FEVEREIRO
1 de Fevereiro de
1947. - Primeiro sábado
Passei
a noite em grande sofrimento e em grandes ânsias. O meu corpo era um
montão de cinzas, desfeito pela dor, e o coração sentia
horrivelmente o cortar fino e contínuo de fios de espadas. Ao mesmo
tempo queria desprender-se e voar para o alto, para Jesus, mas não
podia; estava encarcerado em negra prisão. Senta-o cansado e
desfalecido com tanto sofrer. Abraçada ao meu crucifixo e à Mãezinha
querida, não cessava de pedir-lhes amor. As dores eram quase
insuportáveis, mas as ânsias de amor iam mais longe, muito mais
longe ainda. E nesta angústia não perdia a minha união com Deus; ia
murmurando sempre: meu Jesus, lanço-me nos Vossos divinos braços,
prendo-Vos para não mais Vos deixar nem desistir de Vos pedir amor;
ainda que, por cada vez que vo-lo pedisse, me repelísseis e me
batêsseis, não Vos deixaria, nem me calaria, mas sim com mais
coragem ainda dobraria o meu brado: Jesus, sou a vossa vítima. Foram
estes os meus entretimentos com Jesus, mas sempre mergulhada em
trevas, angústias e sofrimentos. Veio a hora de O receber e eu de
mãos vazias, despida de todo o bem, sem ter uma morada digna para O
hospedar. Ele não recusou entrar. E logo os punhais deixaram de
ferir o meu coração, e todos os sofrimentos desapareceram, mas em
todo o tempo que estive com Jesus; depressa voltaram. Ele disse-me:
— Minha
filha, onde está a cruz, a verdadeira cruz, a cruz real, está o
amor; e onde está o amor está Cristo. Tu sofres, possues-Me,
amas-Me, tens todo o amor de Jesus. Sofres e amas sem igual dor sem
igual amor. Farei que a tua dor seja de salvação para o mundo e que
esse amor com que Me amas se espalhe, se comunique às almas.
A tua
dor, o teu amor, são as escadas de pecadores e justos subirem ao
Céu. Há-de o teu amor abrasar as almas, há-de a tua dor ser tão
poderosa que, já tu no Céu, e ela continuará na terra, até ao fim do
mundo, a ser poderosa e de salvação para os ingratos pecadores.
Coragem, Minha filha! O que te espera no Céu!
— Ó meu
Jesus, como estou humilhada, como me sinto pequenina! Faça-se tudo,
segundo a Vossa vontade divina. Só Vós sabeis quanto me custa que
faleis assim.
— Sossega, sossega esposa querida; o que Eu digo não é para te
elogiar; não falo para ti, falo para o mundo. É a ele que eu quero
mostrar o que é a minha vida divina nas almas e o que é uma vítima
generosa fidelíssima. É ao mundo que quero mostrar os elogios de um
Deus, dados a uma esposa, a uma alma louca por Si. Diz-Me o que
quiseres, pede-Me o que quiseres, Minha filha querida.
— Meu
Jesus, dais então ao meu Paizinho a luz que ele pede, a luz que ele
necessita?
— Dou-lhe tudo, sempre lhe tenho dado. É o amante da minha cruz, é o
possuidor de todo o Meu amor; dá-lho por Mim; repete-lhe, diz-lhe
que Eu o amo, diz-lhe que é o mestre das almas e que eu farei que
elas em grande multidão o sigam, à semelhança de Mim. Diz-lhe que Eu
o assemelho à minha vida na terra.
Diz ao
teu médico que o amo loucamente e que amo aos que lhe são caros.
Diz-lhe que lhe repito: conto com ele, como vara forte e firme a
amparar-te e à minha causa divina, que, depois de humilhada, será o
triunfo de todos os tempos. Diz-lhe que recomendo a vigilância; o
mal corre, o veneno penetra. É necessário um milagre até ao fim. Vem
Mãe Bendita; não deixes sem conforto a nossa filha.
— Estou
aqui, Meu filho, ansiosa por confortá-la.
Veio a
Mãezinha, inclinou-me para Ela; acariciou-me e abraçou-me.
— Coragem, Minha filha! Em nome do meu bendito Filho, venho
afirmar-te: estás na verdade, és-Lhe fiel, Ele está contentíssimo
contigo. Deste-Lhe tudo, amas-Lo com todo o amor com que O podias
amar. Em troca, filha querida, da tua vida de dor e de amor leva os
Nossos amores àqueles que te amam e com tanto empenho te rodeiam; é
o prémio do Céu, por ampararem uma esposa tão querida de Jesus, e
acrescentou: Diz-lhes em meu nome que lhes prometo o Céu e mais
ainda àqueles que do fundo da alma e do coração com eles falarem no
meu nome e nas minhas coisas. Farei que os que te rodeiam e te são
queridos comuniquem aos outros o que de ti receberam; que é a
comunicação dos tesouros do Céu. Vai, Minha filha querida; tem
coragem; não deixes de correr, mas também não deixarás de amar. Vai
em paz, vai com O teu Jesus, leva o teu Jesus. Para que as minhas
palavras se cumpram, tenho que abreviar os meus colóquios, mesmo
eles têm de ser para ti dolorosos. Coragem, coragem, nova redentora,
salvadora do mundo!
— Obrigada, meu Jesus; obrigada, Mãezinha acompanhai-me, não me
deixeis por um só momento. Já me parece mentira estar Convosco, e
com Convosco falar. O que eu vejo à minha frente! Valei-me,
valei-me; sou a Vossa vítima.
