I
Queridos irmãos e irmãs
Hoje
gostaria de falar de São Boaventura de Bagnoregio. Confesso-vos que,
ao propor-vos este argumento, sinto uma certa saudade, porque volto
a pensar nas pesquisas que, como jovem estudioso, fiz precisamente
sobre este autor, que me é particularmente caro. O seu conhecimento
influiu em grande medida na minha formação. Com muita alegria,
há alguns meses, fui em peregrinação à
sua terra natal, Bagnoregio, uma pequena cidade italiana no
Lácio, que conserva com veneração a sua memória.
Tendo
nascido provavelmente em 1217 e falecido em 1274, ele viveu no
século XIII, uma época em que a fé cristã, radicada profundamente na
cultura e na sociedade da Europa, inspirou obras imperecíveis no
campo da literatura, das artes visuais, da filosofia e da teologia.
Entre as grandes figuras cristãs que contribuíram para a composição
desta harmonia entre fé e cultura sobressai precisamente Boaventura,
homem de acção e de contemplação, de profunda piedade e de prudência
no governo.
Chamava-se João de Fidanza. Um episódio que teve lugar quando ainda
era jovem marcou profundamente a sua vida, como ele mesmo narra.
Tinha sido atingido por uma grave doença e nem sequer o seu pai, que
era médico, esperava salvá-lo da morte. Então, sua mãe recorreu à
intercessão de São Francisco de Assis, que tinha sido canonizado há
pouco tempo. E João ficou curado.
A
figura do Pobrezinho de Assis tornou-se-lhe ainda mais familiar
alguns anos mais tarde, quando se encontrava em Paris, aonde tinha
ido para estudar. Obtivera o diploma de Mestre de Artes, que
poderíamos comparar com o de um Liceu prestigioso dos nossos tempos.
Nesta altura, como muitos jovens de ontem e também de hoje, João
formulou uma pergunta crucial: "O que devo fazer da minha vida?".
Fascinado pelo testemunho de fervor e de radicalidade evangélica dos
Frades Menores, que tinham chegado a Paris em 1219, João bateu à
porta do Convento franciscano daquela cidade, e pediu para ser
acolhido na grande família dos discípulos de São Francisco. Muitos
anos depois, ele explicou as razões da sua escolha: em São
Francisco e no movimento por ele iniciado, entrevia a acção de
Cristo. Assim escrevia numa carta endereçada a outro frade:
"Confesso diante de Deus que a razão que me fez amar mais a vida do
Beato Francisco é que ela se assemelha aos inícios e ao crescimento
da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores e em seguida
enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sábios; a religião do
Beato Francisco não foi estabelecida pela prudência dos homens, mas
de Cristo" (Epistula de tribus quaestionibus ad magistrum
innominatum, in Opere di San Bonaventura. Introduzione generale,
Roma 1990, pág. 29).
Portanto, por volta do ano de 1243 João vestiu o hábito franciscano
e adquiriu o nome de Boaventura. Foi imediatamente destinado aos
estudos e frequentou a Faculdade de Teologia da Universidade de
Paris, seguindo uma série de cursos muitos exigentes. Obteve os
vários títulos requeridos pela carreira académica, os de "bacharel
bíblico" e de "bacharel sentenciário". Assim Boaventura estudou a
fundo a Sagrada Escritura, as Sentenças de Pedro Lombardo, o manual
de teologia daquela época e os mais importantes autores de teologia
e, em contacto com os mestres e os estudantes que afluíam a Paris de
toda a Europa, amadureceu a sua reflexão pessoal e uma sensibilidade
espiritual de grande valor que, durante os anos seguintes, soube
transferir para as suas obras e os seus sermões, tornando-se assim
um dos teólogos mais importantes da história da Igreja. É
significativo recordar o título da tese que ele defendeu para ser
habilitado ao ensino da teologia, a licentia ubique docendi, como
então se dizia. A sua dissertação tinha como título Questões sobre o
conhecimento de Cristo. Este argumento mostra o papel central que
Cristo teve sempre na vida e no ensinamento de Boaventura. Sem
dúvida, podemos dizer que todo o seu pensamento foi profundamente
cristocêntrico.
