«…virá o
tempo em que não suportarão a sã doutrina»
«Mas tu
persevera no que aprendeste e acreditaste» S. Paulo (2 Tim 4, 34 e 2
Tim 3, 14)
Filautia
São
Paulo, nas importantes cartas a Timóteo (particularmente, 2 Tim 3,
2) fala de nós, “os homens dos últimos dias”: “Sabe, porém, que nos
últimos dias sobrevirão tempos difíceis, porque os homens serão
egoístas…”. “Egoístas” é a tradução de “philautoi”, aquele
que não se ama senão a si mesmo; e, por isso, não ama o outro
como a si mesmo, nem a Deus sobre todas as coisas, mas a si mesmo
elegeu como centro de todas as coisas, como princípio (determinador)
de si mesmo (auto). Como diz Ireneu Hausherr, num magnífico
livro dedicado inteiramente ao estudo deste tema – um verdadeiro
manual para entendermos os dias que vivemos (Philautie: de la
tendresse pour soi à la charité selon Saint Maxime Le Confesseur):
philautia é a raiz de todos os pecados, de todos os vícios e, de
facto, vemos como São Paulo começa por aí justamente a sua longa
enumeração dos vícios dos homens dos “últimos dias”:
“serão
philautoi, avarentos, altivos, soberbos, blasfemos, desobedientes
a seus pais, ingratos, ímpios, sem coração, implacáveis,
caluniadores, dissolutos, desumanos, inimigos do bem, traidores,
insolentes, orgulhosos e mais amigos dos prazeres do que de Deus,
tendo uma aparência de piedade”.

Caravaggio, Narciso,
1598-1599
Tendo uma aparência de piedade!...
“Foge destes”, conclui São Paulo! Sim, como as ovelhas fogem da
voz dos estranhos (Jo 10, 4-5) … Estes são ainda aqueles de quem São
Paulo diz que têm uma “fé inconsistente” e que “resistem à verdade”.
E São
Paulo aconselha Timóteo e, portanto, a nós, Timóteos de hoje, assim:
“Mas tu persevera no que aprendeste e acreditaste” (2 Tim 3,
14); “virá o tempo em que não suportarão a sã doutrina, mas
acumularão mestres à sua volta, ao sabor das suas paixões,
levados pelo prurido de ouvir. Afastarão os ouvidos da verdade e os
aplicarão às fábulas.” (2 Tim 4, 3-4)
É
curioso como, lendo São Paulo, somos levados a dizer dos inovadores
que são eles, na verdade, os “duros de coração”, os que “resistem ao
Espírito Santo”, pois são eles que se “fecharam à Verdade” para
elegerem uma opinião “ao sabor das suas paixões”.
Autodeterminação
«… por uma
qualquer fissura o fumo de Satanás entrou no templo de Deus» Papa
Paulo VI, 1972
A
tremenda expressão de Paulo VI, citada em epígrafe, vai-se tornando
realidade na sociedade em vários níveis e de forma
impressionantemente rápida. Uma das mais graves expressões daquilo
que está significado naquela
“fissura”
é aquilo a que se chama o “princípio da auto-determinação”. A
aplicação deste “princípio” a várias áreas tem sido catastrófica:
começou pela filosofia, pela política, pela sociologia, chegou à
psicologia e desembarcou, cheia de fôlego, na teologia. A
autodeterminação é, na verdade, sinónimo da expressão da rebeldia do
anjo caído, o seu “non serviam”, não servirei! É o diametral
oposto daquilo que o Senhor nos ensinou, desde logo de modo
perfeito, no exemplo da Imaculada: a de adequarmos a nossa vontade à
Sua – a de fazermos tudo quanto Ele nos disser. Em rigor, o único
auto-determinado é Deus, por isso, trata-se de uma tremenda
usurpação do poder divino; usurpação que Deus permite ou inflige
para daqui tirar um bem maior.
A ideia
de que uma sociedade, um grupo de indivíduos ou um só indivíduo, têm
direito à autodeterminação é completamente absurda. No entanto, já
fomos tão longe, a este nível, que se considera normal um homem
“identificar-se” como mulher e vice-versa. Paulatinamente, começou a
aparecer a expressão “género” e, num segundo momento, bem calculado,
começou-se a separar “género” de “sexo biológico”, reservando o
primeiro para a psicologia. Esta é apenas uma aplicação daquele
“princípio”.
Quando
olhamos para a teologia, podemos observar como esse mesmo “princípio
da autodeterminação” veio também a resultar numa separação entre a
esfera objectiva e a esfera subjectiva das nossas acções. Assim, é
possível, diz-se, que uma acção objectivamente má, um pecado,
subjectivamente não seja tal. É esta a pretensa justificação para a
aceitação de que um adúltero, objectivamente, possa não se ver como
tal, subjectivamente. Diríamos que o facto de um adúltero ou
qualquer outro pecador é passível de não se reconhecer como tal, por
incapacidade de discernir a sua situação, vendo-se objectivamente.
No entanto, se esta sua “impressão” contar com a sanção da Igreja,
então adquire certa aparência de objectividade, fechando-se o ciclo!
Exactamente como na questão de “género” e “sexo”, aqui opera-se, num
primeiro momento, uma separação entre as duas áreas e, depois,
privilegia-se, como ali, a esfera subjectiva, dando uma aparência de
misericórdia, por se “respeitar” a vontade do indivíduo; quando o
que o Senhor nos pede é, pelo contrário, que entreguemos a nossa
vontade nas Suas mãos, adequando a nossa à Sua Vontade, pois Ele é a
fonte única da misericórdia.
Ou
seja, por este processo, abre-se uma fissura entre a
realidade objectiva e a subjectividade, para depois se subverter a
hierarquia natural (e sobrenatural) da realidade. A perversidade
deste “princípio” está ainda na sua universalização virtual. Esta é
uma marca da inteligência sinistra e terrível do anjo caído. Este
“princípio” há-de, pois, ser levado a extremos inimagináveis para
nós ainda. A sua consequência é fácil de ver: uma implosão.
Parece
que estamos em pleno naquela hora de que fala o Catecismo, a hora em
que se tentará criar, na religião, uma “solução aparente” para todos
os nossos problemas, mas “à custa da apostasia da verdade” (§ 675).
No
entanto, a Verdade é a Verdade e não mudará apenas por os homens,
sejam mesmo teólogos, sacerdotes, bispos ou mesmo papas, a
pretenderem mudar. Cristo não disse apenas que vinha para nos dizer
a Verdade; não, Ele disse também que Ele é a Verdade,
identificando-se ontologicamente com ela.
No fim,
uma pedra seguirá sendo uma pedra, por muito discernimento que
tenham doutores em teologia, filosofia, sociologia ou política… uma
pedra, por muito que se achasse ou identificasse com um vegetal,
sempre seguiria sendo, inelutavelmente, uma pedra, por muito que se
cobrisse de musgo.
Há, no
entanto, uma área em que os defensores do “princípio da
autodeterminação” nunca se atrevem nem atreverão a atacar e a exigir
que também aí se aplique esse “princípio”: a biologia. A razão é
simples, é que a biologia ilustra de um modo terrível o efeito deste
“princípio” quando aplicado a um organismo: chamamos-lhe tumor.
Pedro
Sinde |