7 de Fevereiro de
1947. - Sexta-feira
Faltam-me as forças; o sofrimento impede-me de poder falar. Será o
sofrimento, meu Jesus, ou serei eu que não sei sofrer e o pouco
parece-me muito? Que luta renhida no meu espírito! Que mar de
dúvidas! Que vida a minha tão cheia de incertezas! O demónio tem
tentado assaltar-me, mas, acorrentado, não o tem conseguido; não
veio com os seus tremendos combates. Quando o vejo a formar salto,
para se atirar a mim, fico assustada e com receio que alguma vez
sempre vença e me leve ao pecado. Ele tem tantas formas de nos
atormentar a alma! Eu já a tenho tão dorida, sem ser por ele; parece
que a tenho em sangue: ó meu Deus, ó meu Jesus, tudo o que sofro é
por Vós, é pelas almas. Tenho olhos, mas não para ver nas negras
trevas que vou passando. Cada passo que dou é em falso, é um abismo
negro, onde caio, e o meu desfalecimento auxilia-me de boa vontade a
deixar-me mergulhar neles. Morro de dor, morro sem remédio nestes
abismos pavorosos de cegueira. Sinto os punhais, sinto as lanças a
cortarem-me o coração tão lentamente, tão finamente. Quantas vezes
tenho a impressão de ouvir nos meus ouvidos o cortar das carnes; é
arrepiante, a dor sufoca-me, tira-me a respiração. E logo em
espírito elevo ao Céu a minha oferta de vítima. Aborreço o mundo com
tudo o que nele encerra; não porque tudo deva aborrecer, mas sim
porque de tudo quero e devo desprender-me: sinto como se alguém
dentro de mim, ande a espanar, a polir, a assear a habitação do meu
coração, da minha alma; tudo é deitado fora, sinto-me vazia, é uma
casa sem mobília. Este vazio é para se encher e quando sinto que se
enche de uma vida de que não é falar, uma vida superior a esta vida,
a alma vê o coração cheio, transbordar e pelo centro sais grandes
labaredas que sobem ao ar. Nestes momentos fico como que a dormir
nesta vida e como que se do mundo desaparecesse. Volto a sentir o
vazio e as ânsias devoradoras do amor de Jesus. E de verdade queria
mesmo devorá-Lo, possuí-Lo só a Ele e nada mais. Vós, meu Jesus, Vós
e só Vós e nada mais. Sinto logo o abandono de todas as criaturas
mesmo das mais queridas. Mas sou eu mesma a querer-Lhes ser grata,
agradecida; mas não querer viver delas, para só de Jesus viver. São
cortes dolorosos, são indizíveis sofrimentos. Mas se eu assim amasse
a Jesus, se eu soubesse que O amava quase deixaria de sofrer.
Ontem,
ao cair da noite, de surpresa, senti-me atada e arrastada por
grossas cordas que me cingiam o pescoço; obrigavam-me a ir com o
rosto a terra até o ferir. Logo me introduzi por um túnel de todos
os sofrimentos formado; ali não entrava luz nem conforto. Caminhei,
fui parar ao Horto; pouco depois recebi em meu rosto o beijo de
Judas. Que beijo cruel, mas que ainda mereceu dos lábios
bondosíssimos de Jesus a palavra terna de amigo. Que doçura a do seu
coração divino: se todos a compreendessem! Os modos, os olhares de
traidor eram desconcertantes e desesperados. Quando Jesus chegou ao
fim do Horto, mesmo na saída, debaixo daquela chuva de maus-tratos e
de crueldades eu senti, dentro do meu peito, a Seu divino coração
palpitar tão aflito pela dor e pelo cansaço que já parecia dar ali a
vida. Vi, pouco depois, a lareira onde se aqueciam os inimigos de
Jesus e uma falsa e provocadora mulher que fazia o lugar de correio,
onde S. Pedro se aquecia também; era por eles interrogado e trocavam
uns para os outros seus olhares maliciosos. O galo cantou; na alma
senti o seu canto e tive visão do abrir e fechar do seu bico.
Retirou-se S. Pedro para chorar; as lágrimas corriam em meu coração
como dois regatos. Se eu tivesse a mesma dor de arrependimento dos
meus pecados!
Hoje já
no Calvário ecoou dentro em meu peito o som descontrolado do bater
dos cravos; fiquei com os meus pulsos e pés abertos como se fosse
por eles trespassados. Não senti ali só os maus-tratos de Calvário,
mas sim os de todo o mundo. Tinha uns olhos que tudo contemplavam;
tinha uns ouvidos que não só ouviam os insultos do calvário, mas sim
os de toda Humanidade. Os gemidos e o brado de Jesus com o Seu
coração cheio de amor e doçura não eram um convite, um chamamento só
ao calvário, mas sim ao mundo, a todo o mundo. Jesus com a sua
agonia e morte queria salvar a todos. Os lábios de Jesus estavam
cerrados, mas oh! Como falava e amava o Seu coração divino. Eu
pecava com o mundo e sofria e agonizava com Jesus; e ao mesmo tempo
ansiava possuir para mim o mesmo mundo. Veio Jesus e falou-me:
— Estende, minha filha, por todo o mundo a tua dor assim, como Eu
põe ele estendo o Meu divino amor. É pela tua dor e com a tua dor
que este amor lhe é dado. Tem coragem, minha filha! O teu corpo, o
coração e a alma é um jardim celeste onde Eu plantei e semeei toda a
variedade de flores. Uns anjos cuidam de outros anjos. E porque
assim é Jesus to afirma. São os anjos que com todo o cuidado
cultivam e tratam destas flores. A tua alma está pura. Eu nunca
consenti, esposa querida, que ela fosse manchada pelo pecado; se
alguma coisa permiti, foi para que tivesses o conhecimento das
graves ofensas que Me são feitas, para melhor Me poderes reparar e
desagravar. Quanto mais sofreres, mais reparos; quanto mais
reparares, mais pecadores salvas e mais amor por ti as almas recebem
de Mim. Estende, estende a tua dor ao mundo. Como ele Me ofende!
Quando sentires mais, minha filha, o ferimento dessas espadas e
punhais, tem a certeza de que nessas horas é que Eu estou a ser mais
ofendido. Renova-Me muitas vezes a tua oferta de vítima, e redobra
de amor, multiplica os teus actos de amor. Vou pedir-te nestes dias,
alguns combates do demónio; preciso dessa reparação. Aceitas?