Naqueles anos em Paris, a cidade de adopção de Boaventura,
desencadeava-se uma polémica violenta contra os Frades Menores de
São Francisco de Assis e contra os Padres Pregadores de São Domingos
de Guzman. Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade e
chegava-se até a pôr em dúvida a autenticidade da sua vida
consagrada. Certamente, as mudanças introduzidas pelas Ordens
Mendicantes no modo de entender a vida religiosa, de que falei nas
catequeses precedentes, eram tão inovativas que nem todos conseguiam
compreendê-las. Além disso acrescentavam-se, como às vezes acontece
também entre pessoas sinceramente religiosas, motivos de debilidade
humana, como a inveja e o ciúme. Embora estivesse circundado pela
oposição dos outros mestres universitários, Boaventura já tinha
começado a ensinar na cátedra de teologia dos Franciscanos e, para
responder àqueles que contestavam as Ordens Mendicantes, compôs um
escrito intitulado A perfeição evangélica. Neste escrito, ele
demonstra que as Ordens Mendicantes, de modo especial os Frades
Menores, praticando os votos de pobreza, de castidade e de
obediência, seguiam os conselhos do próprio Evangelho. Para além
destas circunstâncias históricas, o ensinamento oferecido por
Boaventura nesta sua obra e na sua vida permanece sempre actual: a
Igreja tornou-se mais luminosa e bonita pela fidelidade à vocação da
parte daqueles seus filhos e filhas que não só põem em prática os
preceitos evangélicos mas, pela graça de Deus, são chamados a
observar os seus conselhos e assim, através do seu estilo de vida
pobre, casto e obediente, são testemunho de que o Evangelho é
nascente de alegria e de perfeição.
O
conflito foi pacificado, pelo menos por um certo período e, mediante
a intervenção pessoal do Papa Alexandre IV em 1257, Boaventura foi
reconhecido oficialmente doutor e mestre da Universidade parisiense.
Todavia, ele teve que renunciar a este cargo prestigioso, porque
naquele mesmo ano o Capítulo geral da Ordem o elegeu Ministro-Geral.
Desempenhou tal encargo durante 17 anos com sabedoria e dedicação,
visitando as províncias, escrevendo aos irmãos e intervindo por
vezes com uma certa severidade para eliminar abusos. Quando
Boaventura deu início a este serviço, a Ordem dos Frades Menores
desenvolveu-se de modo prodigioso: contavam-se mais de 30.000
frades espalhados por todo o Ocidente, com presenças missionárias no
norte da África, no Médio Oriente e até em Pequim. Era necessário
consolidar esta expansão e sobretudo conferir-lhe, em plena
fidelidade ao carisma de Francisco, unidade de acção e de espírito.
Com efeito, entre os seguidores do Santo de Assis havia vários modos
de interpretar a sua mensagem e existia realmente o risco de uma
ruptura interna. Para evitar este perigo, o Capítulo geral da Ordem
em Narbona, em 1260, aceitou e rectificou um texto proposto por
Boaventura, em que se reuniam e unificavam as normas que regulavam a
vida diária dos Frades Menores. No entanto, Boaventura intuía que as
disposições legislativas, por mais que se inspirassem na sabedoria e
na moderação, não eram suficientes para garantir a comunhão do
espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos
ideais e motivações. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma
genuíno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento. Reuniu, então,
com grande zelo documentos relativos ao Pobrezinho e ouviu com
atenção as recordações daqueles que tinham conhecido Francisco
directamente. Daqui nasceu uma biografia do Santo de Assis, bem
fundamentada sob o ponto de vista histórico, intitulada Legenda
maior, redigida também de forma mais abreviada e por isso chamada
Legenda minor. Diversamente do termo italiano, esta palavra latina
não indica um fruto da fantasia, mas ao contrário "Legenda"
significa um texto autorizado, "que se deve ler" oficialmente. Com
efeito, o Capítulo geral dos Frades Menores de 1263, reunindo-se em
Pisa, reconheceu na biografia de São Boaventura o retrato mais fiel
do Fundador e deste modo ela tornou-se a biografia oficial do Santo.
Qual é
a imagem de São Francisco que sobressai do coração e da pena do seu
filho devoto e sucessor, São Boaventura? O ponto essencial:
Francisco é um alter Christus, um homem que procurou Cristo
apaixonadamente. No amor que impele à imitação, conformou-se de modo
total com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os
seguidores de Francisco. Este ideal, válido para cada cristão ontem,
hoje e sempre, foi apontado como programa também para a Igreja do
Terceiro Milénio pelo meu Predecessor, o Venerável
João Paulo II. Tal programa, escreveu na Carta
Novo millennio ineunte, está centrado "no próprio Cristo, que
deve ser conhecido, amado e imitado, para viver nele a vida
trinitária, e transformar com Ele a história até ao seu cumprimento
na Jerusalém celeste" (n. 29).
