruz! Bendito Jesus!

25 de Outubro de 1945

Sofri e não soube sofrer. Não me aproveitei do sofrimento. Vivi e não soube viver. Não compreendi a minha vida, não foi minha. Senti o meu corpo todo esfacelado pela dor, todo ferido de espinhos, parecendo-me ficar com a alma num banho de sangue, só sangue. Mas nada disto me aproveitou. Fora do céu, fora do mundo, vivi nessa região desconhecida, mas mesmo nela despida de tudo, envergonhada e confundida. A minha alma queria gritar, mas estes gritos, que sinto em mim, são gritos desesperadores.

– Não venço, Jesus, não venço. Tende dó de mim. Ai quem me acode em tão grande dor! Eu tenho medo e sede de Vós. Eu tenho vergonha, mas ânsias ardentes de Vos possuir eternamente. Já não posso estar aqui por mais tempo, Jesus. O céu, o céu! Oh quando chegará o céu! Quero ir, Jesus, quero voar, mas temo comparecer, temo dar-Vos as minhas contas.

Vejo um mundo de vergonhosas misérias sobre mim, pelas quais eu tenho de responder. Não posso caminhar, não sei nadar, afogo-me nas minhas trevas, nesta cegueira de espírito. Ouço os gemidos do inferno, sinto-me neles.

– Perder-Vos para sempre, Jesus! Mas mesmo lá queria ver-Vos, queria abraçar-Vos e não posso. Oh que desespero!

Sinto que a verdadeira morte, a que eu quero chamar vida, se aproxima. Sinto que espadas de fogo, espadas de amor vêm dar-me esses cortes no momento derradeiro. Estas espadas vêm de Jesus. Este amor d’Ele vem também. Este último momento, causado por essas espadas, será de amor. Mas não é meu, não vem para mim este amor. A ele se uniram as minhas trevas, trevas que me assustam, cegueira que me mata. Esta cegueira tudo esconde e tudo parece afastar de mim.

– O demónio, meu Deus, o maldito demónio, quer vencer-me, quer obrigar-me ao mal.

Que lutas tão tristes e tão perigosas! Ele quer que eu diga, nos momentos mais graves, que eu quero pecar, que não me importa de ofender a Jesus. Desprendeu-se-me a língua e eu disse:

– Sou a Vossa vítima, meu Jesus. Não, não quero pecar.

Mas, por muito tempo, fiquei a sentir grandes desejos de pecar e estava entregue à vontade do demónio. Quando ele ouvia a minha oferta de vítima a Jesus, enchia-se de raiva e queria assaltar-me e despedaçar-me. Não há nada mais triste do que parecer e sentir que se ofende a Jesus e não querer ofendê-Lo. É um espinho que penetra sempre, uma espada que sempre corta.

– Ai, meu Jesus, e eu sem conforto e sem luz. Parece-me que sou ferida por todos e por todos abandonada.

Sinto na minha alma os preparativos para a grande ceia, para a ceia do amor. Sinto que Jesus vai dando aos Seus as Suas ordens e, parando, de passos a passos, olha com os Seus olhares divinos a cidade ingrata, o horto de tanta amargura, o calvário que O espera. Tudo isto está representado dentro de mim. E toda a dor de Jesus se faz sentir em minha alma. Que olhares tão ternos, que palavras tão doces Ele tem para aqueles que O atraiçoam e O vão prender! Já vejo o sangue de Jesus, que vai correr no horto, o cálice da amargura, que ao Eterno Pai se vai levantar. E o anjo, que vai descer para conforto do seu Rei. Jesus sofre comigo, e eu com Ele. Sinto que é das minhas veias que o sangue vai sair, e que sou eu com Ele quem todo o sofrimento do horto vai aguentar. O mundo não sabe quanto sofre a minha alma, mas é por ele que eu sofro e por amor de Jesus. Quero sofrer e sofrer sempre para Lhe dar glória e salvar-Lhe as almas.

26 de Outubro de 1945 – Sexta-feira

Esta noite, juntaram-se dois hortos ao mesmo tempo. Não o esperava. Parecia-me que o que era permitido por Jesus bastava. Mas não, veio outro causado pelas criaturas.