— Bem
sabeis que sim, meu Jesus, mas com que medo eu aceito; que receio de
Vos ofender! Tomai conta da Vossa filhinha, da Vossa mais indigna
vítima. Eu quero reparar mas temo, eu quero amar-Vos e não sei como.
Que pobreza, que pobreza, que miséria, meu Jesus!
— Coragem, nada temas do que o demónio te lançar em rosto; bem
quisera ele que fosses o que te diz. Anima-te. O teu amor a Jesus
atingiu a maior altura. Sabes quem é aquele que sentes trabalhar em
tua alma? Sou Eu, O teu Jesus, O teu esposo, O teu Rei; sou Eu que
tudo esvazio, sou Eu que tudo encho. Todo te possuo e tu toda a Mim
possuis. Eu deito, fora de ti, os que te são queridos, mas sem
prejuízo, sem ingratidão da tua parte, sem por isso os deixares de
amar. Eu podia lá consentir que fosse ingrata uma esposa Minha, Eu
que sei quanto custa a ingratidão e que sinto tanto; quando são
ingratos para ti! Não, não, não és ingrata. O que faço é para tirar
de ti tudo o que é humano, para só possuíres o que é divino, para só
o divino te encher. E assim é filha querida. Em ti existe só o amor,
todo o amor de Jesus. Vou dar-te agora a vida de que vives; uma gota
do Meu divino sangue com a Minha Eucaristia, é o teu alimento; é o
conforto que te dá Jesus, é a vida para ti e para dares às almas.
Jesus
abriu o Seu peito, fez do Seu divino coração uma pequenina infusinha
pela qual deixou cair no meu coração uma gotinha de sangue. Esta
gota de sangue abrasou-me tanto! Foi um fogo que me incendiou.
Colocou novamente dentro de Si o Seu divino coração cerrou o peito e
disse-me:
— Vai,
esposa Minha, vai ao mundo dar este amor, vai dar-lhe esta vida, vai
salvá-lo que é teu. Custa-Me tanto ver-te sofrer, mas é para que
seja salva a humanidade. Continua sempre a obra de resgate, a obra
de redenção; és a nova redentora. Tu serás para o mundo, filha
querida, estrela brilhante, estrela de ouro que o guies para Mim.
Vou despedir-Me, vou deixar-te para abreviar o colóquio, vou
deixar-te para ficar sempre contigo. São colóquios dolorosos, é para
Mim só o sabor, é para mais receber de ti. Vai depressa, vai
espalhar pelo mundo a tua dor com o Meu amor. Vai com paz e alegria;
Jesus to pede.
— Obrigada, meu Jesus, sede comigo. Ai, tanta dor não sei repará-la;
a Vós me entrego; destruí-a, meu Jesus. Tende sempre diante de Vós
os meus pedidos, bom Jesus!
14 de Fevereiro de
1947. - Sexta-feira
Aumentou o peso da minha cruz, e aumenta também, dia a dia, a minha
sede de sofrimento, a sede de me dar a Jesus e às almas, a sede de
consumir-me, enlouquecer-me e perder-me no amor de Jesus. E é
verdade que me sinto queimada; parece que um fogo invadiu tudo. Ah!
Se fosse o fogo do amor de Jesus! Se na realidade eu O amasse! Ai
pobre de mim!
Tive no
dia 11, uma grande tribulação, das maiores da minha vida. Não sei se
foi permitido por Nosso Senhor se pelo demónio. Não sei, mas sofri
muito. Não sou capaz de mostrar quanto sofri. Sofri resignada. Não
fui capaz de fazer várias das minhas orações diárias, cansada de
tanto sofrer. Mas o que não perdi foi a minha união a Deus. Abraçada
ao meu crucifixo, dizia de alma e coração: eu te abraço minha cruz,
com o meu Jesus; eu quero-te, eu amo-te. Meu Jesus, sou a Vossa
vítima. Apertava contra o peito a imagem da querida Mãezinha e
dizia-lhe: fostes Vós, Mãezinha, fostes, Vós, que no Vosso dia me
trouxeste este miminho. Valei-me, valei-me, dai-me um conforto.
Pareceu-me ouvir o coração estalar de dor, e depois, sentia como que
o sangue me corresse no peito. Vi, à minha frente, tudo o que há de
pior, tudo o que há de mais desastroso. Quanto mais oprimida pela
dor, mais fortemente o meu brado subia ao Céu. Meu Jesus, aceitai-me
parte destes sofrimentos por tais intenções e nomeei-as; e o
restante aceitai-o Vós e espalhai-o pelo mundo, meu Jesus, a minha
dor. Passou de 24 horas que eu assim sofri, a sós com Jesus sem com
mais ninguém desabafar as minhas mágoas. Por mais que me
interrogassem, procurei disfarçar, nada disse; calei, calei até não
poder mais. Queria chorar, e não fui capaz; assim mais me custava
sofrer.
No dia
12, levantei uma porta do véu que tanta dor encobria. Fui confortada
e quiseram desiludir-me que tal sofrimento não tinha o fim que eu
lhe dava. Fiquei um pouco mais libertada, mas sempre com o coração a
sangrar. Tinha a alma e o corpo sem vida. Passaram-se umas horas
mais suaves. Depois então recebi o golpe que foi realidade; não foi
nada da minha imaginação. Longe de me revoltar, recebi-o, abracei-o:
oro e sofro por quem me fere. Perdoo como quero que Jesus me perdoe
as minhas culpas. O que eu não quero é ofendê-Lo nem deixar um
momento de O amar. Se me dessem, de preferência o amor de todas as
criaturas, honras, louvores e senhora do mundo inteiro e nunca mais
ser escarnecida desesperada e humilhada contanto que por um só
momento eu deixasse de amar Jesus, eu dizia: não, não, sempre não.
Quero amar a Jesus sempre oprimida pela dor e humilhada, sempre
humilhada. Não posso dizer que o sofrimento não custa; mas é verdade
que esta vida passa e o amor de Jesus dura eternamente. Quero
amá-Lo, quero amá-Lo.