Em
1273, a vida de São Boaventura conheceu outra mudança. O Papa
Gregório x quis consagrá-lo Bispo e nomeá-lo Cardeal. Pediu-lhe
também que preparasse um importantíssimo evento eclesial: o II
Concílio Ecuménico de Lião, que tinha como finalidade o
restabelecimento da comunhão entre as Igrejas latina e grega. Ele
dedicou-se a esta tarefa com diligência, mas não conseguiu ver a
conclusão daquela assembleia ecuménica, porque faleceu durante a sua
realização. Um notário pontifício anónimo compôs um elogio de
Boaventura, que nos oferece um retrato conclusivo deste grande santo
e excelente teólogo: "Homem bom, afável, piedoso e misericordioso,
repleto de virtudes, amado por Deus e pelos homens... Com efeito,
Deus concedeu-lhe tal graça, que todos aqueles que o viam
permaneciam imbuídos de um amor que o coração não podia ocultar"
(cf. J. G. Bougerol, Bonaventura, in A. Vauchez (por), Storia dei
santi e della santità cristiana. Vol. VI. L'epoca del rinnovamento
evangelico, Milão 1991, pág. 91).
Recolhamos a herança deste Santo Doutor da Igreja, que nos recorda o
sentido da nossa vida com as seguintes palavras: "Na terra...
podemos contemplar a imensidão divina mediante o raciocínio e a
admiração; na pátria celeste, ao contrário, mediante a visão, quando
nos tornarmos semelhantes a Deus, e através do êxtase... entraremos
na alegria de Deus" (La conoscenza di Cristo, q. 6, conclusione, in
Opere di San Bonaventura. Opuscoli Teologici/1, Roma 1993, pág.
187).
II
Na
semana passada falei da vida e da
personalidade de São Boaventura de Bagnoregio. Esta manhã gostaria
de continuar a apresentação, reflectindo sobre uma parte da sua obra
literária e da sua doutrina.
Como já
disse São Boaventura, entre os vários méritos, teve o de interpretar
autêntica e fielmente a figura de São Francisco de Assis, por ele
venerado e estudado com grande amor. Em particular, na época de São
Boaventura uma corrente de Frades Menores, chamados "espirituais",
afirmava que com São Francisco fora inaugurada uma fase totalmente
nova da história, aparecera o "Evangelho eterno" de que fala o
Apocalipse, que substituía o Novo Testamento. Este grupo afirmava
que a Igreja já tinha esgotado o seu papel histórico e seria
substituída por uma comunidade carismática de homens livres guiados
interiormente pelo Espírio, isto é pelos "Franciscanos espirituais".
Na base das ideias de tal grupo havia os escritos de um abade
cisterciense, Joaquim de Fiore, falecido em 1202. Nas suas obras,
ele afirmava um ritmo trinitário da história. Considerava o Antigo
Testamento como era do Pai, seguido pelo tempo do Filho, o tempo da
Igreja. Haveria que esperar ainda a terceira era, a do Espírito
Santo. Assim, toda a história devia ser interpretada como uma
história de progresso: da severidade do Antigo Testamento à relativa
liberdade do tempo do Filho, na Igreja, até à plena liberdade dos
Filhos de Deus, no período do Espírito Santo, que enfim seria
inclusive o período da paz entre os homens, da reconciliação dos
povos e das religiões. Joaquim de Fiore suscitou a esperança de que
o início do novo tempo viria de um novo monaquismo. Assim, é
compreensível que um grupo de Franciscanos julgasse reconhecer em
São Francisco de Assis o iniciador do novo tempo e, na sua Ordem, a
comunidade da nova época a comunidade do tempo do Espírito Santo,
que deixava atrás de si a Igreja hierárquica, para começar a nova
Igreja do Espírito, desligada das velhas estruturas.
Portanto, havia o risco de um gravíssimo mal-entendido da mensagem
de São Francisco, da sua fidelidade humilde ao Evangelho e à Igreja,
e tal equívoco incluía uma visão errónea do Cristianismo no seu
conjunto.
