Sofrer, amar e reparar
« Viva Jesus !
Balasar, 28 de
Novembro de 1933
Senhor Padre
Pinho :
Não pude passar
de hoje sem lhe escrever alguma coisa de mim, e ao mesmo tempo procurar saber
que tal foi o regresso de Balasar para Braga. Chegou bem ? Ainda não tinha a
porta fechada ? Não lhe fez mal o jantar que estaria pouco a jeito da saúde de
Vossa Reverência ? Sempre o receio que por minha causa se lhe agravem os
sofrimentos e, de sábado para o domingo deu-me pela cabeça, não sei explicar o
quê. Estava a dormir e fez-me acordar ; parece que deixo de viver. Dura pouco
tempo, mas repete-me várias vezes. Penso ser resultado da espinha. Eu muito não
queria vir a perder o juízo ; espero que Nosso Senhor me há-de atender, mas seja
feita a sua santíssima Vontade.
Senhor Padre
Pinho, são passados nove dias que aqui veio. Oh ! como fiquei com saudades ! Já
me tem feito pensar se seria a última vez que nos vimos, mas não seria, porque
Nosso Senhor, que tudo conhece, sabe bem a necessidade que tenho de o ver mais
vezes, para me ajudar a ser o que tanto desejo, que era ser santa, e conheço que
estou bem longe de o ser.
Agora pedia a
Vossa Reverência para, na próxima ocasião que possa, não se esquecer de me fazer
o grande favor de mandar o santinho que lhe pedi.
Esqueci-me de
perguntar se podia escrever nas minhas cartas — como nas de Vossa
Reverência — “Viva Jesus”, mas mesmo sem perguntar, desta vez sempre vai. Mesmo
um ceguinho precisa que o guie ; pois a mim assim me aconteceu. Agora para esta
escrevente não é mais nada ; ela envia-lhe muitas lembranças, assim como a minha
mãe.
(Agora escreve a
Alexandrina) : Senhor Padre Pinho, desta vez não assino só o nome. É pouco,
porque não posso, mas queria-lhe pedir explicação destas palavras que lhe vou
dizer, porque não me lembrei quando me perguntava o que Nosso Senhor me dizia.
Muitas vezes me lembro de dizer assim :
― “Ó meu Jesus,
que quereis que eu faça ?”
E sempre que
digo isto, não ouço senão estas palavras :
“Sofrer, amar
e reparar”. Creio que me entende.
Faça a grande
caridade de abençoar esta grande pecadora
Alexandrina
Maria da Costa ».
“Não pude passar
de hoje sem lhe dizer alguma coisa de mim e, ao mesmo tempo, procurar saber que
tal foi o regresso de Balasar para Braga.”
Daqui se conclui,
sem dificuldade, que o Padre Mariano Pinho visitou a Alexandrina e que nessa
ocasião ele vivia em Braga. Também na mesma carta está dito que “são passados
nove dias que aqui veio”, o que nos permite saber que ele esteve em Balasar
no Domingo, dia 19 do mês de Novembro de 1933.
Desta passagem por
Balasar temos notícia quase certa, como o afirma o Professor José Ferreira em
artigo escrito para o Sítio oficial da Alexandrina de Balasar :
« Nos dias 16,
17 e 18 de Novembro de 1933, o Padre Mariano Pinho foi pregar a Outiz, Vila Nova
de Famalicão. Disso nos informa o jornal poveiro Ideia Nova de 18/11/1933.
Veja-se a notícia :
“Dr. Mariano
Pinho
De passagem para
Outiz, do concelho de Famalicão, onde foi pregar nos dias de quinta, sexta-feira
e hoje, esteve nesta vila o Rev.º Dr. Mariano Pinho, ilustrado e sábio professor
do Colégio de Nuno Álvares, das Caldas da Saúde.
Cumprimentamos o
Rev.º Mariano Pinho, que na Póvoa conta muitas e imensas simpatias” ».
No mesmo artigo, um
pouco mais adiante, o mesmo autor é categórico :
« O Padre
Mariano Pinho começara a dirigir a Beata Alexandrina em Agosto último. Como
Outiz é próximo de Balasar, fácil é alvitrar que visitaria a sua dirigida. E
visitou » .
Estas informações
dadas, continuemos o nosso comentário :
Não para encher
papel, mas por verdadeira e santa preocupação, ela quer saber como se passou a
viagem de regresso e sobretudo se a porta ainda estava aberta à hora que ele
chegou, visto que os Jesuítas estavam submetidos a regras próprias, quase
drásticas.
A solicitude da
Alexandrina vai ainda mais longe: ela espera que a refeição tomada em sua casa
não só lhe tenha agradado, mais também que não tenha sido motivo de agravamento
das enxaquecas de que sofria o bom Padre.