Tenho
sido rodeada por feras e bichos tão feios, tão desconhecidos! Não me
tocaram, mas temia tanto o seu veneno! E os demónios com rostos
humanos, feiíssimos, por entre elas; os olhos e os dentes causavam
terror. Tive quatro combates seguidos; parecia-me ver todo o inferno
em mim e à minha frente; ouvia-lhe os seus ruídos e estalos como de
lenha verde. Parecia passar por mim todo o fogo infernal. Não me foi
possível, de um ataque ao outro, desprender-me daquele inferno. Que
cadeia com tão seguras prisões. Nos momentos mais assustadores,
quando mais eu temia ofender a Jesus, eu dizia: Jesus, Mãezinha, é
de alma e coração que Vos digo: dai-me o inferno se hei-de
ofender-Vos; sou a Vossa vítima. Pensava em fugir daquelas cadeias,
mas não tinha força. Não queria escutar as feias palavras do
demónio, mas tinha que ouvi-las. O coração batia fortemente e eu
repetia: não quero pecar. Quando fui libertada, estava num banho de
suor. Acrescentei: meu Jesus, que este banho do meu suor seja para
as almas com banho de dor e fortaleza que as levem a arrepender-se e
a quebrarem as cadeias do pecado. E seja também um banho do Vosso
perdão e amor. Sem eu querer, senti em mim, por algum tempo, vontade
de voltar a unir-me ao demónio. Só Jesus sabe quanto isto para mim é
doloroso. Tudo o que fica dito e não sei dizer tem sido para esta
pobre alma e corpo um contínuo Horto e Calvário.
Durante
esta noite senti-me no Horto; lá sofri como se fosse despida e
açoitada. Lá vi, lá sofri como se fosse coroada de espinhos e com o
corpo despedaçado pelos açoites, levada à varanda de Pilatos. Vi a
multidão do povo ouvi suas vociferações: tinha que ser condenada à
morte. A noite estava escura e serena, que não deixava mover uma só
folha das oliveiras, a não ser quando a dor tudo obrigava a tremer,
à solidão e a vir todo o abandono, mesmo até do Eterno Pai. E àquela
hora onde estava a Mãezinha? Quanto sofria Ela com a reparação e a
despedida de Jesus! Ele, dentro de mim, via e sofria a Sua dor, via
onde Ela estava, via a distância que Os separava. Que dor sem igual!
E, hoje, sinto em meu coração a dureza dos corações, que
acompanhavam Jesus, pelas tristes ruas do calvário; nada os comovia,
nem o sangue de Jesus, nem o Seu santíssimo corpo ferido, nem ver o
amor com que Ele aceitou e levou a cruz, já quase moribundo. Ao
terminar do calvário, Jesus deu-me um profundo suspiro; e o Seu
olhar moribundo, mas divino levou a todos um olhar de convite, amor
e perdão. Que olhar de tantos segredos misteriosos! Quisesse ou não
eu tinha que sentir e ver as graças abundantes que davam aqueles
olhares de Jesus; quisesse ou não quisesse, tive que sentir e ver o
calvário e todo o mundo a desprezá-las a deitá-las fora. É indizível
a dor de Jesus e a minha com a d’Ele; ver tantos sofrimentos
inúteis, ver para tantos nada valer a Sua paixão e morte. Senti
dentro em meu peito o último suspiro de Jesus: agonizei com Ele.
Momentos depois, senti abrasar-se-me o coração; parecia-me estar a
nadar num mar de fogo. E logo me falou Jesus assim:
— Venho
a ti, minha filha, cheio de amor e compaixão; amor para te encher e
compaixão pela tua dor, por tanto te ver sofrer. Sofreste tu, Minha
filha, mas não Eu. Repara; vês como venho sem nenhum ferimento? Foi
atingido o teu coração e não o Meu. Tem coragem, Minha filha! Eu
pedi-te dor, sempre dor, para espalhar pelo mundo, e foi ao mundo
que a estendi com a mistura do Meu divino amor. Pedi-te dor, sempre
dor, porque de muita dor necessito, para bem das almas, e muita dor
via para te darem. Coragem! Eu poderei dizer de ti o que disse: as
portas do inferno não prevalecerão contra mim, isto é, contra a
Minha Igreja. E agora digo: a raiva humana, que mais parece
infernal, nada poderá contra a Minha divina causa. Anima-te, esposa
querida. Consentes em te pedir dor, sempre mais dor? Consentes em
seres imolada, a mais não poder ser? Peço-te consentimento, porque
nada vale a dor sem a generosidade, sem o teu querer, sem o teu
amor. O mundo necessita de tudo. Não deixeis, filha amada, morrerem
as almas de fome. Aceitas?
— Já
sabeis que sim, meu Jesus; escusado é dizer-Vos que tudo aceito e
sofro, por Vosso amor e pelas almas. Sou a Vossa vítima. Mas
pedis-me assim tanta dor; o que virá mais? Eu já queria dizer-Vos,
na última vez que falei convosco, o que me esperava, pois achava que
acentuáveis tanto a palavra dor, que tanto fazíeis penetrar em mim,
e que tudo isso queria dizer mais alguma coisa; mas não atreve a
perguntar-Vos nada. Compreendi tudo, todos os teus desejos, mas nada
te disse, para não te atemorizar. Dizei-me, meu Jesus. E não serei
eu uma iludida das Vossas coisas e nossa ilusão a iludir tantos e
mais ainda aos que me são tão queridos?
— Sossega, sossega, Minha filha, confia no teu Jesus. Não é uma
ilusão; é a realidade. Tu foste cheia das maiores graças das maiores
maravilhas do Senhor. Sossega, de ti quero o sofrimento com o
silêncio. E darei a minha luz, a luz do Espírito Santo àqueles que
precisam dela. Confia em Mim; todo o Céu se alegrou com a consolação
que Me deste, com a coragem do teu sofrer. A tua dor foi para as
almas uma primavera de flores. O teu heroísmo, o teu amor à cruz,
pôs o Céu, a tua pátria em festa. Entoaram, em Meu louvor, hinos
jubilosos. Vou dar-te agora uma gota do Meu sangue divino, para
reparares as forças perdidas. Consumiste mais forças nestes dias de
sofrimento do que num ano dos trabalhos mais austeros de jejum, a
pão e água. Vem a mim; é fácil a operação.