São
Boaventura, que em 1257 se tornou Ministro-Geral da Ordem
Franciscana, encontrou-se diante de uma grave tensão no interior da
sua própria Ordem precisamente por causa de quem defendia a
mencionada corrente dos "Franciscanos espirituais", que se inspirava
em Joaquim de Fiore. Exactamente para responder a este grupo e dar
nova unidade à Ordem, São Boaventura estudou com atenção os escritos
autênticos de Joaquim de Fiore e os que lhe eram atribuídos e, tendo
em consideração a necessidade de apresentar correctamente a figura e
a mensagem do seu amado São Francisco, quis expor uma justa visão da
teologia da história. São Boaventura enfrentou o problema na sua
última obra, uma colectânea de conferências aos monges do estúdio
parisiense, que ficou incompleta e chegou até nós através das
transcrições dos auditores, intitulada Hexaëmeron, isto é uma
explicação alegórica dos seis dias da criação. Os Padres da Igreja
consideravam os seis ou sete dias da narração sobre a criação como
profecia da história do mundo, da humanidade. Os sete dias
representavam para eles sete períodos da história, mais tarde
interpretados também como sete milénios. Com Cristo teríamos entrado
no último, ou seja no sexto período da história, ao qual depois se
seguiria o grande sábado de Deus. São Boaventura supõe esta
interpretação histórica do relatório dos dias da criação, mas de um
modo muito livre e inovativo. Para ele, dois fenómenos do seu tempo
tornam necessária uma nova interpretação do curso da história.
O
primeiro: a figura de São Francisco, homem totalmente unido a Cristo
até à comunhão dos estigmas, quase um alter Christus, e com
São Francisco a nova comunidade por ele criada, diferente do
monaquismo até agora conhecido. Este fenómeno exigia uma nova
interpretação, como novidade de Deus que surgiu nesse momento.
O
segundo: a posição de Joaquim de Fiore, que anunciava um novo
monaquismo e um período totalmente novo da história, indo além da
revelação do Novo Testamento exigia uma resposta.
Como
Ministro-Geral da Ordem dos Franciscanos, São Boaventura viu logo
que com a concepção espiritualista inspirada por Joaquim de Fiore, a
Ordem não era governável, mas caminhava logicamente rumo à anarquia.
Para ele, havia duas consequências:
A
primeira: a necessária prática de estruturas e de inserção na
realidade da Igreja hierárquica, da Igreja real, tinha necessidade
de um fundamento teológico, também porque os outros, aqueles que
seguiam a concepção espiritualista, mostravam um aparente fundamento
teológico.
A
segunda: mesmo tendo em consideração o realismo necessário, não se
podia perder a novidade da figura de São Francisco.
Como
respondeu São Boaventura à exigência prática e teórica? Da sua
resposta posso dar aqui só um resumo muito esquemático e incompleto,
em alguns pontos:
1. São
Boaventura rejeita a ideia do ritmo trinitário da história. Deus é
um para toda a história e não se divide em três divindades.
Portanto, a história é uma só, embora seja um caminho e – segundo
São Boaventura – um caminho de progresso.
2.
Jesus Cristo é a última palavra de Deus – nele Deus disse tudo,
doando-se e proclamando-se a si mesmo. Mais do que Ele mesmo, Deus
não pode dizer, nem doar. O Espírito Santo é Espírito do Pai e do
Filho. O próprio Cristo diz do Espírito Santo: "...ensinar-vos-á
tudo o que vos tenho dito" (Jo 14, 26), "receberá do que é
meu para vo-lo anunciar" (Jo 16, 15). Portanto, não existe
outro Evangelho mais excelso, não há outra Igreja a esperar. Por
isso, até a Ordem de São Francisco deve inserir-se nesta Igreja, na
sua fé, no seu ordenamento hierárquico.
3. Isto
não significa que a Igreja é imóvel, fixa no passado, e que nela não
possa haver novidade. "Opera Christi non deficiunt, sed
proficiunt", as obras de Cristo não regridem, não vêm a faltar,
mas progridem, diz o Santo na Carta De tribus quaestionibus.
Assim São Boaventura formula explicitamente a ideia de progresso, e
esta é uma novidade em relação aos Padres da Igreja e a uma grande
parte dos seus contemporâneos. Para São Boaventura Cristo não é
mais, como era para os Padres da Igreja, o fim, mas o centro da
história; com Cristo, a história não termina, mas começa um novo
período. Outra consequência é a seguinte: até àquele momento
predominava a ideia de que os Padres da Igreja fossem o ápice
absoluto da teologia, e que todas as gerações seguintes só pudessem
ser suas discípulas. Até São Boaventura reconhece os Padres como
mestres para sempre, mas o fenómeno de São Francisco dá-lhe a
certeza de que a riqueza dapalavradeCristoé inesgotável e que até
nas novas gerações podem despontar novas luzes. A unicidade de
Cristo garante também novidade e renovação em todos os períodos da
história.