Como resisto a tanto sofrimento e à compreensão de tudo? Não sou eu que resisto, é Ele em mim, e isso basta para aumento da minha cruz. Sofrer Jesus! Não posso com esta dor. Queria que Ele vencesse comigo, mas não sofresse. Sinto-me tão esmagada, tão desfeita com o peso dos sofrimentos, como Satanás debaixo do santíssimo pé e poder da Mãezinha. Logo de manhã, tomei a cruz, não a coloquei eu, mas senti que ma colocaram aos meus ombros, e caminhei para o calvário. Que gritos e algazarras de escárnio atrás de mim! Era um eco só. A minha cabeça era uma só ferida. Parecia um só espinho. O meu corpo senti-o como um esqueleto sem carnes e tão desfalecido, como se nele já não houvesse uma única gota de sangue. A dor da chaga do ombro tirava toda a vida ao coração. A força que resistiu, a vida que viveu, foi a força e a vida de Jesus. Oh! como eu O senti também, como Ele estava bem gravado em meu coração e em minha alma! Ai, como a Sua santíssima paixão é renovada tão repetidas vezes! O Seu santíssimo pescoço e cinta tinham regos profundos, em ferida, causados pelas cordas, e sem haver das criaturas um acto de amor e compaixão. Houve e há ingratidão, só ingratidão. Caminhei sempre, mas sempre numa cegueira mortal. Se houvesse milhões de mundos, com este sentir da minha alma eu poderia dizer:

– Todos estes mundos são trevas e habitados por trevas. Ó morte, ó tremenda morte! Ó cegueira de espírito, ó aterradora cegueira!

Despedaça-se de dor a minha pobre alma. Não vem do alto uma luz, não vem do céu um conforto.

– Meu Deus, meu Deus, se é assim, como poderei recebê-lo das criaturas? Ó amor vencedor da dor e da morte! Se tu fosses meu, se me pertencesses!...

Estava na cruz. Parecia-me que de cada cabelo da minha cabeça caíam bastas gotas de sangue, mas sentia que o meu corpo já não tinha nenhum. Parecia-me que de um e outro lado de toda a humanidade atiravam para ele pedradas, escarros e tudo quanto podia causar dor. E eu sempre na cruz, em tanto abandono e cegueira. Senti e vi com os olhos da alma aquela nuvem, que vi há oito dias com o Eterno Pai. Não O vi a Ele, vi só por fora da nuvem à espécie de forcas, guilhos e instrumentos de suplício. Tudo isto saía das mãos do Eterno Pai. A nuvem era mais carregada e feia e estava mais baixa ainda do que da outra vez. Tudo isto descarregava sobre mim. Era assustador. Em tamanho abandono, esmagada por tão grande peso, bradava ao céu, mas o brado não era ouvido, passava ao lado da nuvem, e eu sentia que o Eterno Pai mais Se escondia e virava para o lado a Sua divina face. Veio então Jesus.

– Minha filha, o Eterno Pai já não é o mesmo que até agora, já subiu à Sua glória, não descarrega neste momentos sobre ti e sobre mim, que estava em ti, o peso da Sua justiça. Voltarás a senti-Lo logo que voltares à tua cruz.

Vi então no alto essa nuvem muito branca e formosa, e nela, cheio de luz, o Eterno Pai. Que grande transformação! Jesus continuou.

– Ele descarrega sobre ti a Sua justiça, porque és a Sua vítima. Há oito dias, viste-Lo, mostrando a Sua justiça, mas convidando e chamando ao mesmo tempo: era convite e chamamento de quem quer salvar. Hoje, desceu mais perto com o Seu peso vingador. Os instrumentos que viste são instrumentos supliciosos para o mundo, se ele não se converter. Desceu mais perto, porque mais perto está a hora. Escondeu-Se, para mostrar que todo aquele que se envergonhar de nós que também nós nos envergonhamos dele.

– Ó meu Jesus, então o mundo não vai ser salvo? Não valem nada os meus sofrimentos? Que mais posso fazer, meu Jesus?

– Sossega, sossega, filhinha. Se o mundo não se vencer pelo amor, há-de salvar-se pela dor e pelos pavores horrorosos dos suplícios. Tem coragem! O que eu quero são as almas. Ele é teu, confiei-to, e por ti será salvo. Tu és a maior vítima, a vítima mais querida e amada do meu Divino Coração e da minha Bendita Mãe. Quero que sofras, necessito que sofras, mas fito-te, contempla-te todo o céu com paixão. Penitência, penitência, oração, oração. O teu sangue, vítima querida, flor mais pura do meu jardim, vai dar um mundo novo, um mundo de pureza. Coragem, coragem, estrela luzente! A rainha fiel ao seu Rei, que sofre por vê-Lo ofendido, sofre por ver perder-se o povo do seu reinado. O teu Rei sou eu, o teu povo, o teu reinado é o mundo. A mãe, que dá a vida a seus filhos, dá-lha pela dor. Tu, a quem elegi mãe da humanidade, é pela dor inigualável que a salvarás. Tudo te fere, muitos te ferem? Alegra-te, é a dor a moeda das almas. É a dor e sangue o preço do resgate. Tu és a porta-voz de Jesus para o Santo Padre. Tu és o eco da voz e desejos de Jesus para toda a humanidade. Penitência, oração, e sem demora.

– Jesus, prometeis-me então pelos meus sofrimentos as almas?

