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Um projecto de vida, de
autenticidade e de libertação
“Não
penseis que eu vim para abolir a lei e os profetas. Não vim para
abolir mas para dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17).
Esta é uma
afirmação fundamental de Jesus sobre sua missão; ao mesmo tempo é o
cerne da profissão de fé da Igreja sobre a identidade e a função
messiânica do próprio Jesus. É a chave hermenêutica a partir da qual
devemos entender e viver a Boa-nova de Jesus. Nessa afirmação
aparece bem como toda a história esteja ordenada ao Cristo e como
nele ela encontra o seu centro e a sua plena realização.
Ao longo
do evangelho de Mateus ocorre com frequência a frase “Isso
aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor tinha dito pelo
profeta” (cf. Mt 1, 22; 2,15.17.23). A intenção do evangelista
está clara: Ele quer sublinhar que na vida e no ensinamento de Jesus
se está revelando e cumprindo o desígnio de salvação de Deus,
prometido e iniciado através dos acontecimentos dos patriarcas e das
palavras dos profetas do AT, por meio da aliança e do dom da Torá.
O próprio
Jesus, para iluminar e sustentar a fé dos discípulos profundamente
perturbados em razão dos trágicos acontecimentos da paixão e morte
em Jerusalém, com carinho e vigor destaca: “Era preciso que se
cumprisse tudo o que está escrito sobre mim na Lei de Moisés, nos
profetas e nos salmos. Então abriu-lhes a mente para que entendessem
as escrituras” (Lc 24, 44-45).
Ao
celebrar a memória da Páscoa de Jesus, morto e ressuscitado, a cada
domingo, a Igreja nos faz viver em maneira nova este encontro
revelador com o Senhor ressuscitado. À sua luz se iluminam nossas
angústias e nossas perguntas incessantes sobre nós mesmos e a nossa
condição de seus discípulos, às vezes desanimados diante das
incongruências da vida.
Ao escutar
as palavras de Jesus no evangelho de hoje, podemos bem compreender
que no centro do ensino proporcionado para os discípulos, assim como
nas disputas acirradas com os escribas e os fariseus que o acusavam
de não respeitar a Lei e as tradições dos antigos pais, não está
simplesmente em jogo a questão da observância dos preceitos da Lei
de Moisés ou dos costumes tradicionais, mas a relação profunda com a
pessoa do próprio Jesus e com o projecto original de Deus para com
Israel e a humanidade inteira. Um projecto de vida, de autenticidade
e de libertação de toda dissimulação consigo mesmo, com os demais e
com Deus.
Jesus, o
“homem novo”, o “novo Adão” (cf. Rm 5, 15 -19), realiza o desígnio
do Pai segundo seu projecto original sobre o homem/mulher, e abre o
caminho para também nós entrarmos na dinâmica do homem novo. Da
relação autêntica com a pessoa de Jesus, vivenciada na fé, brotam no
discípulo, a energia vital e os critérios que orientam do interior o
estilo novo da sua vida, moldada pelo Espírito no seu exemplo. Ao
conhecer e ao amar a Jesus, os preceitos e os critérios novos para
agir, brotam da raiz do coração renovado. Abrem um processo que
antecipa a plenitude da vida divina em nós. “A fé – afirma São
Boaventura – é o conhecimento de Jesus Cristo, donde se origina a
firmeza e a compreensão de toda a escritura... Ela foi escrita não
apenas para que crêssemos, mas para que possuíssemos a vida eterna,
onde veremos, amaremos, e teremos satisfeitos todos os nossos
desejos” (Brevilóquio, 5, 201; LH III, pg. 151; 152).
Quando a
experiência espiritual amadurece assim, os mandamentos de Deus não
são mais leis ditadas ou impostas do exterior ao discípulo. Elas
estão inscritas pelo Espírito no tecido vivo da consciência, segundo
a profecia de Jeremias sobre a nova aliança: “Porei minha lei no
fundo de seu ser e a escreverei em seu coração. Então eu serei seu
Deus e eles serão meu povo” (Jr 31, 33).
A partir
da sua experiência pessoal de total adesão ao Pai na obediência do
amor, Jesus, seguindo a linha dos grandes profetas, reivindica a
interiorização da lei e do culto, a fim de que estes correspondam ao
sincero compromisso na vida. Pois, infelizmente, pode acontecer o
paradoxo de uma vida formalmente condizente com as leis e as
“tradições sagradas”, mas de fato em contradição radical com as
exigências elementares de uma autêntica relação com Deus: “Vós
sabeis muito bem como anular o mandamento de Deus, a fim de guardar
as vossas tradições... Assim vós esvaziais a palavra de Deus com a
tradição que vós transmitis” (Mc 7, 9.13).