Estas preocupações
que chamaremos muito “terra à terra”, estarão presentes em quase todas as
cartas : Alexandrina preocupava-se muito e sinceramente do bem-estar de todos
aqueles que a rodeavam, e muito particularmente daqueles que de uma maneira ou
de outra a ajudam a levar a cruz que é desde já bastante pesada.
Depois disto, ela
conta os seus próprios males e termina com uma frase que se encontra igualmente
em muitas das suas cartas : “espero que Nosso Senhor me há-de atender, mas
seja feita a sua Santíssima Vontade”. A aceitação contínua e indefectível da
vontade de Deus será sempre uma das características da vida interior da
Alexandrina.
Depois desta
aceitação, a súplica e o desejo sincero de que “Nosso Senhor, que tudo
conhece, sabe bem a necessidade que tenho de o ver mais vezes, para me ajudar a
ser o que tanto desejo, que era ser santa e conheço que estou bem longe de o ser”.
Alexandrina quer
ser santa, mas reconhece que está longe de o ser. Ela sabe igualmente
que para atingir essa meta, precisa de ajuda e da ajuda do bom Padre Pinho. Uma
vez mais, note-se aqui a aceitação da vontade de Deus : “Nosso Senhor, que
tudo conhece, sabe bem...” Por isso mesmo, ela deseja ardentemente que Nosso
Senhor ouça a sua prece e permita ao bom Padre de a visitar “mais vezes”.
É esta, podemos supor, uma das condições — segundo ela — necessárias para poder
vir “a ser o que tanto desejo, que era ser santa”. Mas a sua fé é
inquebrantável e a sua confiança inteira no Senhor, visto que Ele “tudo
conhece, sabe bem a necessidade que tenho”.
Se “Nosso Senhor
sabe bem” “que mesmo um ceguinho precisa de quem o guie”, porque não
ter confiança na divina Vontade ?
Alexandrina confia
e, “espera contra toda esperança”, que a vontade de Deus se realizará
nela e, ela está desde já convicta que ajudada pelo bom sacerdote que o Senhor
lhe enviou, ela poderá vencer as dificuldades e as asperezas do caminho que
resolutamente decidiu percorrer.
Nesta a Alexandrina
diz : « desta vez não assino só o nome », o que até aí acontecia, visto
que tinha enormes dificuldades em segurar a caneta entre os dedos ; era portanto
sua irmã Deolinda que escrevia as cartas que a Alexandrina ditava, o que se lê
logo a seguir, visto que esta escreve : « Agora para esta escrevente não é
mais nada. Ela envia-lhe muitas lembranças, assim como a minha mãe ».
Mas porque razão
“desta vez ela não assina só o seu nome” ?
Porque, de repente,
algo surge na mente da Alexandrina, algo que ela não tinha ainda dito ao bom
Padre e que a preocupa particularmente, por isso diz ela, que agora escreve ; e
aquilo que vai escrever ainda faz parte, por enquanto, do seu “jardim secreto”,
Deolinda não está ao corrente :
« Queria
pedir-lhe a explicação destas palavras que lhe vou dizer, porque não me lembrei
quando me perguntava o que Nosso Senhor me dizia. Muitas vezes me lembro de
dizer assim : Ó meu Jesus que quereis que eu faça ? E sempre que digo isto não
ouço senão estas palavras : Sofrer, amar e reparar. Creio que me
entende ».
Alexandrina
lembrou-se, ao terminar a carta, que o Padre Mariano Pinho lhe tinha perguntado
“o que Nosso Senhor lhe dizia”. Portanto pergunta feita pessoalmente ou
por escrito — nós não conhecemos por enquanto o conteúdo das cartas enviadas
pelo santo Jesuíta à Alexandrina — e que ela esquecera de esclarecer. E estas
linhas são escritas por ela e não por Deolinda, a sua “secretária”, como
ela a chamará diversas vezes, falando de sua irmã.
Alexandrina vai
escrever “o que Nosso Senhor lhe dizia”, mas não se contenta com o facto
de dizer, ela deseja que o Director espiritual lhe explique o que significam
essas mesmas palavras.
Antes de propor as
três palavras que irão ser seu lema para toda a vida, ela explica em que
ocasiões ela as ouve :
“Muitas vezes me
lembro de dizer assim : Ó meu Jesus que quereis que eu faça?”
“Muitas vezes”!
Isto significa que frequentemente Alexandrina se oferecia a Nosso Senhor como
vítima pelos pecadores. Lembremos o que na “Autobiografia” podemos ler :
« Sem saber
como, ofereci-me a Nosso Senhor como vítima, e vinha, desde há muito tempo, a
pedir o amor ao sofrimento. Nosso Senhor concedeu-me tanto, tanto esta graça que
hoje não trocaria a dor por tudo quanto há no mundo. Com este amor à dor, toda
me consolava em oferecer a Jesus todos os meus sofrimentos. A consolação de
Jesus e a salvação das almas era o que mais me preocupava ».