Jesus
abriu o Seu divino lado e abriu também o meu; uniu os Nossos
corações e logo deixou cair do d’Ele no meu uma gotinha do Seu
divino sangue. Senti logo o coração mais forte, a dilatar-se. Jesus
colocou um e outro no seu lugar; cerrou o Seu santíssimo peito,
cerrou também o meu, bafejou com o Seu bafo divino, deixou-o sem
cicatriz.
— Vai
agora, filhinha amada; vai sofrer, vai cheio do Meu divino amor; vai
espalhá-lo pelo mundo; leva a Minha graça, leva a Minha força. Tem
coragem; nada temas. Jesus é contigo; sempre contigo.
— Obrigada, meu Jesus; só em Vós é que eu confio.
Como
gosto de dizer: Bendito seja Deus, bendita seja a minha cruz. Voltei
para os meus sofrimentos, a tudo ver desenrolar à minha frente; tudo
me causa pavor, nada queria escrever. Se não fosse a minha oferta da
noite de Natal ao Menino Jesus, mais nada escrevia; ficava como se
tido morresse. Assim quero só, quero sempre a vontade do meu Senhor.
21 de Fevereiro de
1947. - Sexta-feira
Se
tenho Jesus e a Mãezinha, não estou só. Que posso temer? Abraçada às
Suas imagens, nas horas mais dolorosas e mais aflitivas, é este o
murmúrio do meu coração. Quanto mais sofro e me sinto de todos
abandonada; mais aperto contra o meu peito o crucifixo e a querida
Mãezinha, e vou-lhes segredando: tenho que confiar, não posso ser
abandonada por aqueles em quem só tenho confiado, a quem me
entreguei totalmente, alma e corpo e todo o ser. Jesus, Mãezinha,
sou Vossa e Vós meus. Morri para não mais viver; o mundo para mim
não tem luz, não tem flores, não tem encantos. Tudo dá louvor ao
Senhor, todo o ser criado bendiz o seu Criador, só eu não.
Mergulhada nas trevas, nesta cegueira que me mergulhou e vejo o
mundo mergulhado, nada vejo que possa dar glória ao Senhor e louvor
como criatura Sua. Tudo é miséria e um mundo de podridão e
desventuras. Quantas vezes sinto a tentação de maldizer a minha
sorte; não o tenho feito. Nos momentos de desânimo, uma força
inesperada me levanta e me obriga a confiar no Senhor. Espero um
dia, espero outro dia, sempre a ver quando chega um sacerdote, em
quem eu possa confiar e abrir a minha alma, para assim me poder
guiar para Jesus e amparar, nestes caminhos tão dolorosos e
espinhosos. E não aparece ninguém; estou sozinha nesta luta
constante. Quero amar a Jesus e não O amo, nem sei como, não tenho
quem me ensine. Volto-me para S. José, peço-lhe do fundo da alma que
seja ele o meu mestre, o meu director e que por mim ame a Jesus e à
Mãezinha e toda a Santíssima Trindade. Estou esmagadíssima. Com
tantas humilhações; nem posso respirar. À volta de mim, tudo são
montanhas com seus feios bosques, por entre os quais tudo são feras
aterradoras a correrem, a descerem para mim; querem devorar-me; não
há quem me defenda e possa salvar-me. Nada mais sei dizer; a não
ser: meu Jesus, sou a Vossa vítima. E a mesma repetição faço todas
as vezes que sinto estes dolorosos punhais, as espadas afiadas
lentamente a cortarem-me o coração. Este corte tão fino e profundo
faz-me, por vezes, arrepiar e desfalecer. Amo o meu calvário com
todos os sofrimentos que ele a mim conduz. E parece que se
deixasse de sofrer deixaria de amar. Quanto mais espremida,
mais me enlouqueço por Jesus, mais ânsias tenho de O amar. Mas, ó
meu Deus, quanto custa a dor! Passou, ontem, o primeiro aniversário
da partida do meu Pai espiritual para a Baía. Recordei todas as
coisas e sofri mais, muito mais ainda, por ver que nem o seu
desterro acabou com as humilhações e injúrias para ele e para mim. E
se eu não visse alguém a sofrer por minha causa, se fosse só para
mim a dor! Mas não; quantos se imolam consigo, ao mesmo tempo! Ó
Jesus, ó cruz, ó dor, como eu Vos quero amar. Que esta visão de
tantos sofrimentos e o peso tão esmagador seja para as almas que
vivem na treva do pecado, visão de luz, conforto e amor. Que este
peso mortal que eu sinto seja para elas o peso que lhes quebre as
cadeias que as prendem a Satanás.
O que
foi o meu Horto de ontem, no meio de tantos sofrimentos. Mas não
bastavam; tive que sentir os de Jesus. Ele veio sentar-se em meu
coração e nele foi coroado de espinhos. Apesar de O ter em mim,
também eu tive a coragem de O ferir. Com uma vara nas minhas
próprias mãos, batia-Lhe e na Sua Sacrossanta cabeça mais se
enterravam os espinhos. Havia tanto quem Lhe fizesse o mesmo, mas
toda a maldade se reflectia em mim. O sangue que rebentava de todos
os espinhos corria em meu peito. Depois ficou Jesus, de mãos atadas,
a receber açoites. Eu continuei com a mesma maldade. Sem dó nem
piedade despedaçava o Seu corpo divino. Aquelas cenas não eram
daquela hora; via-as um pouco afastadas, mas feriam como se fossem
de momento. Desfaleci, fiquei por terra, a derramar sangue com os
lábios pousados no solo duro.