Terrível
esta admoestação de Jesus, que não acaba de ressoar na consciência
dos discípulos! Pois a latente tensão entre formas exteriores e
qualidade efectiva da vida acompanha o “homem religioso” em todo
tempo. Palavras que constituem um ponto de referência substancial,
para um constante exame de consciência individual e comunitário.
Para um caminho de autêntica libertação.
A passagem
do exterior ao interior coincide com a passagem progressiva da norma
observada por dever ou medo do juízo de Deus, ao amor fonte de
energia vital e lei suprema de ação. Toda observância de normas
morais exige empenho, mas fica circunscrita dentro seus limites,
como é na natureza de toda lei. Pelo contrário, a lei do amor é mais
exigente, pois todo amor autêntico não conhece limites no seu
compromisso. Mas o compromisso que nasce do amor, nasce e se exprime
na liberdade e se torna libertador. Nenhuma norma é suficiente para
conter as potenciais exigências do amor livre e generoso. O amor
prevê e antecipa as necessidades do outro, assim como o cuidar deste
com carinho.
Na vigília
da sua total e definitiva dedicação ao Pai e aos discípulos, Jesus
resume a revelação de si mesmo e seu ensino na entrega do mandamento
único e novo, o mandamento do amor, em continuidade da sua mesma
experiência: “Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos
outros. Como eu vos amei, amai-vos também uns aos outros” (Jo
13,34).
Padres
comprovados da vida espiritual, como São Bento, se colocam na linha
do exemplo e do ensino de Jesus. Destacam a função pedagógica das
normas de vida e a necessidade de passar sempre mais da prática
disciplinar das regras, úteis para iniciar o caminho espiritual e
nos sustentar nos momentos de fragilidade, para a lei do amor, fonte
da verdadeira liberdade dos filhos e filhas de Deus. “O caminho
da salvação – escreve São Bento – nunca se abre se não por
penoso início. Mas, com o progresso da vida monástica e da fé,
dilata-se o coração e com inenarrável doçura de amor corre-se pelo
caminho dos mandamentos de Deus. De modo que não nos separando
jamais do seu magistério e perseverando no mosteiro, em sua
doutrina, até a morte, participemos, pela paciência, dos sofrimentos
de Cristo, a fim de também merecermos ser co-herdeiros de seu reino” (Regra
dos monges, Prólogo, 49-50).
A passagem
através da pedagogia das normas até chegar à liberdade exigente do
amor é um autêntico êxodo e saída de si mesmo, uma morte ao homem
velho para dar lugar ao homem novo, uma passagem pascal em Cristo e
com Cristo. Antes de tornar-se fruto do esforço moral, a vida do
Espírito é fruto da graça pascal de Cristo, acolhida na experiência
sacramental da liturgia e no caminho sincero da conversão do coração
ao Senhor.
A meta do
caminho espiritual, identificado por São Bento com “a subida da
escada da humildade”, em sintonia com a humildade do Verbo que
esvaziou a si mesmo, é alcançar a lei do amor gratuito, na liberdade
e na alegria do Espírito.
“Tendo,
por conseguinte, subido todos esses degraus da humildade, o monge
atingirá logo, aquela caridade de Deus, que, quando perfeita, afasta
o temor: por meio dela tudo o que observava antes, não sem medo,
começará a realizar sem nenhum labor, como que naturalmente, pelo
costume, não mais por temor do inferno, mas por amor de Cristo, pelo
próprio bom costume e pela deleitação das virtudes”
(Regra dos monges c. 7, 67-69).
Santo
Agostinho, o homem que experimentou em si mesmo as radicais
contradições entre os desejos mais profundos do coração humano e a
incapacidade para segui-los com as própria forças, e que depois
experimentou a explosiva energia renovadora da graça, chegará a
cunhar a famosa frase que bem resume a raiz e o horizonte infinito
do amor de Deus derramado no coração: “Ama e faz o que quiseres!”.
Se alguém amar de verdade, não pode agir a não ser segundo a lógica
do amor de Deus.
Esta é a
verdadeira identidade cristã e o dinamismo da liberdade e
responsabilidade do cristão, como filho e filha de Deus em Cristo.