Depois de lermos
esta “oferta”, compreenderemos melhor a pergunta que, “muitas vezes”,
Alexandrina dirigia a Nosso Senhor : “Ó meu Jesus que quereis que eu faça”,
porque “a consolação de Jesus e a salvação das era o que mais me
preocupava” ?
“E sempre que
digo isto — explica “a Doentinha de Balasar” — não ouço senão estas
palavras : Sofrer, amar e reparar”.
“Sofrer”
pelos pecadores ; “amar” por aqueles que não amam e “reparar” as
ofensas que os mesmos peca-dores causam quotidianamente ao Redentor. Estava assim
traçado, em três palavras, o caminho que Alexandrina iria enveredar pela vida
fora até à morte.
Será isto
surpreendente ? Não, quando se sabe que a oferta feita a Nosso Senhor incluía já
este estado de espírito, pois ela mesma o diz : “Ofereci-me a Nosso Senhor
como vítima, e vinha, desde há muito tempo, a pedir o amor ao sofrimento”.
Se ela se ofereceu
“como vítima” “e vinha pedindo há muito o amor ao sofrimento”,
estas palavras não podem surpreender, mas sim confirmar a aceitação, da parte de
Nosso Senhor de uma tal oferta simples e voluntária, como vítima “para expiar
os pecados do mundo”, como a Vítima por excelência, Jesus Cristo nosso
Salvador.
Alexandrina, tal
como São Paulo, nada mais faz do que “completar no seu corpo aquilo que
faltou à Paixão do Senhor” ; ou, como ele afirmar ainda : “longe
esteja de mim gloriar-me , a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, pela
qual o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” .
Sofrer, amar,
reparar...
Seria que a
Alexandrina fosse masoquista ao ponto de desejar sofrer pelo “prazer” de
sofrer e de dar que falar ?
Pensar assim seria
“heresia”, seria ignorar a liberdade de cada ser humano. Deus não obriga ninguém
a so-frer, porque “Deus é amor” e não deseja o nosso mal, antes pelo
contrário, deseja para cada um de nós o melhor que existe e esse “melhor que
existe” é o Paraíso onde cada um de nós tem o seu lugar marcado.
Mas então, porque
razão pediu Nosso Senhor à Alexandrina para sofrer ?
Não esquecer que
essa proposição foi feita à Alexandrina porque ela “vinha, desde há muito
tempo, a pedir o amor ao sofrimento” e por que ela se ofereceu a “Nosso
Senhor como vítima”.
A proposta de Jesus
nada mais foi do que a confirmação, como já dito, da aceitação da oferta
voluntária e total da alma e do corpo feita diversas vezes por Alexandrina,
“sem bem saber como”.
Esta oferta
ter-lhe-á parecido normal porque, como ela mesma o explica na Autobiografia,
“ com o amor que tinha à oração — porque só a orar me sentia bem — habituei-me
a viver em união íntima com Nosso Senhor”.
Esta união era uma
união de amor, uma união transcendente e forte ao ponto de a não fazer temer
qualquer sofrimento, desde que este servisse para procurar a maior glória de
Deus e o bem das almas.
Amar... “Amar a
Deus sobre todos as coisas e o próximo como a nós mesmos”.
E Alexandrina foi
exímia a cumprir e a pôr em prática estes dois e mais importantes mandamentos da
Lei de Deus. Ela amou a Deus ao ponto de a Ele se consagrar, de a Ele se
oferecer totalmente aceitando livremente o seu bom querer. Ela amou igualmente o
próximo sincera et ardentemente ; não só aqueles “próximos” que lhe queriam bem,
que a amavam igualmente, mas também aqueles que diziam mal dela, que a tratavam
de feiticeira, de bruxa, de quantos nomes havia, aqueles que eram seus inimigos.
Esta carta termina
com um pedido, pedido esse que aparecerá sempre em todas as outras :
“Fará a grande
caridade de abençoar esta grande pecadora”.
Segue a assinatura
da Alexandrina.
Qual terá sido a
reacção do Padre Mariano Pinho ao ler uma carta deste teor, uma carta onde
brotava já o sobrenatural ?
O Professor José
Ferreira dá-nos no artigo já citado um começo de explicação que nos parece
bastante judicioso. Ele escreve :
« Para o Padre
Pinho, que viera havia quatro anos de Paray-le-Monial, isto deveria ser uma
revelação : a sua dirigida acabava de ser colocada na esteira de Santa Margarida
Maria Alacoque. Isso iria confirmar-se dois anos e meio à frente, aquando do
primeiro pedido para a Consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria » .
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