Sem
dúvida, a Ordem franciscana – assim sublinha – pertence à Igreja de
Jesus Cristo, à Igreja Apostólica, e não pode construir-se num
espiritualismo utópico. Mas ao mesmo tempo é válida anovidadedetal
Ordem em relação ao monaquismo clássico, e São Boaventura – como eu
disse na catequese precedente – defendeu esta novidade contra os
ataques do Clero secular de Paris: os Franciscanos não têm um
mosteiro fixo e podem estar presentes em toda a parte para anunciar
o Evangelho. Precisamente a ruptura com a estabilidade,
característica do monaquismo, a favor de uma nova flexibilidade,
restituiu à Igreja o dinamismo missionário.
Nesta
altura, talvez seja útil dizer que até hoje existem visões segundo
as quais toda a história da Igreja no segundo milénio teria sido um
declínio permanente; alguns vêem o declínio já imediatamente após o
Novo Testamento. Na realidade, "Opera Christi non deficiunt, sed
proficiunt", as obras de Cristo não regridem mas progridem. O
que seria a Igreja, sem a nova espiritualidade dos Cistercienses,
dos Franciscanos e Dominicanos, da espiritualidade de Santa Teresa
de Ávila e de São João da Cruz, e assim por diante? Até hoje é
válida esta afirmação: "Opera Christi non deficiunt, sed
proficiunt", progridem. São Boaventura ensina-nos o conjunto do
discernimento necessário, mesmo severo, do realismo sóbrio e da
abertura a novos carismas doados por Cristo no Espírito Santo, à sua
Igreja. E enquanto se repete esta ideia do declínio, há também outra
ideia, o "utopismo espiritualista" que se repete. Com efeito,
sabemos que depois do
Concílio Vaticano II alguns estavam convictos de que tudo era
novo, como se houvesse outra Igreja, que a Igreja pré-conciliar
tivesse terminado e teríamos tido outra, totalmente "outra". Um
utopismo anárquico! E graças a Deus os timoneiros sábios da barca de
Pedro, Papa Paulo VI e Papa João Paulo II, por um lado defenderam a
novidade do Concílio e por outro, ao mesmo tempo, defenderam a
unicidade e a continuidade da Igreja, que é sempre Igreja de
pecadores e sempre lugar de Graça.
4.
Neste sentido São Boaventura, como Ministro-Geral dos Franciscanos,
assumiu uma linha de governo em que era bem claro que a nova Ordem
não podia, como comunidade, viver à mesma "altura escatológica" de
São Francisco, em quem ele vê antecipado o mundo futuro, mas –
guiado ao mesmo tempo por um realismo sadio e pela coragem
espiritual – tinha que se aproximar o mais possível da máxima
realização do Sermão da Montanha, que para São Francisco foi a
regra, mesmo tendo em consideração os limites do homem, marcado
pelo pecado original.
Vemos
assim que para São Boaventura governar não era simplesmente agir,
mas era sobretudo pensar e rezar. Na base do seu governo encontramos
sempre a oração e o pensamento; todas as suas decisões derivam da
reflexão, do pensamento iluminado pela oração. O seu contacto íntimo
com Cristo acompanhou sempre o seu trabalho de Ministro-Geral e por
isso ele compôs uma série de escritos teológico-místicos, que
expressam a alma do seu governo e manifestam a intenção de orientar
interiormente a Ordem, isto é de governar não só mediante mandatos e
estruturas, mas guiando e iluminando as almas, orientando para
Cristo.
Destes
seus escritos, que são a alma do seu governo e mostram o caminho a
percorrer, tanto ao indivíduo como à comunidade, gostaria de
mencionar um só, sua obra-prima, o Itinerarium mentis in Deum,
que é um "manual" de contemplação mística. Este livro foi
concebido num lugar de profunda espiritualidade: o monte La Verna,
onde São Francisco tinha recebido os estigmas. Na introdução, o
autor explica as circunstâncias que deram origem a este seu escrito:
"Enquanto eu meditava sobre as possibilidades da alma se elevar a
Deus, apresentou-se-me entre outros aquele acontecimento admirável
ocorrido naquele lugar com o bem-aventurado Francisco, ou seja a
visão do Serafim alado em forma de Crucifixo. E meditando sobre
isto, dei-me conta imediatamente de que tal visão me oferecia o
êxtase contemplativo do próprio pai Francisco e ao mesmo tempo o
caminho que a ele conduz" (Itinerário da mente em Deus,
Prólogo, 2 em Obras de São Boaventura. Opúsculos Teológicos/1,
Roma 1993, pág. 499).