Este é o
caminho que Jesus abre novamente com seus gestos e palavras.
Inevitavelmente muitas vezes elas vão embater com as atitudes míopes
dos fariseus de todos os tempos. Na verdade o que Jesus põe
novamente em primeiro lugar constitui o sentido do original projecto
de Deus, revelado e doado a Israel na aliança e na Lei. Por isso nem
os pormenores da Lei, assim entendida, deveriam ser arbitrariamente
omitidos. Pois, também neles se manifesta a plenitude da lei. A
lógica do amor é abrangente. Se os discípulos tem que estar
dispostos a perder a vida por Jesus e pelo evangelho, para tornar-se
dignos do reino de Deus (Mt 10, 32-33), é também não menos verdade
que “quem der, nem que seja um copo de água fria a um destes
pequeninos, por ser meu discípulo, em verdade vos digo que não
perderá sua recompensa” (Mt 10,42). No pequeno gesto está presente a
plenitude do amor. Por isso toda vocação cristã tem em si mesma as
potencialidades da santidade.
A lei de
Deus não é constrangedora da dignidade da pessoa humana; é o
contrário do que acontece nas mãos dos fariseus: por a terem
manipulado e submetida às arbitrárias interpretações e tradições
humanas, chegaram a ponto de até esvaziá-la e substituí-la com as
próprias tradições.
Jesus
indica a exigência que a relação dos discípulos com a lei, “a
justiça” deles, seja “superior à dos fariseus e dos letrados”,
prisioneiros do legalismo exterior (Mt 5, 20).
A partir
da perspectiva da interioridade e da integridade do compromisso da
pessoa na prática da vida quotidiana, destaca a lei suprema do amor
como critério fundamental de vida na nova comunidade dos discípulos.
Ao se colocar no patamar do projecto original de Deus, Jesus com sua
autoridade soberana põe em luz as contradições e evidencia a
exigência de descer às raízes de onde brotam os sentimentos e as
acções. “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos... Eu porém, vos
digo...”.
As três
antíteses relativas ao preceito de não matar (v. 21-26), à proibição
do adultério — divórcio (v. 27-32), e à proibição do juramento (v.
33-37), tocam as fundamentais relações com o próximo, consigo mesmo
e com Deus. Jesus passa do aspecto exterior, mesmo aparentemente de
pouca importância, como um olhar furtivo para uma mulher/homem, ou
uma palavra desrespeitosa dirigida a um irmão, à raiz mais profunda
dos pensamentos, dos desejos, da falsidade ou da integridade consigo
mesmo e nas relações.
Até mesmo
o ato de culto: quando aquele que oferece se encontra já diante do
altar do Senhor, deve se submeter a verificar dos sentimentos do
irmão em relação a si (Mt 5, 23-25). A relação com o irmão se torna
critério fundamental da autenticidade da relação com o Senhor! A lei
do amor não admite divisão e diferenciação ao relacionar-se com a
vida. Como disse o próprio Jesus: “Como eu vos amei, amai-vos
também uns aos outros” (Jo 13,34). Se a pessoa está divida em si
mesma, por desejos e actividades contrastantes com a exigência da
integridade, é necessário enfrentar uma transformação radical desses
elementos através de uma verdadeira morte e ressurreição pascal com
Cristo (Mt 5, 29-30).
Junto com
o evangelho encontramos na leitura semi-contínua da primeira carta
de Paulo aos Coríntios (2ª Leitura), palavras iluminadoras.
Percebemos ainda mais claramente que o horizonte e o caminho
proposto por Jesus pertencem ao mundo alternativo, outro: aquele da
sabedoria da cruz e do mistério de Deus revelado em Jesus
crucificado. Esta é a sabedoria que Paulo tem usado ao falar do
evangelho de Jesus aos Coríntios, contando unicamente sobre a força
persuasiva que vem do Espírito. Paulo recebeu de Deus esta
surpreendente sabedoria divina através do Espírito, e ao próprio
Espírito é preciso se submeter, para entrar no dinamismo da nova
modalidade de viver.
Esta é a
graça que a Igreja invoca como dom supremo do Pai para todo o povo
que participa na celebração eucarística: “Ó Deus, que prometestes
permanecer nos corações sinceros e rectos, dai-nos, por vossa graça,
viver de tal modo, que possais habitar em nós”.
Congregação para o Clero
Comentário para o sexto Domingo do Tempo da Igreja - A |