– Sim, minha filha, dei-tas para mas dares. És poderosa, é poderosa a tua dor, poderoso é o teu sangue. És a semente de nova geração, és o bálsamo e salvação das almas. Anima-te, tem coragem um pouco mais. O teu sofrimento chega ao auge, assim como a cegueira do teu espírito. É sinal de proximidade do teu céu. Será tal a tua cegueira que deixarás de saber dizer quanto sofre a tua alma. Dispenso-te então de escrever. Apenas uma coisa ou outra saberás dizer por alto ao teu director. As espadas de amor, que sentiste ferir-te, serão a tua morte. Será aquele amor que te arrebata ao céu. Mas nesse momento a tua cegueira não te permitirá vê-lo nem senti-lo. Vai para a tua cruz, que te espera. Desta vez não demoro tantos dias a vir confortar-te. Necessitas. Recebe por último um estreitado abraço.

Jesus apertou-me contra o Seu Divino Coração. Fez isto com tanta lesteza, mostrava estar com pressa. Fiquei logo na cruz a sofrer, por me parecer que Jesus se queria retirar de mim. Sinto-me tão longe d’Ele e tão sobrecarregada pela justiça divina.

– Bendita seja tão pesada cruz! Sou a Vossa vítima, sempre, sempre, Jesus.

29 de Outubro de 1945

– Ouvi, Senhor, a minha voz. Ouvi o meu clamor.

O meu coração não pode resistir a tanta dor. Aterra-me a minha cegueira, aterra-me o abandono em que estou e a minha vida, que me parece só enganos, só de enganos. Tomo a cruz, mas é tal o desfalecimento que a não sustento, caio para um lado e deixo-a cair para o outro. Há dias, Jesus me dizia:

– Vai para a tua cruz que te espera.

Pensei ser a mesma, que deixei para falar com Jesus, mas não. Aumentou o seu peso e não sei como aguentar. Parece-me desfazer debaixo dela. Que tremenda é a minha amargura! Queria fugir dos olhares de toda a gente, amigos e inimigos, se os tenho, mas mais ainda dos amigos. Fugiu a luz, escondeu-se, e com ela escondeu-se e fugiu a minha alegria. Nunca mais a poderei ter na terra. Os meus sorrisos são forçados, até esses são enganadores. São arrancados do meio das mais dolorosas dores, agonias e trevas mais profundas.

– Que fazer a isto, meu Jesus? Como aguentar, querida Mãezinha, sem o auxílio do céu? Mas esse mesmo fechou-se, escondeu-se, não chegam cá abaixo os Vossos olhares, os Vossos sorrisos.

Morreu o céu, morreu Jesus, morreu a Mãezinha, morreu tudo o que é vida, morreu tudo o que é amor. Sá as maldades me cobriam e me vestiam, só a morte assustadora existe com a  dor, deixem-me dizer, com a dor insuportável.

– Ó meu Deus, ó meu Deus, anda o meu espírito a navegar nas trevas e quase desesperadamente. Compaixão, compaixão, meu Jesus, peço-Vos compaixão.

Hoje, logo após a visita ao meu coração, principiei a desabafar com Ele, não com o fim de obter resposta, mas para desafogar as minhas mágoas, e só com Ele o podia fazer, pois não tinha ninguém, mais ninguém, depois de Lhe dizer que a minha via me parecia só de enganos, que não queria enganar-me nem enganar ninguém e muitas mais coisas ainda. E, para provar que confiava n’Ele, disse-Lhe:

– Juro-Vos, juro-Vos, meu Jesus, que confio em Vós.

Ele apressou-se a responder-me:

– Confia, confia, minha filha, e isso basta, nada mais é preciso. Cá estou eu para justificar toda a verdade. Já te disse muitas vezes que não te enganas, que nunca enganaste nem enganarás. A tua vida não é de enganos, é de loucuras de amor por mim e pelas almas. É verdade que a tua vida é de enganos, porque são raros, muito raros, quase nenhuns que compreendem o amor com que me amas, o amor com que amas as almas. Por essa razão é que é vida de enganos. Confia, não esperes outra vida, é vida de maior cruz, das maiores trevas. Todo o sofrimento, que te venha, é para te firmar sempre no mesmo amor e não para te aumentar mais, porque mais não podes amar-me. Firmo-te, seguro-te, sempre no mesmo amor até que me possas amar à luz clara do Paraíso, à luz consoladora da eternidade. O meu divino amor é força da tua cruz, é a vida de que vives, é a vida da tua vida.

O sofrimento da minha alma foi suavizado com estas palavras de Jesus. Não foi visita de consolação nem de luz nem de alegria, mas foi de união e de conforto. Mas tão pouco duradoiro! Pouco depois voltou a cruz a sobrecarregar-me com o seu peso e todas as dores, e espinhos voltaram a ferir o meu coração tão pouco resistível à dor.

– Fazei, Jesus, que eu suba o restante calvário e não me deixeis vacilar na fé, na confiança e no amor. Serei sempre Vossa, Jesus, e sempre a Vossa vítima.

   

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