Hoje,
levada; arrastada pela dor, tristeza e noite mais escura, cheguei ao
cimo do calvário, sem outra coisa ver e sentir, e logo fiquei na
cruz cravada, de pés e mãos. Principiei a sentir uns olhos, dentro
em minha alma, olhos que não me pertenciam, que penetravam no mais
íntimo de todos os assistentes do Calvário. Aqueles olhares tão
altos viam naquele número toda a humanidade representada, como
aquela visão de maldade e crueldade. Jesus inclinou sobre o meu
peito, que era a cruz a Sua Sacrossanta cabeça. Palpitou o Seu
divino coração aflitíssimo, um profundo suspiro e estendeu ao longe;
cerraram-se os Seus lábios, só os Seus gemidos abafados eu sentia e
acompanhava-O na Sua dolorosa agonia. De longe a longe, quando a dor
era mais aguda e os suspiros mais profundos, vinham aos Seus lábios
divinos escassas gotas de sangue. Nesta agonia sem igual que lição
me deu Jesus, para a minha dor e agonia de alma com o Seu silêncio.
Se cá aprendesse à Sua semelhança, a sofrer caladinha! Com o aumento
da Sua agonia, mais cresceu em mim o ódio; queria fazê-lo
desaparecer de todos de todos os olhares humanos. Odiava-O, e, ao
mesmo tempo, na mesma dor, na mesma união, com Ele agonizava. Pouco
depois, um fogo ardente abrasou-me o coração e estendeu-se a todo o
peito. Logo depois falou-me Jesus:
— Sobe,
Minha filha, podes subir, elevada pelo amor até ao Meu trono divino.
Sobe, Minha filha e podes fazer subir muitas almas para a Pátria
celeste com a tua dor, com o teu amor. Tens duas escadas que chegam
da terra ao Céu pelas quais constantemente, noite e dia, sobem as
almas; é a escada da dor e a do amor. Pela do amor, sobem aquelas
que, embora frias e tíbias, não viviam em estado grave e se deixaram
encher da abundância do amor, que de Mim recebeste. Pela da dor,
sobem os pecadores que a tua dor arrancou às garras do demónio e
lhes obtive o perdão e a graça. Como é belo vê-las subirem. Se
pudesses vê-las! Cada alma é acompanhada por um Anjo que sobe com
ela à Pátria celeste. Eu quero-te, filha querida, constantemente
esmagada pelo sofrimento, não por te querer ver sofrer, mas porque
quero a tua alma pura, cândida, para voares da terra ao Céu, sem
passares no purgatório e dares-Me toda a glória e, pela alta missão
que te dei, altíssima, poderes salvar-Me as almas. Coragem, Minha
filha. A dor é a arma mais poderosa. Espalha-se a dor, espalha-se o
amor pela humanidade, e, sem que tu saibas nem sintas, vai penetrar
e esconder-se nas almas, como fumo ou nuvem que se espalha, como
perfume que irradia e penetra.
— Meu
Jesus, ó meu Jesus; eu não quero a minha alma pura com o fim de não
ir ao purgatório sofrer; eu quero-a pura para Vos consolar, eu
quero-a pura, porque não quero ferir-Vos, eu quero-a pura para com a
mesma pureza vos salvar as almas. É por isso que eu sofro, é por
isso que tudo aceito, meu Jesus. Mas custa-me tanto, tanto, meu
Jesus; vejo tudo perdido, vejo-me tão sozinha.
— Não
estás só, não, esposa querida: confia que estou contigo. O fim do
teu sofrer, o fim da pureza da tua alma maior glória Me dá, e maior
número de almas atrais ao Meu divino coração. Eu quero, eu anseio
que, à tua escola, venham aprender os grandes e sábios do mundo.
É nesta escola que se aprendem as artes e ciências divinas.
Diz, Minha filha, e confia que é Jesus que to afirma: é a primeira
escola e a última escola de tão grandes maravilhas.
— Ó meu
Jesus, sinto-me desfalecida, vejo tudo perdido. Acerca-me tão forte
tempestade! Não cessam os relâmpagos, não cessa o estrondo
destruidor do trovão. Valei-me, valei-me, Jesus.
— Sossega, sossega, Minha filha. Os relâmpagos, são relâmpagos de
amor; o eco estrondoso é voz de convite para que venham a Mim todos.
É sempre a tua dor, é sempre o teu amor. Anima-te. A tempestade não
destrói a Minha causa divina. Olha, são os braços do teu Jesus que a
sustentam. Eu guio a barquinha, em mar tão tempestuosos, e ela
chegará ao fim, ao porto de salvação. Tem coragem! Eu velo por ti.
Eu sou o Pai terníssimo, Esposo fiel, que não abandona a Sua esposa
na mais dolorosa dor. E, como prova do Meu cuidado por ti, vai mais
uma vez correr em tuas veias uma gota do Meu divino sangue. É a vida
de que tu vives. Vou com ela substituir o que a violência da dor,
nestes dias te roubou.
No
mesmo momento em que Jesus dizia isto, uniu os nossos corações. O de
Jesus cercavam-no raios luminosos e parecia um centro de lindíssimas
flores, com o mesmo brilho dourado. Deixou cair o Seu sangue divino,
e logo os separou. O meu dilatava-se e não aguentava tanto amor.
— Vai,
Minha filha, mais forte, com a fortaleza divina; vai; leva contigo a
força do Céu, o amor do teu Jesus. Vai para a tua cruz, abraça-a. Eu
te prometo: sempre que ao teu peito, com tanto amor, abraçares o
crucifixo, Eu chamarei e estreitarei ao Meu coração um pecador.
Coragem! O Céu está para breve, já te sorri.
— Queria ter Convosco um desafio, Jesus, já que me falas do Céu, mas
não tenho coragem, meu Amor.
Jesus
sorriu e disse-me:
— Sei o
que tu queres, conheço tudo, podes desabafar e dizeres o que
quiseres, mas não hoje; fica para breves dias. Não posso demorar-Me;
vai para a tua cruz, leva amor; vai para a tua cruz, leva paz, leva
alegria; vai para a tua missão, para a missão das almas.
