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Pontos de Reflexão
I LEITURA I Zac 12, 10-11;
13, 1
Esta
passagem do Segundo Zacarias, profeta anónimo do século IV a. C, anuncia
para o futuro uma efusão particular de
«piedade» e de «súplica» (v. 10a),
que provocará a regeneração espiritual de Jerusalém. O povo
poderá dirigir um olhar renovado para uma personagem misteriosa, um bom
pastor humilhado e torturado, depois de ter contribuído para o eliminar
violentamente, para o «trespassar» (v. 10a), diz o texto.
São dois os
temas apresentados pela leitura. Antes de mais, «Aquele a quem
trespassaram» (v. 10), uma figura anónima e misteriosa, para conhecer, a
qual nos ajuda a referência à figura do servo de
jhwh apresentada no Segundo
Isaías (Is 52,13-53,12). Um
contributo fundamental vem-nos depois das leituras neotes-tamentárias.
João lê neste texto uma profecia da Paixão de
Jesus (cf. Jo 19,37): o «trespassado»
é o Senhor ressuscitado que mostra a Tomé as Chagas como prova do
Seu amor crucificado (cf. Jo
20,20.27). O Apocalipse recorda esta figura para exprimir o
assombro dos povos perante Cristo, que voltará como juiz dos últimos
tem-pos: «Ele vem com as nuvens e todos O verão, até
mesmo aqueles que O trespassaram. E
todos os povos do mundo baterão no peito.»
(Ap 1,7)
O segundo
tema é o povo. O próprio Senhor, que se declara surpreendido pela
morte infligida ao Seu enviado, derrama sobre
Israel «um espírito de piedade» (v. 10a), ajuda-o a derramar lágrimas
de arrependimento e a chorar, como se lamentasse a morte de um «filho
único», (v. 10b) A imagem é do pranto ritual que
aconteceu em «Hadad Rimon, na
planície de Megido» (v. 11) durante
uma liturgia em honra de Baal cananeu, deus da vegetação,
que se julgava que morria no final
das colheitas, para depois reviver no começo das chuvas.
Este segundo tema somos
também nós: com a Sua «graça», o Senhor opera um
profunda transformação nos nossos corações
de pecadores, fá-los reviver vivos e
sensíveis, faz com que se sintam culpados e arrependidos por
terem matado Aquele que realiza a nossa salvação.
II LEITURA Gal 3, 26-29
Neste texto
Paulo desenvolve outra das grandes argumentações que se sucedem na Carta
aos Gálatas: o que é que significa
sermos verdadeiros filhos de Abraão («des-cendência de Abraão»
v, 29), entendido como «aquele que
teve fé»? (Cf. Gl 3,6)
Responde: só passando pela autêntica fé era Cristo estamos
habilitados a herdar a filiação de Abraão. A união radical a Cristo
acontece no Baptismo, expressa pelo Apóstolo com o símbolo bíblico do
«vestido» (v. 27), que denota a qualidade e a dignidade profunda
assumida pelo homem. A humanidade nova em Cristo revoga qualquer
discriminação (w. 28-29).
Sobre os Gálatas - e sobre
todos nós que, pela fé e pelo Baptismo, «pertencemos a Cristo» - descem
as promessas salvíficas
feitas a Abraão e à sua
descendência (v. 29). O Baptismo fez-nos dar um
salto qualitativo: fomos «revestidos de Cristo» (v. 27) e
isto significa que formamos um só
ser com Ele, com todas as consequências que Paulo nos recorda.
Antes de
mais, também nós somos «filhos» como o Filho
(v. 26). Em segundo lugar, em
Cristo, e precisamente em Jesus Crucificado, nasce uma nova
Humanidade, na qual é anulada
qualquer discriminação religiosa e cultural («judeu/grego»), civil
(«escravo/homem livre») e até sexual («homem/mulher»), julgada
naquele tempo importante e decisiva em ordem à salvação
(cf. w. 28-29). No Filho é
restituída aos homens a única e idêntica
dignidade de filhos de Deus.
Finalmente, como explicitará numa outra Carta, este revestir-nos
de Cristo, que faz de nós criaturas novas, traz consigo muitas responsabilidades morais: «Revestistes-vos
do homem novo... revesti-vos
de sentimentos de compaixão,
bondade, humildade, mansidão, paciência.»
(Cl 3,10.12)
EVANGELHO Lc 9, 18-24
O texto
articula-se em três temas. Em primeiro lugar a definição de Jesus pelas
palavras de Pedro (w. 18-20), à qual se segue o convite ao «silêncio»
(v. 21): trata-se de uma revelação a transmitir,
não como simples informação, mas como testemunho para o qual será
necessária a assistência do Espírito do Ressuscitado.
Segue-se o anúncio do destino de
sofrimento e de glória que Jesus viverá em Jerusalém (v. 22).
Termina com uma catequese sobre a sequela (w. 23-24).
Como para
compreender o misterioso «trespassado» de Zacarias o Senhor ofereceu
uma graça particular, assim também
para descobrir o mistério do «Filho do homem que tem de sofrer
muito» (cf. v. 22) é necessária uma intervenção de Jesus. Não era
fácil unir a fé no Cristo de Deus, o
Messias glorioso herdeiro das promessas de David, com o anúncio
do Seu sofrimento e rejeição da parte dos homens.
Jesus antecipa esta
revelação primeiramente na Sua oração, situação
na qual se revela melhor a Sua vida «com e pelo Pai», a Sua
identidade de Filho.
Antes de
colocar aos discípulos a pergunta acerca da Sua própria identidade,
Jesus encontra-Se de facto «sozinho a orar». (v. 18) O terceiro
evangelista associa muitas vezes à oração do
Mestre alguns momentos decisivos da
Sua vida, como a investidura do Espírito depois do Baptismo (3,21), a
escolha dos Doze (6,12), a Transfiguração (Lc 9,28-29).
Em segundo
lugar Jesus, com paciente pedagogia, começa a
explicar aos discípulos e a todos
que é na Cruz que se encontra a
chave que nos revela o Seu mistério (v. 22). Ele é, sim, o Messias
e Salvador, mas só através da oferta da Sua vida. O Senhor parece
querer guiar-nos pela mão à descoberta deste mistério, desde que
estejamos dispostos a uma conversão profunda e contínua, a
confrontar-nos com uma Palavra que se coloca como contradição e
consciência crítica dos pensamentos do nosso coração.
O convite à
sequela é dirigido a todos, mas é exigente: não basta andar com o
Mestre, é necessário entrar no Seu próprio caminho em direcção ao Pai
(w. 23-24). Isto exige a negação de nós mesmos, que não significa
abdicar da nossa própria vida, mas recebê-la como graça, sem a presunção
de dispormos dela como senhores.
Padre José
Barbosa Granja,
Reitor da Basílica dos Congregados, Braga. |