Assim,
as seis asas do Serafim tornam-se o símbolo de seis etapas que
conduzem progressivamente o homem ao conhecimento de Deus através da
observação do mundo e das criaturas e através da exploração da
própria alma com as suas faculdades, até à união total com a
Trindade por meio de Cristo, à imitação de São Francisco de Assis.
As últimas palavras do Itinerarium de São Boaventura, que
respondem à pergunta sobre o modo como se pode alcançar esta
comunhão mística com Deus, deviam fazer alcançar o fundo do coração:
"Se agora desejas saber como acontece isto (a comunhão mística com
Deus), interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto;
o gemido da oração, não o estudo da letra; o esposo, não o mestre;
Deus, não o homem; as trevas, não a clareza; não a luz, mas o fogo
que tudo inflama e transporta em Deus, com as fortes unções e os
afectos ardentíssimos... Portanto, entremos nas trevas, silenciemos
os anseios, as paixões e os fantasmas; passemos com Cristo
Crucificado deste mundo para o Pai para, depois de o ter visto,
dizermos com Filipe: basta-me isto" (Ibid., VII, 6).
Queridos amigos, aceitemos o convite que nos é dirigido por São
Boaventura, o Doutor Seráfico, e coloquemo-nos na escola do Mestre
divino: ouçamos a sua Palavra de vida e de verdade, que ressoa no
íntimo da nossa alma. Purifiquemos os nossos pensamentos e as nossas
acções, a fim de que Ele possa habitar em nós, e nós possamos ouvir
a sua Voz divina, que nos atrai para a verdadeira felicidade.
III
Esta
manhã, continuando a reflexão de quarta-feira passada, gostaria de
aprofundar convosco outros aspectos da doutrina de São Boaventura de
Bagnoregio. Ele é um teólogo eminente, que merece ser posto ao lado
de outro grandíssimo pensador, seu contemporâneo, São Tomás de
Aquino. Ambos perscrutaram os mistérios da Revelação, valorizando os
recursos da razão humana, naquele diálogo fecundo entre fé e razão
que caracteriza a Idade Média cristã, fazendo dela uma época de
grande vivacidade intelectual, e também de fé e de renovação
eclesial, muitas vezes não suficientemente evidenciada. Eles são
irmanados por outras analogias: tanto Boaventura, franciscano, como
Tomás, dominicano, pertenciam às Ordens Mendicantes que, com o seu
vigor espiritual, como recordei em catequeses precedentes, renovaram
no século XIII a Igreja inteira e atraíram muitos seguidores. Ambos
serviram a Igreja com diligência, com paixão e com amor, a ponto de
terem sido convidados a participar no Concílio Ecuménico de Lião em
1274, o mesmo ano em que vieram a falecer: Tomás, enquanto ia a
Lião, Boaventura durante a realização do mesmo Concílio. Também na
Praça de São Pedro as imagens dos dois Santos são paralelas,
colocadas precisamente no início da Colunata, a partir da fachada da
Basílica Vaticana: uma na Ala da esquerda, e a outra na Ala da
direita. Não obstante todos estes aspectos, podemos ver nos dois
grandes Santos duas abordagens diversas da pesquisa filosófica e
teológica, que mostram a originalidade e a profundidade de
pensamento de um e do outro. Gostaria de mencionar algumas destas
diferenças.
Uma
primeira diferença diz respeito ao conceito de teologia. Ambos os
doutores perguntam se a teologia é uma ciência prática ou uma
ciência teórica, especulativa. São Tomás reflecte sobre duas
possíveis respostas contrastantes. A primeira diz: a teologia é
reflexão sobre a fé, e a finalidade da fé é que homem se torne bom,
viva segundo a vontade de Deus. Portanto, a finalidade da teologia
deveria ser a de guiar pelo caminho recto, bom; por conseguinte, no
fundo, ela é uma ciência prática. A outra posição diz: a teologia
procura conhecer Deus. Nós somos obra de Deus; Deus está acima do
nosso agir. Deus realiza em nós o agir justo. Por conseguinte,
trata-se substancialmente não do nosso fazer, mas de conhecer Deus,
não do nosso agir. A conclusão de São Tomás é: a teologia implica
ambos os aspectos: é teórica, procura conhecer Deus cada vez mais,
e é prática: procura orientar a nossa vida para o bem. Mas há um
primado do conhecimento: sobretudo, temos que conhecer Deus, depois
vem o agir segundo Deus (cf. Summa Theologiae, ia, q. 1, art.
4). Este primado do conhecimento em relação à prática é
significativo para a orientação fundamental de São Tomás.