— Obrigada, meu Jesus. Ficai comigo mesmo escondido; não me deixais
sozinha.
28 de Fevereiro de
1947. - Sexta-feira
O meu
espírito tem sido, nestes dias, um verdadeiro teatro representado
por satanás; tem trabalhado bem. Tem-me atormentado tanto! Tem-me
mostrado todas as falsidades, todos os caminhos errados, tudo
perdido. Pobre de mim, se Jesus, e a querida Mãezinha não me
amparam! De manhãzinha, a alegria, o trinado das avezinhas, a darem
glória ao Senhor, é para mim motivo de maior dor. Os seus gorgeios
são golpes, que mais vem avivar as feridas da minha alma. Oh! Como
eu sinto todo o meu ser dilacerado! O aproximar-se da primavera não
é para mim de alegria, como para as avezinhas. Para mim,
apresenta-se negra, cada vez mais negra. As árvores a cobrirem-se de
flores que nos fazem admirar o poder de Deus e nos obrigam a
prestar-Lhe o nosso culto de louvor por tantas maravilhas, para mim
são finos espinhos que me ferem, são flores murchas e negras, são
flores da morte. O que é que me alegra a alma? A vontade do Senhor.
Essa, sim, a vontade do meu Deus, dá-me alegria, por mais doloroso
que seja o meu martírio. Tantas quantas vezes sinto em meu coração,
os punhais, as espadas a cortarem-me finamente, eu abraço o meu
crucifixo. E ao dizer-Lhe amo-Vos, Jesus, repito-Lhe sempre: sou a
Vossa vítima. Sim, e eu queria amar até à loucura,
quero amar o meu Jesus, sem o fim da recompensa do Céu. Não me
interessa o prémio que me dá Jesus; quero amá-Lo a Ele; só a Ele
sobre tudo, porque Ele é digno de amor. É o fim do meu viver, é o
fim da minha dor Jesus e as almas; mas é sempre Jesus, porque as
almas a Ele pertencem. A minha razão não está conforme ao sentir da
alma; a alma sente-se humilhada, sozinha, sem ninguém, sem uma luz,
sem um apoio, sem um conforto da terra e do Céu. Para a alma não há
amigos na terra; tudo morreu, e até o Céu deixou de existir. A
razão, sem se sentir alegre, mostra-lhe, quero provar-lhe que tudo
isso tem; o Céu que existe, Jesus e a Mãezinha que não lhes faltam
na terra que ainda tem amigos firmes ao seu lado. Que luta renhida
que só causa a morte; a alma em desarmonia com a razão! Meu Jesus!
Sou a Vossa vítima; continuai a esvaziar-me, Vós, só Vós a
encher-me, isso me basta.
Nas
horas tristes deste viver, perdida no meio do mar, arrastada pela
violência das ondas sinto como se viesse alguém que tem todo o poder
sobre elas, a deitar-me as mãos; levanta-me e fica-se a fitar-me com
compaixão. Parece-me ser Jesus; poisado sobre as ondas, não se
mergulha nelas, não se molha, e não me deixa a mim ir ao fundo. A
minha alma fita os seus olhos naquele olhar terno, pede-lhe
compaixão, é presa em Seus braços, não quer desprender-se. Isto
conforta-me por um pouco mas fica-me sempre a dor vinda do temor. Ai
de mim, se Jesus me deixa! Quando a tempestade é mais desastrosa e
as nuvens negras mais me escarnecem, para darem lugar a maiores
dúvidas, invoco o Divino Espírito Santo, peço luz ao Céu, principio
por examinar a minha consciência, e logo principia a minha alma como
que a nadar num mar de paz, uma paz sem consolação, mas paz que dá a
vida e obriga a caminhar. E vou seguindo por entre as trevas, na
confiança de encontrar Jesus.
Na
tardinha de ontem, senti Jesus, sentado dentro em mim, cabeça
inclinada, olhos baixos, quase cerrados, a chorar amargamente. Este
fitava, via coisas de grande destruição, que Lhe causava grande
amargura. Levantou-se em meu coração uma montanha mundial; estava
cheia de feras que se atiravam para ferir Jesus. Por entre aquela
montanha, nasceram grandes varas de espinhos que serviam de suplício
para o corpo Sacrossanto de Jesus. Pelos Seus divinos olhos e
ouvidos principiaram a sair gotas de sangue. Foi tal a dor do meu
coração, que me parecia abrir-me o peito, e ele, louco pela dor,
sair para fora. Tinha momentos que não podia respirar; quase perdia
a vida. Repetiu-se depois, a cena do lava pés. Digo repetir, porque
já não foi a primeira vez. Vi Jesus com a toalha sobre os ombros,
bacia na mão, a lavá-los a Seus discípulos, incluindo aquele, que ia
entregá-Lo. Quero assemelhar-me a Jesus; quero, ainda que com muito
custo pedir sempre, sempre por aqueles que me ferem. Quem é Jesus, e
quem sou eu? Como sofreu Jesus, e como sofro eu? Pobre de mim, que
miséria a minha; não sei sofrer, não sei imitá-Lo! Passei daqui, no
mesmo momento, ao Horto; lá fui sentir a cruz antecipada, o coração
aberto; veio para o Horto o Calvário. Vi uma massa de almas a
desperdiçarem o Sangue de Jesus, com os Seus sofrimentos, com a Sua
morte. Vi algumas a aproveitarem de tudo o que era de Jesus, de tudo
o que era dor. Vi um que subiu acima de todos e foi mesmo beber no
sagrado lado, à chaga do Seu Divino Coração. O meu corpo foi o
palco, foi o Horto, a cruz; Jesus, à massa das almas que O
desprezavam e as que d’Ele se aproximavam. Hoje, quanto me custou a
seguir o Calvário! Que desfalecimento tão grande! Parecia-me
caminhar mais de rasto do que de pé. De passos a passos, caía. O meu
corpo era um esqueleto descarnado, coberto de sangue. Queria
respirar e não podia, sentia como se me arrancassem o coração e as
entranhas. Cheguei ao cimo, vi sobre a terra a cruz, onde ia ser
cravada, ao lado o martelo e os cravos. Fui crucificada, erguida ao
alto na cruz e fiquei num negro cárcere sem saída; esse cárcere era
um mar imenso de dor sem fim. Eu só sentia a vida que vivia aquele
sofrimento, aquela noite escura que me mostrava tudo o que era dor,
tudo o que era maldade. Ali sofri com Jesus, ali senti os Seus
suspiros, ali recebi em meus lábios a esponja. A minha sede era
outra, Não foi com a esponja saciada, a minha sede era do coração,
era uma sede indizível. Cresciam as muralhas daquele mar imenso,
daquele mundo de dor, e, ali presa, tive que agonizar. Ao voar de
mim aquela vida que era a verdadeira vida fiquei em completa
liberdade, romperam-se aquelas negras muralhas e fiquei outra.