A
resposta de São Boaventura é muito semelhante, mas os matizes são
diferentes. São Boaventura conhece os mesmos argumentos em ambas as
direcções, como São Tomás, mas para responder à pergunta se a
teologia é uma ciência prática ou teórica, São Boaventura faz uma
distinção tríplice – portanto, amplia a alternativa entre teórico
(primado do conhecimento) e prático (primado da prática),
acrescentando uma terceira atitude, que chama "sapiencial" e
afirmando que a sabedoria abrange ambos os aspectos. E depois,
continua: a sabedoria procura a contemplação (como a mais elevada
forma do conhecimento) e tem como intenção "ut boni fiamus" –
que nos tornemos bons, sobretudo isto: tornar-nos bons (cf.
Breviloquium, Prologus, 5). Depois, acrescenta: "A fé está no
intelecto, de tal modo que provoca o afecto. Por exemplo: saber que
Cristo morreu "por nós" não permanece conhecimento, mas torna-se
necessariamente afecto, amor" (Proemium in I Sent., q. 3).
A sua
defesa da teologia, ou seja, da reflexão racional e metódica da fé,
move-se na mesma linha. São Boaventura enumera alguns argumentos
contra a prática da teologia, talvez difundidos também entre alguns
dos frades franciscanos e presentes inclusive no nosso tempo: a
razão esvaziaria a fé, seria uma atitude violenta em relação à
palavra de Deus, temos que ouvir e não analisar a palavra de Deus
(cf. Carta de São Francisco de Assis a Santo António de Pádua).
A estes argumentos contra a teologia, que demonstram os perigos
existentes na própria teologia, o Santo responde: é verdade que
existe um modo arrogante de fazer teologia, uma soberba da razão,
que se põe acima da palavra de Deus. Mas a verdadeira teologia, o
trabalho racional da teologia verdadeira e boa tem outra origem, não
a soberba da razão. Quem ama quer conhecer cada vez melhor e sempre
mais o amado; a verdadeira teologia não empenha a razão e sua busca
motivada pela soberba, "sed propter amorem eius cui assentit" –
"motivada pelo amor daquele, a quem deu o seu consentimento" (Proemium
in I Sent., q. 2), e que conhecer melhor o amado: esta é a
intenção fundamental da teologia. Portanto, no final para São
Boaventura é determinante o primado do amor.
Por
conseguinte, São Tomás e São Boaventura definem de modo diferente o
destino último do homem, a sua plena felicidade: para São Tomás o
fim supremo ao qual se dirige nosso desejo é: ver Deus. Neste
simples gesto de ver Deus todos os problemas encontram solução:
estamos felizes, nada mais é necessário.
Para
São Boaventura, o destino último do homem é outro: amar Deus, o
encontrar-se e o unir-se do seu e do nosso amor. Esta é para ele a
definição mais adequada da nossa felicidade.
Nesta
linha, poderíamos dizer também que para São Tomás a categoria mais
elevada é a verdade, enquanto para São Boaventura é o bem. Seria
errado ver nestas duas respostas uma contradição. Para ambos, a
verdade é também o bem, e o bem é também a verdade; ver Deus é amar,
e amar é ver. Portanto, trata-se de aspectos diferentes de uma visão
fundamentalmente comum. Ambos os aspectos formaram diferentes
tradições e diversas espiritualidades, e assim mostraram a
fecundidade da fé, uma só na diversidade das suas expressões.
Voltemos a São Boaventura. É evidente que o aspecto específico da
sua teologia, do qual só dei um exemplo, se explica a partir do
carisma franciscano: o Pobrezinho de Assis, para além dos debates
intelectuais do seu tempo, tinha mostrado com toda a sua vida o
primado do amor; era um ícone vivo e apaixonado de Cristo e assim,
na sua época, tornou presente a figura do Senhor não convenceu os
seus contemporâneos com as palavras, mas com a sua vida. Em todas as
obras de São Boaventura, precisamente também as obras científicas,
escolares, vê-se e encontra-se esta inspiração franciscana; ou seja,
observa-se que ele pensa a partir do encontro com o Pobrezinho de
Assis. No entanto, para compreender a elaboração concreta do tema
"primado do amor", temos que ter presente mais uma fonte: os
escritos do chamado Pseudodionísio, um teólogo sírio do século VI,
que se escondeu sob o pseudónimo de Dionísio, o Areopagita,
referindo-se com este nome a uma figura dos Actos dos Apóstolos (cf.
17, 34). Este teólogo tinha criado uma teologia litúrgica e uma
teologia mística, e falara amplamente das diversas ordens dos anjos.
Os seus escritos foram traduzidos em latim no século IX; na época de
São Boaventura – estamos no século XIII – surgia uma nova tradição,
que despertou o interesse do Santo e dos outros teólogos do seu
século. Duas coisas chamavam a atenção de São Boaventura de modo
particular:
1. O
Pseudodionísio fala de nove ordens dos anjos, cujos nomes tinha
encontrado na Escritura e depois disposto à sua maneira, desde os
anjos simples até aos serafins. São Boaventura interpreta estas
ordens dos anjos como degraus na aproximação da criatura a Deus.
Assim eles podem representar o caminho humano, a elevação rumo à
comunhão com Deus. Para São Boaventura não há qualquer dúvida: São
Francisco de Assis pertencia à ordem seráfica, à ordem suprema, ao
coro dos serafins, ou seja: era puro fogo de amor. E assim deveriam
ser os franciscanos. Mas São Boaventura sabia bem que este último
grau de aproximação a Deus não pode ser inserido num ordenamento
jurídico, mas é sempre um dom particular de Deus. Por isso, a
estrutura da Ordem franciscana é mais modesta, mais realista, porém
deve ajudar os membros a aproximar-se cada vez mais de uma
existência seráfica de amor puro. Na quarta-feira passada, falei
sobre esta síntese entre realismo sóbrio e radicalidade evangélica
no pensamento e no agir de São Boaventura.
2.
Contudo, São Boaventura encontrou nos escritos do Pseudodionísio
outro elemento, para ele ainda mais importante. Enquanto para Santo
Agostinho o intellectus, o ver com a razão e o coração, é a
última categoria do conhecimento, o Pseudodionísio dá mais um
passo: na escalada rumo a Deus pode-se chegar a um ponto em que a
razão já não vê. Mas na noite do intelecto, o amor ainda vê – vê
aquilo que permanece inacessível à razão. O amor estende-se além da
razão, vê mais, entra mais profundamente no mistério de Deus. São
Boaventura sentia-a fascinado por esta visão, que se encontrava com
a sua espiritualidade franciscana. Precisamente na noite obscura da
Cruz aparece toda a grandeza do amor divino; onde a razão já não vê,
o amor vê. As palavras conclusivas do seu "Itinerário da mente em
Deus", a uma leitura superficial podem parecer como expressão
exagerada de uma devoção sem conteúdo; por outro lado, lidas à luz
da teologia da Cruz de São Boaventura, elas são uma expressão
límpida e realista da espiritualidade franciscana: "Se agora
desejas saber como isto acontece (ou seja, a escalada para Deus),
interroga a graça, não a doutrina; o desejo, não o intelecto; o
gemido da oração, não o estudo da letra; ...não a luz, mas o fogo,
que tudo inflama e transporta em Deus" (VII, 6). Tudo isto não é
anti-intelectual e não é anti-racional: supõe o caminho da razão,
mas transcende-o no amor de Cristo crucificado. Com esta
transformação da mística do Pseudodionísio, São Boaventura coloca-se
nos primórdios de uma corrente mística, que elevou e purificou em
grande medida a mente humana: é um ápice na história do espírito
humano.
Esta
teologia da Cruz, nascida do encontro entre a teologia do
Pseudodionísio e a espiritualidade franciscana, não nos deve fazer
esquecer que São Boaventura compartilha com São Francisco de Assis
também o amor pela criação, a alegria pela beleza da criação de
Deus. Cito nesta altura uma frase do primeiro capítulo do
"Itinerário": "Quem... não vê os inúmeros esplendores das
criaturas, é cego; aquele que não desperta com tantas vezes, é
surdo; quem não louva a Deus por todas estas maravilhas, é mudo;
aquele que de tantos sinais não se eleva ao primeiro princípio, é
estulto" (I, 15). Toda a criação fala em voz alta de Deus, do Deus
bom e belo, do seu amor.
Portanto, toda a nossa vida é para São Boaventura um "itinerário",
uma peregrinação – uma escalada rumo a Deus. Mas só com as nossas
forças, não podemos elevar-nos à altura de Deus. O próprio Deus deve
ajudar-nos, deve "puxar-nos" para o alto. Por isso, é necessária a
oração. A oração – como diz o Santo – é a mãe e a origem da elevação
– "sursum actio", acção que nos leva para o alto – diz
Boaventura. Por isso, concluo com a prece, com a qual ele começa o
seu "Itinerário": "Portanto, oremos e digamos ao nosso Senhor
Deus: "Conduza-me, Senhor, pela tua via, e eu caminharei na tua
verdade. Alegre-se o meu coração no temor do teu nome"" (I, 1).
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