Principiou-me o coração a arder em vivas chamas e falou-me o meu
Jesus.
— Minha
filha, em trono de Rei estou Eu em teu coração, e sou, na verdade,
Rei e Senhor de todo o teu ser. Sou teu esposo fiel, mas não estou
só, está comigo o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Dizer-te a Nossa
consolação, como estamos aqui deliciados com os encantos, com as
belezas de tão variadas flores, de perfumes atraentes é escusado; só
à vista clara da luz divina, da luz eterna, numa visão beatífica, o
poderás compreender. Fui Eu que rasguei, que rompi as muralhas, onde
estavas encerrada. O seu significado é aquele: quando pela Minha
morte resgatei as almas; resgatei-as do pecado, e deixei-as em plena
liberdade de entrarem no Céu. Há nos teus sentimentos de alma tantos
significados, tantas lições que Eu queria que aprendessem! São
provas tão claras de em tudo te assemelhar a Mim. Tu na continuação
da Minha obra resgatadora com a tua dor rompes os cárceres, as
muralhas em que as almas estão presas pelo pecado. Como é poderoso o
teu sofrer! Como é bela a tua missão!
— Meu
Jesus, dizeis muito bem, se eu soubesse sofrer, com o Vosso poder,
com a Vossa graça rompia tudo, tudo vencia. Mas, ai de mim, estou
sempre caída; não sofro com perfeição! Esmagada com o peso de tantas
humilhações e tanta dor, parece-me que quase ninguém me acredita.
Mais uma vez me entrego a Vós, para ser vítima em Vossas divinas
mãos.
— E não
querias tu, Minha filha, sofrer tudo isto só para salvares uma só
alma! E são tantas, tantas; são milhares e milhões que salvas. Se
soubesses como Me amas e como Me fazes amado! Confia, acredita o Teu
Jesus; e tens tanto quem te acredite! Eu farei que vejam em te as
Minhas riquezas e maravilhas. Eu farei que aqueles, que te
atormentam, venham a sentir em si horríveis remorsos.
— Meu
Jesus, perdoai a todos. Eu não Vos digo que eles Vos amem como eu
Vos amo, mas sim como desejo amar-Vos. Que todos se enlouqueçam por
Vós, como eu queria enlouquecer-me. Jesus, meu Amor, quanto mais Vos
digo mais queria dizer-Vos, mais ânsias tenho e amor, mais vazia me
sinto, mais queria possuir-Vos. E não vos amo, não Vos amo, meu
Jesus.
— Amas,
amas, Minha louquinha. Não viste, quando, ontem, te conduzi ao
Horto, aquela alma que subiu acima de todas as almas, entrou em Meu
lado e foi beber ao Meu Divino Coração? Fui Eu que te quis mostrar;
eras tu mesma. Não és igualada nem na dor, nem no amor. Salvas com a
dor, salvas com o amor. Tens em ti o poder de Jesus.
— Quanto me custa isso, que me dizeis, só Vós o sabeis, Senhor. Eu
não sou digna de tão grande prova de amor; eu não sou digna que
tanto baixásseis até mim... Eu bem senti, meu Jesus, como se fosse
eu mesma que subi e entrei, à frente de todas as almas, mas não o
disse quando há pouco ditei os sentimentos d’alma. Que vergonha, que
confusão; não pude dizê-lo! Como eu me sentia miserável!
— É
assim mesmo, esposa querida, pequenina, escondida, como a violeta
entre a sua folhagem. Quero-te pequenina, para mais brilhares entre
a folhagem das minhas maravilhas. Quanto mais pequenina, mais
poderosa. Minha filha, tenho tantas almas em perigo. O peso dos seus
crimes levou ao fundo o prato da balança; se lhes não acodes, caem
no inferno. Queres salvá-las com a tua dor?
Vi
Jesus com a balança em Suas mãos divinas, um prato em baixo outro em
cima, um com tudo outro com nada. Bradei logo:
— Jesus, temo os sofrimentos, mas quero-os. E o que virá ainda!
Antecipai-me o valor do sofrimento, como por vezes me antecipais a
dor; colocai-o já sobre a balança; sou a Vossa vítima, quero salvar
as almas.
O
prato, que estava em cima, baixou logo abaixo.
— Pronto, pronto; heróica, heróica! Estão salvas, estão salvas. Que
alegria para o Meu Coração de Pai! Como Médico Divino da tua alma,
vou dar-te uma gota do Meu sangue divino para viveres, para dares
vida, para resistires à dor. É rápida a operação.
Jesus
abriu-me o peito, e, já com o d’Ele aberto, tomou o Seu Coração
divino sem tocar no meu, deixou cair a gota do Seu sangue. O fogo do
meu coração aumentou; ele crescia, dilatava-se por todo o peito.
— Vai,
esposa querida, vai para a tua cruz; leva este amor, leva este
Sangue divino; é de resgate, é de salvação. Tu, a nova redentora das
almas, possuis em tuas veias o Sangue do teu Redentor. Coragem! Leva
a força, leva o amor do teu Senhor.
— Obrigada, obrigada, meu Jesus. Sinto-me queimada por Vós. Sede a
minha força. |